10 dezembro 2025

Trump e o G20 na África do Sul – Perplexidade no retrovisor

A tentativa de Donald Trump de esvaziar a Cúpula em Joanesburgo surpreende, mas nem tanto, baseada em conceitos defasados, dentre os quais uma crença numa saudosa unipolaridade norte-americana. Cabe ao G20 olhar e apontar para o futuro

Donald Trump e Cyril Ramaphosa na Casa Branca (Foto: Official White House Photo by Daniel Torok)

“Aposto a minha vida que a África do Sul fornece armamentos à Rússia”.

Esta declaração, que algum leitor poderia querer atribuir ao atual presidente dos Estados Unidos, que declarou a ausência de seu país na Cúpula do G20 em Joanesburgo, ou a algum representante seu, foi na verdade uma frase do então embaixador norte-americano em Pretória em maio de 2023, Reuben Brigety, II, sob a administração Joe Biden, referindo-se à atracação, no fim de 2022, de navio russo sancionado por Washington em águas territoriais sul-africanas.

Muito além da sobriedade diplomática, a sentença, cuja veracidade nunca foi comprovada, poderia sugerir, entre outras coisas, algum estado de perplexidade do declarante, a não ser que tenha sido dita por instrução da capital, algo improvável, mas aventado diante de seu caráter insólito.

Entretanto, não parece exatamente nova uma sensação de perplexidade dos EUA em relação à África do Sul. A raiz desse sentimento – algo “across the aisle”, isto é, não um sentimento com vínculos democratas ou republicanos – estaria, pode-se argumentar, no modo como os dois países se enxergam histórica e sociologicamente, que podem ter maiores ou menores consequências de acordo com a cosmovisão de quem se assenta no salão oval e de seus assessores.

‘Postura da África do Sul privilegia a autonomia estratégica na tomada de decisões nas relações internacionais, algo feito caso a caso e de acordo com o interesse nacional’

Ao emitir sua opinião, Brigety, ainda que talvez de modo inusitado, estava ventilando a irritação de Washington porque, à época e ainda hoje, Pretória não aderiu ao chamado norte-americano de isolamento internacional completo da Rússia pela guerra na Ucrânia. A esse respeito, dentre outros, a diplomacia sul-africana adota uma posição de “não-alinhamento ativo”. Em resumo, trata-se de uma postura que privilegia a autonomia estratégica na tomada de decisões nas relações internacionais, algo feito caso a caso e de acordo com o interesse nacional, com base no inegável legado de Nelson Mandela de resolução de controvérsias pelo diálogo, praticamente um ativo diplomático moral exibido pela África do Sul.

Com esse entendimento, o governo sul-africano vê-se livre para buscar relações amistosas com o Ocidente, inclusive por motivos econômicos, e simultaneamente participar de atividades como o exercício naval Mosi II, que reuniu em suas águas territoriais Marinhas da China e da Rússia em fevereiro de 2023, no contexto de um ano da invasão russa da Ucrânia.

Aliás, em agosto de 2023, na Cúpula de Joanesburgo do Brics, ocorreu a expansão do agrupamento, para o qual entrou, dentre outros países, o Irã. Posteriormente, vieram novos atritos. Um dos mais conhecidos foi o acionamento, pela África do Sul, de Israel na Corte Internacional de Justiça (CIJ) por indícios de genocídio em Gaza no fim de 2023, em contexto, segundo o governo sul-africano, de apartheid implementado nos territórios palestinos ocupados.

Controvérsia menos conhecida, porém potencialmente decisiva, foi a desinteligência, dias antes da posse de Trump, em torno da sanção, pelo presidente Cyril Ramaphosa, da lei de expropriação – em casos raros – de terras sem compensação.

‘Lei de expropriação despertou furor em Trump e seus assessores, que passaram a acusar o governo do Congresso Nacional Africano (CNA) de “perseguir” a população branca na África do Sul’

Assim como Rússia e Israel, o tema da propriedade é sensível “across the aisle” nos EUA. Ao lado do “Black Economic Empowerment” (BEE), medida de ação afirmativa implementada a partir do fim do apartheid para tentar incluir a marginalizada população negra na economia, a nova lei despertou particular furor em Trump e seus assessores, que passaram a acusar o governo do Congresso Nacional Africano (CNA), partido de Nelson Mandela, no poder desde 1994, de “perseguir” a população branca na África do Sul. Numa rápida sequência de eventos, Washington suspendeu a ajuda humanitária ao país que concentra o maior número absoluto de casos de HIV/AIDS no mundo e expulsou o então Embaixador sul-africano, Ebrahim Rasool, acusado de comentários “racistas” contra a administração recém-empossada.

