Religião e Poder: a Ascensão de um Projeto de “Nação Evangélica” no Brasil?
É possível falar em projeto de poder evangélico no Brasil? A combinação de três elementos – expansão demográfica de pessoas que se identificam com a fé evangélica (hoje representando, aproximadamente, um terço da população), crescente politização de temas sobre costumes e a ampliação de lideranças evangélicas com mandato eletivo – suscitou questionamentos sobre em que medida estaríamos diante de uma suposta “evangelização” da política nacional.
De fato, o início deste novo ciclo político, com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder, foi marcado por transformações significativas – algumas radicais, outras nem tanto – na relação básica entre Estado, religião e sociedade. No momento em que escrevo este artigo, temos seis ministros declaradamente evangélicos – alguns dos quais já disseram que tomam decisões públicas guiados pela Bíblia. A bancada evangélica, que realiza cultos semanais na Câmara dos Deputados, conta com quase uma centena de deputados e senadores atuantes. O próprio presidente, ainda que não se declare evangélico, frequenta eventos em diversas igrejas e adotou um chavão bíblico na sua luta contra a imprensa, citando João 8:32: “e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”.
Ainda assim, falta muito para o Brasil se tornar uma “nação evangélica”. Do ponto de vista de políticas públicas, os efeitos da ascensão política de grupos pentecostais e neopentecostais são gradativos, muitas vezes dispersos e nem sempre eficientes. Isso se deve a alguns fatores: primeiro, não é possível tratar os evangélicos como um grupo homogêneo em termos de crenças, interesses ou atitudes. A pluralidade protestante no Brasil se manifesta tanto no plano teológico e eclesiástico (denominações tradicionais, pentecostais e neopentecostais) quanto em outras clivagens, sejam elas regionais, de renda ou de ideologia.
Segundo, é necessário distinguir entre lideranças evangélicas e seus seguidores. A filiação a uma igreja não necessariamente se traduz em votos em pastores locais ou na adesão a pautas conservadoras específicas. Estudo realizado por Esther Solano, Pablo Ortellado e Marcio Moretto, junto aos participantes da Marcha para Jesus de São Paulo, em 2017, mostra que parte expressiva dos evangélicos rejeita o envolvimento político de suas lideranças, não se identifica com a classe política e pregam a tolerância à diversidade nas escolas[1]. Em outras palavras, a influência de líderes religiosos sobre os “crentes”, como os próprios evangélicos se denominam, é parcial e assimétrica.
Terceiro, os evangélicos representam somente um grupo – heterogêneo, frise-se – dentro de uma constelação de forças políticas que sustenta o governo Bolsonaro. Eles não necessariamente se identificam com outros grupos, como as Forças Armadas, os “lavajatistas” anticorrupção, os ideólogos influenciados por Olavo de Carvalho, os ruralistas ou os liberais econômicos. Há afinidades pontuais em certos temas, mas divergências e choques em tantos outros. Controvérsias em torno da mudança da embaixada brasileira para Israel ou demandas pela isenção da tarifa elétrica para igrejas, por exemplo, colocou evangélicos em rota de colisão com a equipe econômica do governo.
A ideia deste artigo é mapear, em linhas muito gerais, o que chamo de “projeto de poder” evangélico no Brasil. Consideradas as ressalvas acima, farei referência a um projeto (neo)pentecostal, entendendo que são as denominações ligadas ao pentecostalismo e ao neopentecostalismo que se incumbiram, majoritariamente, da busca por ocupação de espaços de poder, dentro e fora do Estado. Esse projeto se organiza em torno de certos fundamentos teológicos, de atores específicos e de pautas abrangentes, temas que serão abordados nas seções a seguir[2].
Os fundamentos do projeto de poder (neo)pentecostal
Em linhas gerais, o projeto de poder (neo)pentecostal se sustenta sobre dois pilares: a teologia da prosperidade e a teologia do domínio. Apesar de terem origens tão antigas quanto o próprio protestantismo, ambas as teologias ganharam força nos Estados Unidos do pós-segunda guerra e foram rapidamente exportadas para outros cantos do mundo. A fusão desses movimentos, conhecida como neopentecostalismo ou “terceira onda pentecostal”, popularizou-se a partir das décadas de 1970 e 1980. Suas principais características são o abandono dos traços sectários e ascéticos do pentecostalismo e a busca de adaptação às transformações sociais, sobretudo relativas aos valores, interesses e práticas da sociedade de consumo.
