Um balanço das relações civis-militares no primeiro ano do governo Lula
O interesse em democratizar as relações entre Estado, sociedade e Forças Armadas reside num esforço dos civis em reduzir a autonomia das Forças Armadas e, por isso, a problemática é como fazer os militares aceitarem essa redução de poder sem que se rebelem ou conspirem contra um governo que foi eleito de forma democrática
Por Anaís Medeiros Passos*
O interesse em democratizar as relações entre Estado, sociedade e Forças Armadas reside num esforço dos civis em reduzir a autonomia das Forças Armadas e, por isso, a problemática é como fazer os militares aceitarem essa redução de poder sem que se rebelem ou conspirem contra um governo que foi eleito de forma democrática. Espera-se, portanto, que em uma democracia consolidada os militares não se manifestem politicamente, inclusive em períodos de instabilidade. O processo para que esta situação ideal seja alcançada não é linear e implica, portanto, avanços e retrocessos, dependendo dos interesses dos atores que ocupam as instituições civis e militares. Afinal, para reduzir a autonomia dos militares, é crucial haver vontade por parte das elites políticas.
Conforme Cottey; Edmunds; e Forster (2002) assinalam, dois tipos de reformas acompanham a instalação de relações civis-militares democráticas. O primeiro tipo de reforma envolve reduzir as prerrogativas políticas dos militares, remover oficiais militares da ativa da arena e diminuir sua inclinação e capacidade de intervir através de incentivos e constrangimentos legais – e, eu agrego, simbólicos. Em outras palavras, fazer com que militares, “famintos” pelas vantagens corporativas que o poder lhes proporciona, se autocontrolem e não conspirem contra governos eleitos democraticamente.
Historicamente, a passagem para esta fase envolve a imposição vertical da autoridade civil, o que implica riscos, já que afeta negativamente a preferência das elites militares em ter autonomia política. O Brasil historicamente optou pela acomodação de interesses entre elites políticas conservadores e elites militares. Ao invés de uma imposição da liderança civil nesta área, a transição democrática implicou a manutenção da influência política de militares que haviam integrado o regime militar (Arturi, 2001). Devido ao efeito de dependência em relação à trajetória que os estudos sobre desenvolvimento econômico assinalam, é mais difícil sair deste lugar, uma vez que os interesses e as dinâmicas tenham se consolidado nesta área. Isto não significa que o Brasil tenha perdido a sua vez na fila, mas sim que os custos para democratizar as relações entre civis e militares são mais altos fora de períodos de conjunturas críticas e momentos formativos.
O segundo tipo de reformas diz respeito à consolidação dos parâmetros institucionais democráticos, incluindo a disponibilidade de recursos materiais para o exercício da autoridade civil nas políticas de defesa e a responsabilização por desvios de condutas ou crimes relativos à profissão militar (Cottey; Edmunds; Forster, 2002). Ou seja, trata-se de tornar efetivas as regras/instituições de controle civil que foram criadas na etapa. Em outras palavras, é fazer funcionar as instituições de controle das atividades militares e tornar as forças armadas responsivas às diretrizes estabelecidas pelas autoridades políticas.
O Brasil havia se encaminhado há mais de uma década para as reformas de segunda geração, quando o Ministério da Defesa, presidido por um civil (Nelson Jobim, 2007-2011), teve as suas estruturas fortalecidas em detrimento do poder corporativo dos comandantes militares. Durante este período, medidas importantes foram realizadas como a modificação do sistema de promoções dos oficiais-generais e da elaboração orçamentária, sobre as quais anteriormente o Ministro da Defesa não tinha autoridade, além de criar um Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas na mesma linha hierárquica que os comandantes militares (Lei Complementar n. 136/2020). Porém, faltou recheio a essas modificações legais.
