Vamos discutir o Brasil?
Chegou a hora de começar a discutir o Brasil e tentar colocar os interesses nacionais permanentes acima de visões setoriais, partidárias e ideológicas, como fazem todos os principais países do mundo, com uma visão de médio e longo prazos.
Nos dias que correm, discute-se tudo, mas pouco ou quase nada se debate sobre o Brasil. Poucos, hoje, pensam no Brasil como País, não como palco de disputas ideológicas e partidárias. A ausência de lideranças no governo, no legislativo, no Judiciário, na classe política, nos setores industriais e agrícolas contribui para a discussão fatiada, sem a preocupação mais geral de pensar o Brasil em um mundo em grandes transformações.
Está mudando a economia global, a ordem internacional, a geopolítica, o meio ambiente e a mudança de clima; a inovação tecnológica se acelerou e a inteligência artificial criou desafios na área civil e militar – a geoeconomia e a segurança nacional são as forças do momento.
Em termos econômicos, desde o fim da Grande Guerra, em 1945, a força dominante é o liberalismo, com a redução do papel do Estado e o livre comércio em conformidade com o sistema de Bretton Woods (Fundo Monetário Internacional – FMI; Banco Mundial – BM; General Agreement on Tariffs and Trade – GATT; e depois Organização Mundial do Comércio – OMC). A globalização, que aproximou países, empresas e pessoas, possibilitou a proliferação de acordos comerciais e o estabelecimento de cadeias produtivas baseadas na eficiência. O fim da URSS, em 1991, com a nova ordem baseada em uma única superpotência, a entrada da China na OMC, em 2001, e a concentração das cadeias produtivas para a China, foram alguns dos marcos na ordem, criada em 1945. A volta da China como potência econômica e comercial global, traz o elemento geopolítico na cena econômica. Com Donald Trump, em 2017, são introduzidas medidas restritivas dos EUA em rota de colisão contra a China, começa o esvaziamento da OMC e a perda de força das regras multilaterais de comércio. Essa tendência é agravada pela pandemia e, mais recentemente, pelos conflitos Rússia/Ucrânia, Israel/Hamas/Hezbollah, o novo regime na Síria, as tensões entre China e Taiwan e a reeleição de Donald Trump, acelerando a configuração de uma nova ordem econômica.
Nessa nova ordem, a eficiência na definição de políticas econômicas é substituída por objetivos de segurança, soberania e poder. O livre comércio está sob ataque com o esvaziamento e enfraquecimento da OMC, a negociação de acordos comerciais regionais (não bilaterais), a realocação das cadeias produtivas, o crescente número de restrições comerciais por razões políticas, pela busca de autossuficiência são algumas das mudanças. A globalização passa por importantes ajustes com a realocação das cadeias produtivas, pelo aumento dos subsídios, do custo transporte e pela desorganização do mercado agrícola e energético. Considerações sobre meio ambiente e mudança de clima passaram a ter impacto sobre as negociações comerciais. O nacionalismo representado pelo fortalecimento das economias domésticas para conseguir uma autonomia soberana em áreas consideradas estratégicas e a definição de novas políticas industriais afetaram diretamente o liberalismo e o livre comércio, gerando tensões entre os EUA e a Europa, com impactos globais, em especial sobre os países em desenvolvimento.
O populismo fortalece o intervencionismo protecionista. Surge a geoeconomia, onde considerações de poder, com base na segurança nacional, passaram a influir na aplicação de restrições comerciais como arma política, como as sanções, que incluíram, entre outras, a limitação dos semicondutores, a retirada de empresas chinesas da Bolsa de NY e o congelamento de reservas internacionais de terceiros países. Assim, a emergência da China e da Ásia como eixos de poder econômico, a disputa com os EUA e as guerras Rússia/Ucrânia e Israel/Hamas/Hesbollah podem levar a uma nova Guerra Fria, em outras bases, com divisão do mundo (Ocidente/Anti-Ocidente), não em função de disputa ideológica ou militar, mas econômica, tecnológica e comercial.