A teologia da prosperidade defende que a fé cristã é recompensada com bênçãos materiais, como bem-estar, saúde e boa situação financeira. Do ponto de vista da amplitude da religião, a ênfase na dimensão econômica da fé possui duas implicações importantes: em primeiro lugar, a religião alcança e se enraíza entre os estratos mais pobres da população, a quem ela estende uma vasta rede de proteção social e oferece, além de promessas de abundância, soluções mágicas, curas físicas e espirituais e resolução de problemas familiares ou afetivos. Em segundo lugar, a tradução de fé em prosperidade permite uma justificativa espiritual para o avanço das condições de vida de uma classe média emergente que traz, nesse processo, novas demandas em termos culturais, educacionais e econômicos.
Há também ganhos materiais para as próprias igrejas, que passam a ofertar serviços religiosos variados em troca de retorno, notadamente em forma de dízimo ou doações para as obras eclesiais. Esse envolvimento financeiro entre o fiel e sua igreja é estimulado a partir da ideia de que a graça divina é fruto do sacrifício. Sendo assim, muitos veem e estimulam as grandes contribuições como demonstração inquebrantável da fé. Paradoxalmente, a pobreza é colocada como a ausência de fé – e deve ser combatida com sacrifícios financeiros ainda maiores. Essa dinâmica é crucial para a sobrevivência e a longevidade do empreendimento (neo)pentecostal.
A teologia do domínio, por sua vez, pressupõe que Deus e o diabo se encontram em conflito permanente, tanto no plano espiritual quanto no terreno, sobre o controle do mundo. A tarefa do cristão, nesse contexto, seria não somente a obediência aos mandamentos bíblicos, mas também a guerra incansável contra demônios que se manifestam na cultura e nas artes, na educação, na imprensa, nos negócios, na política, na família e na própria religião. Conhecida como a visão profética das sete montanhas (ou sete montes), essa doutrina – enunciada, entre outros, pelo pastor Johnny Enlow – ensina que o Reino de Deus será erguido quando os cristãos ocuparem espaços em todas essas dimensões da sociedade.
O governo é somente um dos espaços a serem ocupados, mas essencial para viabilizar a conquista dos demais. Nos Estados Unidos, o “dominionismo”, utilizado muitas vezes com conotações negativas, refere-se a uma suposta agenda da direita fundamentalista cristã que envolveria o soerguimento de uma nação cristã, supremacista e estritamente baseada nas leis da Bíblia a partir da captura das instituições democráticas. Aqui, uma versão mais branda dessa teologia, bastante difundida entre denominações neopentecostais, sugere que a ocupação de espaços deve ser feita por evangelização, pela política representativa e, por vezes, pela violência (vide Mateus 11:12).
Alguns anos atrás, vídeos e fotos de marchas de um grupo de evangelização da Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd) causaram polêmica. Chamados “Gladiadores do Altar”, os jovens pareciam preparar-se para a guerra santa. Ainda que a própria igreja tenha buscado diminuir a relevância dos “gladiadores”, alegando tratar-se de mera missão evangelizadora, algumas de suas páginas nas redes socais sugerem que eles propagavam discurso de ódio contra homossexuais e contra outras religiões, sobretudo as de matriz africana, como o candomblé e a umbanda. Os desdobramentos dessa radicalização violenta são visíveis, haja vista o aumento de denúncias contra grupos – muitas vezes ligados ao tráfico – que invadem e destroem centros, terreiros e igrejas ao redor do país.
Os agentes do projeto de poder (neo)pentecostal
Esse projeto de poder organiza-se em torno de diversos atores, que desempenham funções sociais, econômicas e políticas variadas. No centro dessa articulação estão as igrejas. Do lado pentecostal, as Assembleias de Deus (ADs) possuem a maior força, seja graças ao número de fieis (12,3 milhões pelos números do IBGE, de 2010; 22,5 milhões pelas estimativas da própria Assembleia, de 2009), seja por algumas de suas lideranças midiáticas. Dentre as neopentecostais, destaca-se a Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), liderada pelo bispo Edir Macedo. Fundada em 1977 e estimando mais de 8 milhões de fiéis (dados de 2012; censo de 2010 indica 1,8 milhão), a Universal não é somente a maior denominação da “terceira onda”, como também foi considerada a quinta instituição mais prestigiosa entre os brasileiros, em pesquisa Datafolha de 2015 – ficando atrás da imprensa, das redes sociais, da Igreja Católica e das Forças Armadas.