Entre os assessores de Trump naquela altura, contava-se Elon Musk, que vê no BEE uma barreira “racista” aos seus negócios na África do Sul, onde nasceu e onde ainda reside seu pai, que lhe escreveu em e-mail de 2022 “sem os brancos aqui, os negros voltarão para as árvores”.

Natural de Pretória, o homem mais rico do mundo – e até meados de 2025 dono dos ouvidos presidenciais nos EUA – pertence ao que se chama de “minoria” africâner ou, em grande parte, de “bôer”, palavra holandesa para fazendeiro.

De modo muito geral e resumido, trata-se de descendentes de holandeses e outros europeus que, a partir do século XVII, aportaram na região do Cabo da Boa Esperança e, 300 anos depois, oficializaram o apartheid, termo que, em holandês, significa separação, consolidando o domínio político e econômico branco, inclusive sobre as terras sul-africanas. Ainda hoje, esse grupo segue como o mais próspero da sociedade sul-africana, classificada pelo Banco Mundial como a mais desigual do planeta. É essa “minoria” africâner que, a partir da sanção da lei fundiária por Ramaphosa em janeiro de 2025, o governo dos EUA resolveu acolher como “refugiados”.

Curiosidade, como gratidão pela paciência de quem lê até aqui: o nome da capital sul-africana, Pretória, não tem nada a ver com “preto”, como alguns imaginam – pois infelizmente pouco ou quase nada na história sul-africana até o fim do apartheid teria esse objetivo – e homenageia Andries Pretorius, um dos líderes bôeres que interiorizaram os africâneres no continente.

‘Ao anunciar a ausência norte-americana no G20 em Joanesburgo, Trump voltou a afirmar a noção de que os brancos sul-africanos estariam sendo vítimas de um “genocídio” vingativo por parte da maioria negra sul-africana’

Ao anunciar a ausência norte-americana no G20 em Joanesburgo, Trump voltou a afirmar a noção de que os brancos sul-africanos estariam sendo vítimas de um “genocídio” vingativo por parte da maioria negra sul-africana. A ideia parecia ter sido em grande medida debelada depois da visita de Ramaphosa a Washington, quando, segundo grande parte da mídia, Trump teria “humilhado” o Presidente sul-africano. Quem observa o desenrolar da cena no salão oval, no entanto, percebe que Ramaphosa – homem de confiança de Mandela, principal negociador do CNA pelo fim do apartheid e, portanto, muito experimentado – não se deixou vexar e praticamente palestrou em palco mundial sobre a realidade no terreno em seu país. Como resultado, Trump pareceu sem palavras além de elogios, enquanto Musk, posicionado junto à delegação estadunidense, fazia cara de poucos amigos.

Apesar do aparente rompimento com Musk, Trump continua curiosamente assessorado por homens brancos e com ligações com a África do Sul. Trata-se de ninguém menos que Peter Thiel, David Sacks, e Joel Pollack, que respectivamente atuam nos setores de big-techs, bitcoins e mídia e são, todos, pró-Israel.

Começa a se fechar o círculo quando se consideram dois dos princípios básicos do CNA para a política externa sul-africana. Um é que o partido não se esquece do apoio que Moscou deu à luta contra o apartheid, nem de que, ao manter vínculos econômicos com o regime, os EUA teriam permitido a continuidade da segregação por décadas. Outro é a frase de Mandela, em 1997, de que “nossa liberdade é incompleta sem a liberdade dos palestinos”, num contexto de décadas de solidariedade histórica entre o CNA e a Organização pela Libertação da Palestina (OLP), organizações que defendem o retorno de seus povos às suas terras originais.

A tentativa de Donald Trump de esvaziar a Cúpula em Joanesburgo surpreende, mas nem tanto, baseada em conceitos defasados, dentre os quais uma crença numa saudosa unipolaridade norte-americana. Cabe ao G20 olhar e apontar para o futuro.

João Bimbato é diplomata de carreira há 15 anos, atualmente chefe das Seções de Política Interna, Defesa e Cooperação Técnica e em Defesa da Embaixada do Brasil em Pretória. Desde 2019, atua com temas relativos à África do Sul e à África Austral.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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