Em resumo, a nova ordem econômica está baseada na realocação das cadeias produtivas (nearshoring, e não offshoring); nas preocupações com o meio ambiente e a mudança do clima, na segurança energética e alimentar; no rápido avanço das tecnologias em várias áreas (inteligência artificial, computação, biotecnologia); na formação de blocos regionais; no uso da força, por meio de instrumentos econômicos e comerciais (utilização da moeda e de restrições tarifárias) como meio de alcançar objetivos geopolíticos, expressos na geoeconomia; e o mundo com crescimento reduzido, com altas taxas de juro e inflação.
Consequências da nova ordem sobre o Brasil
Esse é o pano de fundo quando se afirma que a geopolítico e a geoeconomia mudaram o mundo. São muitas as consequências negativas da nova ordem econômica sobre o Brasil. O enfraquecimento do multilateralismo, com a perda de relevância da OMC, deixa países como o Brasil sem proteção jurídica para o desrespeito das regras internacionais. As restrições às exportações brasileiras, sobretudo pela política ambiental em relação à Amazônia, assim como aquela em função da aprovação de nova regulamentação europeia de desmatamento, e as compensações sobre emissões de gás de efeito estufa, devem ser acompanhadas e superadas.
Do ângulo da política internacional, a ordem global nos últimos tempos vem se caracterizando pela incerteza e insegurança. As transformações na economia global, a pandemia, as tensões entre os EUA e a China, a Guerra da Rússia na Ucrânia, a guerra entre Israel e o Hamas em Gaza e o novo regime na Síria estão afetando todos os países. Os ataques terroristas da organização militar Hamas a Israel e a invasão da Ucrânia pela Rússia trouxeram um elemento gravíssimo ao cenário global pelo impacto econômico e político que poderão acarretar, se a escalada dos conflitos não for contida, a ameaça de guerra nuclear, caso haja um ataque ao Irã.
Comparativamente à curta dominância indisputada dos EUA, logo após a implosão do socialismo no início dos anos 1990, até a sua ação unilateral de invasão do Iraque, em 2003, quando a unanimidade sobre sua liderança global começou a ser contestada, o período atual já não é tão promissor quanto o foi naqueles anos de relativa convivência pacífica entre as grandes potências. O governo de Washington certamente agravou o grau já latente de tensões econômicas e militares com respeito à China. A Rússia, depois de longa letargia e recuperação do desastre econômico dos anos 90, começou a reemergir, sob a liderança de Vladimir Putin, tornado líder indisputado de uma potência sobretudo militar, ajudado pela elevação excepcional dos preços dos combustíveis fósseis.
O enfraquecimento do multilateralismo, o fortalecimento do nacionalismo, as preocupações com o meio ambiente e a mudança do clima, a geoeconomia e os avanços tecnológicos são algumas das facetas da nova ordem internacional.
A nova geopolítica tem uma dimensão geográfica relativamente similar à da antiga confrontação bipolar – Leste/Oeste – mas tem contornos econômicos, sobretudo comerciais e tecnológicos, bastante diferentes da primeira Guerra Fria: a ascensão mercantil da China, sua plena capacitação para a quinta revolução industrial, ao lado do rebaixamento econômico da Rússia, introduzem um novo cenário para os países em desenvolvimento. No período anterior, praticamente a totalidade do então chamado Terceiro Mundo mantinha relações econômicas com as economias avançadas do Atlântico Norte, várias ex-metrópoles coloniais. Atualmente, a China é a primeira parceira comercial de mais de uma centena dos países em desenvolvimento e emergentes, entre eles o Brasil, desde 2009. Daí o interesse destes países na consolidação de mercados e na atração de investimentos e empréstimos a partir da segunda economia global. Consequências políticas daí advêm, como o recente interesse demonstrado por muito deles numa admissão ao bloco do Brics.
Até o novo governo nos EUA, com Donald Trump, desenhava-se um novo cenário internacional, com o mundo dividido entre o Ocidente (EUA, EU, Japão, Australia e outros países) e um movimento liderado pela China, tendo o BRICS ampliado como embrião. Agora, mesmo este cenário está mudando com a aproximação dos EUA com a Rússia. O próprio conceito de Ocidente está em questão com a perspectiva de uma ação conjunta dos EUA e Rússia, contra a Europa.
Além de não estar preparado para reagir a essas mudanças globais, nas discussões tupiniquins, são ignoradas as mudanças ocorridas nas últimas décadas no Brasil e no seu entorno geográfico (América Latina e do Sul), relevantes para uma análise objetiva com uma visão estratégica de médio e longo prazos.