Uma das características mais importantes do movimento pentecostal é sua fragmentação. As ADs, por exemplo, estão divididas entre a Convenção Geral das Assembleias de Deus no Brasil (fundada em 1930 e liderada pelo pastor José Wellington Costa Júnior) e as mais recentes Convenção Nacional das Assembleias de Deus no Brasil (também conhecida como Ministério da Madureira, fundada em 1958 e presidida pelo bispo Samuel Ferreira) e Convenção da Assembleia de Deus no Brasil (fundada em 2017, sob o comando do pastor Samuel Câmara). Além delas, atua de maneira independente o ministério Vitória em Cristo, do pastor e televangelista Silas Malafaia.
Na raiz dessas clivagens estão divergências teológicas, eclesiásticas e, principalmente, políticas: Samuel Câmara, hoje, exerce grande influência entre os assembleianos da região Norte do país, a única em que o número de evangélicos supera o de católicos. A família Ferreira, representada pelo patriarca (e bispo primaz) Manoel e seus filhos, Samuel e Abner, está à frente do Ministério da Madureira, com grande força no Rio e em São Paulo. O eixo RJ-SP também é campo de batalha entre lideranças da Convenção Geral e do Vitória em Cristo.
O mesmo ocorre com as igrejas neopentecostais. Dos rachas da Universal, nasceram a Igreja Internacional da Graça de Deus, fundada em 1980 pelo cunhado de Macedo, o missionário R.R. Soares (com mais de 1 milhão de fiéis em 2014) e a Igreja Mundial do Poder de Deus, criada em 1998 pelo apóstolo Valdemiro Santiago (com quase 800 mil fiéis em 2017). Além delas, também se destacam a Igreja Apostólica Renascer em Cristo, inaugurada pelo apóstolo Estevam Hernandes em 1986 e idealizadora da Marcha para Jesus no Brasil; a Igreja Sara Nossa Terra, criada pelo bispo Robson Rodovalho em 1992 e reconhecida como uma das comunidades neopentecostais brasileiras com maior alcance global. Ambas alegam ter mais de um milhão de seguidores.
A disputa pelo mercado da fé fez com que cada uma dessas igrejas, sobretudo as neopentecostais, erguessem expressivas estruturas empresariais e midiáticas. Da administração financeira ao recrutamento e formação de novos pastores, a gestão eclesiástica possui nível de profissionalismo comparável ao de multinacionais. Os resultados, em termos de rentabilidade, são eloquentes: impulsionada por doações, a arrecadação das igrejas praticamente dobrou entre 2006 e 2013, segundo dados da Receita Federal.
As lideranças, naturalmente, foram grandes beneficiárias da prosperidade dos negócios. Em matéria de 2013, a Forbes compilou estimativas sobre o patrimônio dos principais líderes evangélicos brasileiros: Macedo (950 milhões de dólares), Santiago (220 milhões), Malafaia (150 milhões), R.R. Soares (125 milhões) e Hernandes (65 milhões). Como consequência da fortuna, estilos de vida muitas vezes opulentos e frequentes desentendimentos com a justiça e a Receita. Macedo, assim como Hernandes e sua esposa, a bispa Sônia, já foram presos e ainda sofrem processos no Brasil e nos Estados Unidos.
Outra característica visível da expansão das igrejas (neo)pentecostais é a diversificação de atividades. Além da expansão dos templos dentro do país e além-fronteiras, muitas dessas comunidades possuem redes de televisão e rádio (ou espaço cativo em canais abertos), jornais, editoras e gravadoras gospel, que fidelizam um público religioso em franca ascensão.
Nesse sentido, a Universal é exemplar: controla, hoje, a segunda maior emissora aberta do país, a Record (parte do quarto maior conglomerado midiático do país, o Grupo Record), além de possuir um canal religioso, a TV Universal; publica a Folha Universal, com tiragem semanal superior a 2 milhões, além de jornais em Portugal e na África do Sul; esta à frente da gigante radiofônica Rede Aleluia, com afiliadas em todo o país; comanda a Line Records, que já lançou ou produziu grandes nomes da música cristã contemporânea.
Por fim, existem crescentes interações entre a fé evangélica, o crime organizado e o tráfico de drogas. Esse fenômeno está relacionado, sobretudo, à força das igrejas na periferia de grandes centros urbanos, como Rio ou São Paulo, assim como à sua entrada no sistema carcerário. Deve-se ressaltar que nenhuma denominação aprova ou referenda a relação entre seus seguidores, o tráfico e o crime. Ainda assim, existem afinidades eletivas entre o mundo do tráfico e as duas principais teologias neopentecostais – a prosperidade e o domínio – que se manifestam, entre outras coisas, na formação de milícias evangélicas contra minorias religiosas em regiões periféricas.
Evangélicos e política
É na política, contudo, que o projeto de poder dos grupos evangélicos se realiza. Ainda que o envolvimento de pentecostais na disputa partidária seja antigo e remonte à década de 1960 – quando a denominação pentecostal O Brasil para Cristo, fundada pelo pastor Manoel de Mello e Silva, elegeu um deputado federal e um estadual –, foi no contexto da redemocratização que as igrejas buscaram ocupar espaços legislativos. Abandonando o isolamento político que marcou a evolução do protestantismo no Brasil, lideranças evangélicas passaram a se guiar pelo lema “irmão vota em irmão” e colocaram em marcha alguns pressupostos da teologia do domínio.
A Assembleia de Deus foi pioneira nesse processo. Desde as eleições constituintes de 1986, ano em que lideraram a criação da Frente Parlamentar Evangélica (FPE), os assembleianos estabelecem estratégias para o lançamento de candidaturas oficiais em todos os estados. Mais tarde, a Universal aprimorou métodos de seleção de candidatos a partir de processos verticais e centralizados na cúpula da igreja, baseando-se em recenseamento e critérios geográficos. Embora ambas tenham seus próprios partidos – o Partido Social Cristão (PSC) é ligado às ADs, ao passo que o Republicanos (antigo Partido Republicano Brasileiro, PRB) é comandado por líderes da Iurd, como o bispo licenciado Marcos Pereira) –, as igrejas se beneficiam da fragmentação partidária e do voto proporcional de lista aberta para amplificar sua capilaridade regional.
Tradicionalmente, lideranças políticas evangélicas concentraram-se em partidos do chamado “centrão”, hoje representados por legendas como Partido Progressista (PP), Democratas, Partido Social Democrático (PSD), Partido da República (PR), além dos próprios PRB e PSC. Foi dali que conseguiram exercer grande influência sobre o governo Lula. Estabelecendo uma relação de coexistência com forças de esquerda, muitos grupos evangélicos amealharam cargos, concessões de rádio e TV, passaportes diplomáticos e, sempre que possível, contiveram o avanço de pautas progressistas. No governo Dilma, o relacionamento entre a presidente e evangélicos se esgarçou rapidamente, abrindo espaço para a considerável adesão dessas lideranças ao processo de impeachment, em 2016 (sob a batuta do assembleiano Eduardo Cunha), e ao governo Michel Temer.
A despeito da crescente força legislativa dos evangélicos, observada na expansão de sua bancada no Congresso, faltava-lhes um candidato majoritário com viabilidade eleitoral. Muitos acreditaram que Marina Silva, convertida à Assembleia de Deus em 1996, desempenharia esse papel nos pleitos de 2010 e 2014. No entanto, a trajetória política da ex-senadora e ex-ministra acreana, intimamente ligada ao Partido dos Trabalhadores (PT) e às causas ambientais, bem como sua hesitação diante de temas controversos como aborto e união homoafetiva, expuseram a fragilidade da adesão evangélica à sua candidatura.
Nas eleições de 2018, o ex-capitão Jair Bolsonaro corporificou essa expectativa de muitos evangélicos. Outrora mero parlamentar corporativista e de declarações grosseiras, passou a militar por pautas cristãs no contexto da crescente polarização política da última década. Com esposa e alguns de seus filhos frequentadores da Igreja Batista, o católico Bolsonaro, aos poucos, acercou-se de lideranças evangélicas. Foi Silas Malafaia quem celebrou seu terceiro casamento, com Michelle, em 2013. No ano seguinte, tentou, com apoio do deputado Marco Feliciano (PSC-SP), assumir a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. Em 2016, filiou-se ao PSC e, em seu primeiro grande evento na nova legenda, viajou com os filhos para Israel e foi batizado pelo pastor Everaldo Pereira nas águas do rio Jordão. Até poucos dias da eleição de 2018, o mais cotado para ser vice na chapa de Bolsonaro era seu amigo, pastor e ex-senador Magno Malta (PR-ES).
