Uma breve história
Nos quarenta anos da Declaração de Iguaçu, ressaltamos a liderança exercida pelos presidentes Raúl Alfonsín e José Sarney, graças a quem foram desmontadas barreiras, iniciados entendimentos, construída a confiança e iniciada a integração regional. Que sirvam de inspiração no momento em que agem forças centrífugas no contexto bilateral e regional.

Há 40 anos, um acontecimento de singular importância política e diplomática serviu para fortalecer as relações de amizade e confiança entre o Brasil e a Argentina.
Representou o embrião do Mercosul, que, por sua vez, constituiu uma das vertentes, juntamente com a Comunidade Andina, do processo de integração da América do Sul. Tudo isso começou quando os presidentes José Sarney e Raúl Alfonsín mantiveram encontro nas cidades fronteiriças de Foz do Iguaçu e Puerto Iguazú nos dias 29 e 30 de novembro de 1985.
Aquele momento histórico da relação Brasil – Argentina transcorreu sob o signo da democracia recuperada em ambos os países. Após os períodos de ditadura, foi o primeiro encontro de nível presidencial, marcado, fundamentalmente, pelo interesse comum de intensificar e aprofundar a cooperação bilateral.
Bem conhecidas eram as circunstâncias particulares da conjuntura política interna de cada país.
No Brasil, em plena transição democrática, havíamos atravessado o impacto político e emocional do falecimento do presidente Tancredo Neves, e o presidente Sarney, ao assumir a chefia do governo em caráter definitivo, dava início à sua política de estreita aproximação com os países da América Latina. Em agosto daquele mesmo ano, tinha realizado visita de estado ao Uruguai a convite do presidente Julio María Sanguinetti.
Na Argentina, além dos traumas provocados, sobretudo, pelas violações de direitos humanos durante o regime militar que governou o país de 1976 a 1983, continuavam a reverberar as cicatrizes do conflito bélico de três anos antes em torno da disputa pelas ilhas Malvinas, tema no qual foi explícita a posição de solidariedade e apoio do Brasil aos legítimos direitos de soberania do país vizinho. Por outro lado, Alfonsín iniciava seu terceiro ano de governo com o lançamento de um plano de estabilização econômica que, à época, gerou muitas expectativas, mas que não deu resultado.
‘O encontro Sarney-Alfonsín teve o objetivo específico da inauguração da ponte Internacional sobre o rio Iguaçu. Ressaltou-se, na ocasião, o significado da obra como elo de união real e simbólico entre as duas nações’
O encontro Sarney-Alfonsín teve o objetivo específico da inauguração da ponte Internacional sobre o rio Iguaçu, ligando a cidade de Porto Meira, Brasil, à de Puerto Iguazú, Argentina. Àquela obra de integração física foi dado o nome de “Ponte Presidente Tancredo Neves”. Ressaltou-se, na ocasião, o significado da obra como elo de união real e simbólico entre as duas nações, importante, também, por concretizar legítimos anseios das populações de ambos os lados da fronteira.
Até então, na extensa fronteira fluvial do Brasil com a Argentina, uma única ponte unia os dois países, qual seja, a ponte internacional entre as cidades de Uruguaiana e Paso de los Libres, inaugurada em 1947, durante os governos de Dutra e Perón. Foi a partir do encontro presidencial de Iguaçu que viriam a ser planejadas e construídas outras obras de infraestrutura de integração física e energética entre o Brasil e a Argentina
Outro aspecto que reforçou o valor histórico do encontro de Iguaçu tem a ver com o êxito das diplomacias brasileira e argentina ao superarem, em 1979, a antiga controvérsia bilateral em torno de Itaipu.
Este tema restringiu durante muito tempo as perspectivas de maior aproximação entre os dois países e, em alguma medida, ainda pairava no início da era democrática como dúvida quanto à maneira como o novo governo de Buenos Aires encarava essa questão.
‘A visita teve impacto simbólico extraordinário ao marcar o sepultamento do espírito de rivalidade e competição que fizera a Argentina opor-se no passado à obra binacional construída em parceria com o Paraguai’
Para grata surpresa da comitiva brasileira, o presidente Alfonsín manifestou desejo de visitar a hidrelétrica de Itaipu por ocasião de seu encontro com o presidente Sarney em Iguaçu. Sigilosamente organizada pelo cerimonial, pois não estava incluída na programação oficial, a visita teve impacto simbólico extraordinário ao marcar o sepultamento do espírito de rivalidade e competição que fizera a Argentina opor-se no passado à obra binacional construída em parceria com o Paraguai, criando séria controvérsia com o Brasil.
O embaixador Rubens Ricupero, então chefe do departamento das Américas do Itamaraty, foi chamado a acompanhar a visita de Alfonsín a Itaipu, a qual se realizou na manhã do dia 30 de novembro, antes da inauguração da ponte sobre o rio Iguaçu.
Quando retornou para juntar-se aos membros da comitiva que ficaram aguardando na cabeceira da ponte, comentou discretamente: “como dizia o Barão, há vitórias que não devemos comemorar”.
A famosa declaração do Barão do Rio Branco evoca o momento histórico da nossa diplomacia quando da divulgação, em 1895, do laudo arbitral do presidente dos Estados Unidos, Grover Cleveland, que deu ganho de causa ao Brasil na disputa territorial de Palmas.
Contra todo esse pano de fundo de diferentes matizes, os presidentes Sarney e Alfonsín, ao término de suas conversações, assinaram em Iguaçu dois documentos fundamentais do ponto de vista dos interesses da política externa brasileira.
O primeiro foi o comunicado conjunto do encontro, que recebeu o título de Declaração do Iguaçu, consignando uma grande abrangência de temas.