Qual o impacto sobre o Brasil dessas transformações? Quais as decisões estratégicas que terão de ser adotadas para o Brasil responder a esses desafios. Como tentar reduzir as vulnerabilidades e aproveitar as oportunidades que se oferecem na nova ordem econômica e mundial? Estão governo e setor privado preparados para responder às novas e tradicionais ameaças à soberania, ao desenvolvimento e à segurança do país.
A divisão e a polarização da sociedade brasileira influenciam a discussão e o debate sobre os múltiplos aspectos das questões nacionais. O foco de debate reproduzido pela mídia tradicional e pela mídia social são aspectos importantes da economia, da política, das questões sociais, das questões identitárias, das reformas estruturais, da relação entre o executivo, legislativo e judiciário, das questões ambientais e de mudança de clima, alguns elementos relacionados com o cenário global (guerras, protecionismo, inovação, IA, entre outras). A radicalização na política interna torna difícil, neste momento, a discussão sobre um projeto nacional para o Brasil. Na impossibilidade de se chegar a um acordo em torno de um projeto nacional por diferenças ideológicas e político-partidárias, torna-se necessário preencher essa grave lacuna do ponto de vista estratégico, pois não existe qualquer documento oficial (e poucos de origem na academia) que pensem o Brasil no contexto global e que tenha sido discutido com a sociedade civil.
Alguns países no mesmo nível de renda do Brasil mostram suas aspirações em projetos de objetivos de médio e longo prazos, como a Índia, que pretende se tornar um país desenvolvido em 2047, no centenário de sua independência. Em 2025, no Brasil, não há um plano ou projeto com objetivos econômicos e políticos a serem discutidos pela sociedade.
Chegou a hora de começar a discutir o Brasil e tentar colocar os interesses nacionais permanentes acima de visões setoriais, partidárias e ideológicas, como fazem todos os principais países do mundo, com uma visão de médio e longo prazos.
O lugar do Brasil no mundo
O documento “Uma estratégia de segurança nacional – o lugar do Brasil no mundo” (ver o trabalho no site www.irice@irice.com.br), preparado pelo IRICE, procura contribuir para um debate que está atrasado, mas que se faz necessário. O documento –necessariamente genérico – trata dos objetivos nacionais, do lugar do Brasil no mundo, sinaliza as prioridades e vulnerabilidades de uma potência de médio porte emergente que tem um peso como 8ª. economia global, com um território continental e mais de 210 milhões de habitantes, sempre com uma visão estratégica e não conjuntural. Um documento que vai além da Estratégia Nacional de Defesa e da Política Nacional de Defesa, produzidos pelo Ministério da Defesa, que refletem posições nacionais do ponto de vista setorial.
O trabalho é um pretexto para se discutir o Brasil. Desde janeiro passado, estão sendo realizados encontros virtuais e presencias para suscitar o debate sobre uma estratégia para o Brasil, acima dos interesses ideológicos e partidários, com uma visão de médio e longo prazos. Com isso, pretende-se começar a focalizar o Brasil, em um novo mundo, em complemento ao debate conjuntural dos problemas políticos, econômicos e sociais nacionais. As sugestões da sociedade civil, quando compatíveis com o trabalho, serão incorporadas para aperfeiçoá-lo.
Já foram realizados e estão previstos até fins de março nove encontros, por iniciativa de grupos empresariais e reuniões de trabalho do IRICE com a Escola Superior de Guerra, a Escola de Guerra Naval e a ECEME.
Durante todo o corrente ano, o Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE), com o apoio do Portal Interesse Nacional, organizará uma série de outras reuniões virtuais e presenciais, em São Paulo e fora dele, a fim de sensibilizar a sociedade civil para esse debate. Serão buscadas parcerias com o Congresso, partidos políticos e organizações governamentais e da sociedade civil, jornais e outras instituições, além de formadores de opinião na mídia social, que possam se interessar.
No final do ano, a versão final da “Estratégia para o Brasil” será encaminhada aos candidatos à presidência da República na expectativa de que, pela primeira vez, o Brasil e seu lugar no mundo possam ser discutidos na campanha eleitoral em 2026.
Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional