24 setembro 2025

‘Vale Tudo’ derrapa na reta final, mas ainda mostra uma certa cara do Brasil

Novela não entrou pra história da televisão brasileira apenas por ser ótima e sim por captar o espírito de uma época. Poderia um remake se equiparar à qualidade do original? A nova versão obteve êxito no aspecto de pintar um retrato do Brasil contemporâneo que faz sentido. Nesse contexto, nada é tão absurdo quando estamos em um lugar onde até o mais criativo roteirista teria dificuldade de criar acontecimentos e reviravoltas capazes de rivalizar com a vida real, que por si só, já tem cara de novela

A vilã Odete Roitman (Debora Bloch) em ‘Vale Tudo’. Foto: TVGlobo

Como pode a ficção competir com a realidade política do país?

Vale Tudo, exibida no final entre maio de 1988 e janeiro de 1989, foi uma das novelas mais emblemáticas da história da televisão brasileira.

Escrita por Gilberto Braga (autor do mega sucesso internacional A Escrava Isaura), a trama colocava em oposição duas concepções sobre o povo brasileiro. De um lado, as  pessoas honestas, trabalhadoras, criativas, sempre otimistas e dispostas a dar a volta por cima. De outro, o afamado jeitinho brasileiro, pessoas que tentam sempre levar vantagem, cujos limites éticos são um tanto flexíveis e são capazes das maiores atrocidades para subir na vida. 

O embate entre essas concepções eram plasmadas na dupla de antagonistas: Raquel e Maria de Fátima, mãe e filha, interpretadas por Regina Duarte e Glória Pires. Além disso, havia uma personagem que se tornou referência de vilã de novela: Odete Roitman (interpretada por Beatriz Segall) e um intrigante mistério a ser desvendado (quem matou Odete Roitman?).

O tema de abertura Brasil, composto por Cazuza e interpretado por Gal Costa, sintetizava essa contradição que marcava a trama. 

‘”Vale Tudo” não entrou pra história da televisão brasileira apenas por ser uma ótima novela e sim por captar o espírito de uma época: a do Brasil pós-democratização’

Vale Tudo não entrou pra história da televisão brasileira apenas por ser uma ótima novela e sim por captar o espírito de uma época: a do Brasil pós-democratização, da constituição cidadã  (promulgada em outubro daquele ano).

O choque entre o Brasil honesto e trabalhador e o Brasil da corrupção transcendia os arcos das protagonistas e aparecia em outros núcleos da trama. Ivan (interpretado por Antônio Fagundes), supostamente um homem honesto, só consegue subir de cargo mentindo no currículo e utilizando informação confidencial surrupiada. Em uma cena antológica, o executivo Marco Aurélio (interpretado por Reginaldo Faria) consegue fugir do país com dinheiro desviado da empresa. Enquanto o avião decola ele dá uma “banana” para a Baía de Guanabara. 

Por tudo isso, a nova versão de Vale Tudo, lançada como parte das comemorações do aniversário da rede Globo, antes de estrear já era objeto de polêmicas.

Poderia um remake se equiparar à qualidade do original? Como a adaptação lidaria com as questões éticas do Brasil de 2025? Como ocultar a origem de uma alpinista social numa época em que tudo está nas redes sociais? Como se daria essa discussão sobre vencer na vida em tempos de teologia da prosperidade, coaches e jogos de apostas on-line

Contudo, estamos em 2025 e não em 1988. Do mesmo jeito que as pessoas que escrevem as novelas não são obrigadas a fazê-lo do mesmo modo de quase 30 anos atrás. O tempo do audiovisual é outro, do mesmo modo que o tempo na vida cotidiana. Tudo transcorre numa velocidade muito maior do que somos capazes de processar e muitas vezes não há tempo para reflexões mais elaboradas. O resultado foi que a novela não rendeu a audiência esperada. Muitos se decepcionaram com a superficialidade ou rapidez com que certas situações foram tratadas na novela, que entra na sua reta final com muitas mudanças (algumas bem absurdas) em relação ao roteiro original. 

‘A nova versão da novela obteve êxito nesse aspecto de pintar um retrato do Brasil contemporâneo que faz sentido. Como todo retrato, não temos uma captura precisa do que seria o real, mas uma imagem a partir de um ângulo’

Mesmo assim, ainda é possível dizer que Vale Tudo obteve êxito nesse aspecto de pintar um retrato do Brasil contemporâneo que faz sentido. Como todo retrato, não temos uma captura precisa do que seria o real, mas uma imagem a partir de um ângulo.

Nesse contexto, nada é tão absurdo quando estamos em um lugar onde até o mais criativo roteirista teria dificuldade de criar acontecimentos e reviravoltas capazes de rivalizar com a vida real, que por si só, já tem cara de novela.

Lute como uma mulher

Em 2016, Dilma Rousseff, primeira mulher a ocupar a Presidência do Brasil, teve seu mandato cassado por um processo de impeachment. A presidenta foi acusada de ter cometido crime de responsabilidade pela prática das chamadas “pedaladas fiscais” e pela edição de decretos de abertura de crédito sem a autorização do Congresso.

A votação do impeachment foi marcada pela misoginia e por discursos ultraconservadores. Na ocasião, Jair Messias Bolsonaro, deputado do baixo clero que ocupava mandato de deputado federal há quase três décadas, se destacou ao aproveitar o momento do voto para homenagear Brilhante Ustra, notório torturador, descrito por ele como “o terror de Dilma Rousseff”. Ele, que sempre havia nutrido altas ambições políticas, àquela altura tinha se tornado uma subcelebridade em programas como Superpop e CQC e acabaria sendo eleito presidente em 2018.

‘Se em 2014 uma mulher havia sido reeleita para a Presidência e Luciana Genro havia se lançado na disputada em uma candidatura assumidamente feminista, em 2018 a decisão da maioria dos partidos foi tirar as mulheres do foco’

Se em 2014 uma mulher havia sido reeleita para a Presidência e Luciana Genro havia se lançado na disputada em uma candidatura assumidamente feminista, em 2018 a decisão da maioria dos partidos foi tirar as mulheres do foco. Das treze candidaturas ao pleito daquele ano, onze eram encabeçadas por homens. As mulheres foram relegadas à posição de vice ou nem isso. Houve apenas duas exceções:  Vera Lúcia (PSTU) e Marina Silva (REDE), que se tornou cabeça de chapa após a morte de Eduardo Campos, em um acidente aéreo). 

Pelos critérios adotados pelas redes de televisão, Marina foi a única mulher a participar dos debates. Conhecida pelo temperamento discreto, a candidata não hesitou em confrontar Bolsonaro em relação aos direitos das mulheres. Na internet e nas ruas de diversas capitais do Brasil (e em alguns casos, no exterior), milhares de mulheres e movimentos de minorias, sindicatos e de partidos de diferentes campos do espectro político se uniam num movimento suprapartidário para dizer:  #EleNão

Naquele momento, o único político apontado pelas pesquisas com chance de derrotar Bolsonaro era Luíz Inácio Lula da Silva, que se encontrava preso e impossibilitado de disputar a eleição. Contudo, independente do resultado do pleito, o movimento foi uma tomada de posição das mulheres contra a misoginia e o autoritarismo. 

Mais tarde esse episódio seria lembrado como fundamental para o desfecho de uma trama sombria – a tentativa de golpe perpetrada por Bolsonaro e seus asseclas. Algo que qualquer pessoa minimamente defensora do estado democrático de direito concorda que não vale a pena ver de novo.

Sem nenhuma fraquejada

Por causa do golpe parlamentar que destituiu Dilma Rousseff – posteriormente inocentada das acusações que baseiam o processo de impeachment -, Michel Temer assumiu a Presidência.

O peemedebista havia rompido com a presidenta por carta na qual de queixava de ter sido tratado como um vice decorativo. Ironicamente, este personagem secundário acabaria sendo o responsável pelo maior plot twist desta trama, na qual o país parecia fadado a um novo ciclo de negacionismo, desinformação e autoritarismo. 

Em seu curto mandato, Temer não teria direito à nomeação de nenhum ministro para a Suprema Corte. Mas, em mais um episódio digno de novela, a oportunidade surgiu de uma tragédia: a morte do ministro Teori Zavascki, também em um acidente aéreo. Para ocupar a vaga deixada por ele seria preenchida por Alexandre de Moraes.

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Moraes havia entrado na política por indicação de polĩ́ticos de centro-direita, chegando a ser filiado ao PSDB. O jurista ganhou a confiança de Temer – e a indicação para o Supremo Tribunal Federal em 2015, quando um hacker teria tentado chantagear a então primeira-dama, Marcela Temer, após invadir seu celular. O caso foi rapidamente solucionado pela polícia de São Paulo, na época comandada por Moraes. O magistrado ocupava o cargo de secretário de Segurança Pública no governo do então tucano Geraldo Alckmin. 

‘Em outra reviravolta desta novela da vida real, Alckmin, outrora adversário de Lula, se filiou ao PSB e foi eleito vice-presidente na chapa que reconduziu o petista à Presidência. Se estivéssemos assistindo a uma obra de ficção, isso já seria suficiente para dizer que o roteirista estava pesando a mão’

Em outra reviravolta desta novela da vida real, Alckmin, outrora adversário de Lula, se filiou ao PSB e foi eleito vice-presidente na chapa que reconduziu o petista à Presidência. Se estivéssemos assistindo a uma obra de ficção, isso já seria suficiente para dizer que o roteirista estava pesando a mão. O apelido pejorativo de “picolé de xuxu” deu lugar ao “camarada Geraldo”, que passou a ser ovacionado em comícios. 

Após deixar o governo de São Paulo, Alckmin, que é médico e foi professor universitário, estava trabalhando como comentarista na TV Gazeta, dando dicas de saúde num programa apresentado pelo antigo ídolo da Jovem Guarda, o cantor Ronnie Von. Nem a Raquel de Vale Tudo, que perdeu tudo, voltou a vender sanduíche na praia e se recuperou em menos de uma semana, teve uma volta por cima tão extraordinária.

Além da aliança improvável, o que tornou impossível para a ficção concorrer com a política brasileira foi o fato de que aquele ministro nomeado pelo presidente que ascendeu devido a um golpe, foi justamente o responsável por segurar na unha a permanência do regime democrático no Brasil.

Apesar das ações de obstrução da Polícia Rodoviária Federal (PRF) para impedir que eleitores do Nordeste fossem às urnas nas eleições presidenciais de 2022 – o que havia sido proibido pelo TSE naquele final de semana – a eleição terminou no horário determinado e a divulgação do resultado aconteceu no mesmo dia. Contudo, os atentados à democracia não terminaram aí, como demonstrou o inquérito apresentado no julgamento da trama golpista. Num dos episódios mais bizarros, a mesa do juiz foi usada como latrina durante a invasão e depredação das sedes dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023.   

‘Coube justamente a Moraes, a função de relator no julgamento que condenou um ex-presidente que em toda sua vida pública defendeu o golpe de 1964, o autoritarismo e a tortura de presos políticos’

Nascido no dia em que foi decretado o AI-5 (considerado o ápice da ditadura militar que governou o país), Moraes é torcedor do Corinthians, o time em pleno regime autoritário criou o movimento mais politizado da história do futebol brasileiro: a democracia corinthiana. Coube justamente a Moraes, a função de relator no julgamento que condenou um ex-presidente que em toda sua vida pública defendeu o golpe de 1964, o autoritarismo e a tortura de presos políticos. Uma condenação sacramentada por uma mulher, a ministra Cármen Lúcia. Seu voto, que formou maioria para a condenação, foi proferido com firmeza. Sem nenhuma fraquejada. 

Cenas dos próximos capítulos

Em 1988 personagens principais de Vale Tudo sofreram derrotas que não se resolveram com a mesma facilidade da versão atual.

Desmascarada, Maria de Fátima foi expulsa da mansão dos Roitman, renegada pela mãe e foi parar na rua. Ivan, o galã mais ou menos ético, foi preso após subornar um funcionário público a mando de Odete e cumpriu pena, mesmo alegando que não sabia estar cometendo um crime. 

Já Odete sofreu um bocado antes do fim. Foi rejeitada pela família ao assumir a relação com o amante da ex-mulher do filho e quando descobriram que havia sido responsável pelo acidente que matou seu filho – e não sua filha alcoolista, induzida pela mãe a crer que ela tinha causado o acidente. Foi rejeitada também pelo amante, que deixou bem claro que estava com ela por dinheiro e foi humilhada por ele com críticas terríveis sobre sua aparência. Em 2025, a vilã padece apenas do sofrimento criado pela própria incompetência na execução de seus golpes.

‘Mas, dizíamos no começo deste texto, os tempos são outros, a novela é outra e o Brasil também. Então, tudo bem a reta final do folhetim estar cheia de absurdos’

Mas, dizíamos no começo deste texto, os tempos são outros, a novela é outra e o Brasil também. Então, tudo bem a reta final do folhetim estar cheia de absurdos, como uma vilã inteligente e implacável surfar no discurso feminista, dizendo-se vítima do machismo e do etarismo por ter um companheiro mais jovem. Esse feminismo oportunista pode ser instrumentalizado de acordo com interesses pessoais. Enquanto sabota relações, negócios e a saúde mental de outras mulheres, incluindo as da própria família, Odete se diz atacada por ser uma mulher em posição de poder.

Banida da alta sociedade em 1988, a Maria de Fátima de 2025 ela consegue se reerguer por meio da chantagem e de sua carreira de influencer, já que compreende bem o mecanismo de engajamento das redes sociais. Não é preciso ter substância, mas saber manter-se em evidência. Ivan, ao invés de cumprir pena, consegue se livrar da prisão por meio de chantagem. O pai, Seu Bartolomeu, um jornalista sexagenário, segue trabalhando em bons empregos e ainda não foi substituído por nenhuma IA, graças a uma rede de relações pessoais que não permitem que ele fique uma semana sem emprego.

Nada disso é páreo para a realidade brasileira. Nem bem foi encerrado o julgamento da trama golpista, parlamentares bolsonaristas articulam a votação de um projeto de anistia. Enquanto isso, um deputado federal mantém seu mandato mesmo estando há meses no exterior buscando sanções contra membros da Suprema Corte e prejuízos para economia do Brasil. Ou que o governador do estado de São Paulo, um dos maiores prejudicados pelo tarifaço, tenha deixado de lado o governo para se converter num candidato a candidato

‘Como diria aquela velha canção punk da banda californiana Bad Religion, de vez em quando a realidade é mais estranha que a ficção’

Como diria aquela velha canção punk da banda californiana Bad Religion, de vez em quando a realidade é mais estranha que a ficção.

Aliás, a ficção acaba de imitar a vida. Em Vale Tudo, o personagem Freitas, uma espécie de ajudante de ordens de Marco Aurélio, recentemente se ofereceu para fazer uma delação premiada contra o ex-chefe.

Como se não bastasse, nas últimas semanas, ressurgiu publicamente um personagem que parecia ter sido eliminado da trama. Aécio Neves tem aparecido nas inserções do PSDB, criticando o radicalismo da política brasileira e já começa a ser apontado como possível rival de Romeu Zema (Novo) na disputa pelo governo de Minas Gerais.  

Aguardemos as cenas dos próximos capítulos. 

Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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