Não surpreende, portanto, que muitos evangélicos tenham se encantado com a retórica de Jair Bolsonaro, em sua trajetória rumo à presidência da República. “Deus acima de tudo! Não tem essa historinha de Estado laico não. O Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias”, disse o então pré-candidato a uma plateia de apoiadores em Campina Grande (PB), em fevereiro de 2017. Um ano mais tarde, Bolsonaro traria a expressão máxima do projeto nacionalista cristão em seu slogan de campanha: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.
Estima-se que dois terços dos votos evangélicos no segundo turno de 2018 tenham ido para Bolsonaro. Isso os coloca como um dos principais grupos responsáveis pela eleição do novo presidente. Não obstante, deve-se chamar atenção ao fato de que uma parcela expressiva da população evangélica rejeitou ou não aderiu ao projeto bolsonarista, o que reforça as premissas enunciadas na introdução deste artigo. No limite, a convergência programática no plano das elites políticas não se traduz necessariamente em voto ou em apoio.
As pautas do projeto de poder (neo)pentecostal
É inegável, por outro lado, que a vitória de Bolsonaro também tenha sido o triunfo de diversas lideranças evangélicas – quase todas elas presentes na tribuna presidencial nas comemorações do último 7 de setembro. Uma vez de posse do poder político, elas buscam o passo definitivo de seu projeto, no plano das ideias (e das leis): politizar os temas caros à sua fé, sobretudo no campo dos costumes. A intenção é travar, em pé de igualdade política, uma “guerra cultural” contra as forças progressistas e secularistas – que, segundo eles, dominaram a cultura e as artes por décadas e foram responsáveis não só pelo colapso moral do país, mas também pela própria marginalização social dos evangélicos.
A “crentefobia”, tema que vem ganhando certo destaque na imprensa, somente poderia ser combatida por meio do resgate das raízes cristãs do país. Daí a força do projeto nacionalista cristão encampada pelo novo governo. Ainda que a indissociabilidade entre fé e patriotismo toque os corações de muitos outros cristãos, entre católicos e espíritas, a mensagem é particularmente forte entre comunidades e lideranças evangélicas, que veem em Bolsonaro não somente a concretização de pautas específicas, mas também do reconhecimento de sua ascensão política e social. Um dos exemplos mais eloquentes dessa deferência foi dado em julho de 2019, quando o presidente prometeu que um de seus indicados para o Supremo Tribunal Federal seria “terrivelmente evangélico”.
Dessa forma, ao contrário de outros governos, que abriram espaço para políticos evangélicos como forma de compor coalizões (vide os casos de Marcelo Crivella, George Hilton e Marcos Pereira, ministros de Dilma e Temer ligados à Iurd), a nomeação de diversos evangélicos para a Esplanada reveste-se de grande simbolismo. São eles Onyx Lorenzoni (ex-chefe da Casa Civil e atual ministro da Cidadania), o general Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo), Marcelo Álvaro Antônio (Turismo), André Luiz Mendonça (Advocacia-Geral da União), Abraham Weintraub (Educação) e Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos). Os dois últimos estão na vanguarda da chamada guerra cultural.
Na mesma linha do que se transformou o nacionalismo cristão norte-americano[3], os guerreiros culturais tupiniquins vêm buscando usar as alavancas do Estado para promover transformações na legislação e em políticas públicas sobre temas como aborto, união homoafetiva, “ideologia de gênero” e abstinência sexual – ou seja, pretendem exercer maior controle sobre os corpos, sobretudo femininos. Além disso, buscam realocar recursos públicos das artes, da cultura e do entretenimento em favor de grupos religiosos e temáticas cristãs. Mas, a disputa interna por poder, seja entre igrejas ou entre evangélicos e grupos fundamentalistas católicos, geralmente associados ao “olavismo”, assim como as complexas dinâmicas legislativas, fazem com que o avanço dessas pautas de costumes seja muito lento – e nada garante que elas serão levadas a cabo num futuro próximo.
Guilherme Casarões é professor da Fundação Getúlio Vargas, doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual de Campinas. Coordena o Observatório da Extrema Direita
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