‘A Declaração do Iguaçu expressou o elevado grau de diversificação, aprofundamento e fluidez alcançado nas relações bilaterais’
Entre outros pontos, o documento expressou o elevado grau de diversificação, aprofundamento e fluidez alcançado nas relações bilaterais. Apontou para as coincidências de posições contra as políticas protecionistas no comércio internacional. Defendeu a necessidade de a América Latina fortalecer seu poder de negociação com o resto do mundo através das políticas de cooperação e integração regional. Reivindicou tratamento político da questão da dívida externa, nos termos sustentados pelo Consenso de Cartagena.
Tratou, ainda, da proposta da zona de paz e cooperação do Atlântico Sul, da questão das ilhas Malvinas, do Grupo de Apoio a Contadora, da cooperação no âmbito da Bacia do Prata e do problema do tráfico de drogas, Ao final, instituiu uma Comissão Mista de Alto Nível para Cooperação e Integração Econômica Bilateral. Em seguida, a Declaração estabeleceu uma série de diretrizes para os trabalhos desta Comissão com vistas ao aprofundamento dos vínculos bilaterais em matérias como complementação industrial, comércio, energia, transporte, comunicações e desenvolvimento científico-técnico. Foi a partir daí que se chegou aos acordos alcançados na visita do presidente Sarney a Buenos Aires, em julho de 1986, os quais deram origem depois, com participação de Uruguai e Paraguai, à formação do Mercosul.
‘A Declaração Conjunta sobre Política Nuclear ressaltou que os programas nucleares da Argentina e Brasil têm fins exclusivamente pacíficos e determinou que os entendimentos recíprocos se estendessem por longo prazo’
O segundo documento firmado no encontro presidencial de Iguaçu foi a Declaração Conjunta sobre Política Nuclear. Ao estimular a cooperação nuclear bilateral, a declaração ressaltou que os programas nucleares da Argentina e Brasil têm fins exclusivamente pacíficos e determinou que os entendimentos recíprocos se estendessem por longo prazo.
Para tanto, foi estabelecido um grupo de trabalho permanente. Ao mesmo tempo, ressaltou a declaração o direito de ambos países desenvolverem os seus programas nucleares autônomos, observando os seus compromissos internacionais. Isto significava dizer que Argentina e Brasil seguiriam as normas decorrentes do Estatuto da Agência internacional de Energia Atômica (AIEA), já que não eram parte do Tratado de Não-proliferação Nuclear (TNP).
Concretamente, foi dado início a um intercâmbio, tímido de início, mas que se intensificou, na progressiva construção da confiança recíproca. Reuniões periódicas, trocas de informação e materiais, contatos entre as Comissões de energia atômica dos dois países. O grupo de trabalho permanente reuniu, por pouco mais de dois anos, membros das Chancelarias e das Comissões e, no caso brasileiro, representantes (um diplomata e um militar) da Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional.
A Argentina, por instrução do presidente Alfonsín, abriu à visita dos brasileiros a sua instalação mais sensível, pelo segredo tecnológico que guardava. Assim, estiveram na usina de enriquecimento de urânio em Pilcaniyeu, um diplomata e um tenente coronel. Ao que consta, nenhum estrangeiro havia estado no local.
Pouco tempo depois, o presidente Sarney determinou que os argentinos fossem recebidos na usina de enriquecimento do Brasil, no Centro de Aramar, comandado pela Marinha. O presidente Alfonsín visitou o Centro, em 8 de abril de 1988, quando firmaram a Declaração de Iperó. Pela declaração, o grupo de trabalho conjunto foi transformado em Comitê Permanente e instruído a reunir-se a cada 120 dias, para tratar “de todos os temas de interesse mútuo na área nuclear”.
‘No aspecto político-diplomático, resultou do entendimento bilateral uma confiança recíproca sem precedentes, entre agentes que, anos antes, desenvolviam programas que poderiam ter conduzido a testes com explosivos nucleares’
No aspecto político-diplomático, resultou do entendimento bilateral uma confiança recíproca sem precedentes, entre agentes que, anos antes, desenvolviam programas que poderiam ter conduzido a testes com explosivos nucleares, levando os dois países a uma crescente tensão e possivelmente à corrida armamentista. Em particular, devemos ressaltar a criação da ABACC (Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares), em 1991, que instituiu um regime de inspeções recíprocas aos programas nucleares dos dois países.
Vinte anos depois da Declaração de Iguaçu, e para celebrar a ocasião, os presidentes da Argentina e do Brasil reuniram-se em Puerto Iguazú e firmaram outra Declaração Conjunta sobre Política Nuclear, na qual se comprometem a trabalhar “por um mundo livre de armas nucleares”, “reafirmam a importância da ABACC e do sistema comum de verificação dos programas nucleares como mecanismo de confiança e transparência mútua”.
Nos quarenta anos da Declaração de Iguaçu, ressaltamos a liderança exercida pelos presidentes Raúl Alfonsín e José Sarney, graças a quem foram desmontadas barreiras, iniciados entendimentos, construída a confiança e iniciada a integração regional. Que sirvam de inspiração no momento em que agem forças centrífugas no contexto bilateral e regional.
Eduardo Santos é diplomata, foi secretário-geral do Itamaraty, embaixador no Paraguai e em outros postos, além de assessor na Presidência da República
José Eduardo M. Felicio foi Subsecretário Geral de América Latina no Ministério das Relações Exteriores, embaixador do Brasil no Uruguai, em Cuba e no Paraguai, e serviu na Secretaria Geral do Conselho de Segurança Nacional da Presidência da República.
é diplomata, foi secretário-geral do Itamaraty, embaixador no Paraguai e em outros postos, além de assessor na Presidência da República
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