Durante o governo de Dilma Rousseff (2011-2016), a decisão de estabelecer uma Comissão Nacional da Verdade, mesmo sem a possibilidade de revisão da Lei da Anistia, gerou ressentimento por parte de muitos oficiais militares, incluindo oficiais da ativa e da reserva. A “gota d’água” seria a publicação de uma lista de 377 agentes do estado no relatório da Comissão Nacional da Verdade, acusando-os de “crimes contra a humanidade”, além de reconhecer a morte de 434 vítimas. Soma-se a isso a perda de status ministerial do Gabinete de Segurança Institucional, historicamente chefiado por militares, e rebaixado à Secretaria de Segurança Institucional por uma reforma administrativa.
Um elemento célebre (por maus motivos) do grupo de oficiais revisionista é o general Hamilton Mourão, que foi removido em 2015 do Comando Militar do Sul para a Secretaria de Economia e Finanças do Exército após defender “o despertar de uma luta patriótica” em meio a uma série de críticas ao governo de Dilma Rousseff (Stochero, 2015). Sérgio Westphalen Etchegoyen, general que à época chefiava o Departamento Geral do Pessoal, também é um ator central entre as reações. Após seu pai Leo Etchegoyen ser citado no relatório final da Comissão Nacional da Verdade, ele divulgou uma carta pública acusando a comissão de “leviana”. Após o ocorrido, ele é promovido a chefe do Estado Maior do Exército (Viana, 2021).
Apetite político e misoginia
Após um impeachment abertamente instrumentalizado pelos apetites políticos e pela misoginia, mas camuflado sob o manto de responsabilidade fiscal, o governo de Michel Temer é um ponto crítico de retomada do espaço político institucional pelos militares. O general Etchegoyen irá chefiar o Gabinete de Segurança institucional e assumir um papel de influência política sobre o presidente (Viana, 2021). É um governo fraco que vai recorrer à intervenção federal no Rio de Janeiro, ampliando o papel dos militares na segurança pública e lhes proporcionado visibilidade na mídia. O Ministério da Defesa irá ser chefiado por mãos castrenses a partir de fevereiro 2018, um fato inédito desde a criação desta instituição, convertida no sindicato dos militares. O governo Temer é a antessala da eleição de um capitão da reserva do Exército brasileiro.
O ápice deste processo é o governo de Jair Bolsonaro, que alcança o número de 11 ministros militares, recorde desde o início da democratização (Villa; Passos, 2022). Oficiais militares da reserva e da ativa entram em peso nas articulações políticas para eleger Bolsonaro em 2018, que se manifesta de forma ferrenha contra os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade. Havia uma compreensão que Bolsonaro encabeçava os valores que a “família militar defende,” o fim dos governos de esquerda e uma reorganização moral da sociedade a partir de ideais conservadores. É por isso que a luta contra a corrupção vira o mote da ala militar. Esse interesse renovado dos militares nas eleições é reflexo de modificações no próprio campo da política: surgimento da mobilização social de grupos de direita, aumento da rejeição a partidos e do sentimento de antipolítica, necessidade de coesão social. Muitos oficiais militares vêem uma janela de oportunidade para retornar à política – algo que sempre fizeram na história do país, mas que haviam deixado “de lado” após a redemocratização do país em 1985.
A demissão do Ministro da Defesa, Azevedo e Silva, é uma forma de assegurar a instrumentalização política dos militares – assim é praxe entre líderes da extrema-direita na região (Sanahuja; Vitelli; López Burian, 2023) – e de favorecer o oficialato bolsonarista. O ministro da Defesa que o sucede, general Braga Netto, proclamando-se rei soberano das eleições, utiliza seus poderes, sem sucesso, para que o voto impresso e auditável seja adotado nas eleições de outubro de 2022.
No último ano do mandato de Bolsonaro, o comando militar é ocupado por personagens pitorescos defensores da “Revolução” de 1964, como o Comandante da Marinha, Almirante Almir Garnier, que classifica de “coincidência” o fato de tanques desfilarem em frente ao Congresso Nacional durante o dia da votação da PEC do voto impresso (Portela, 2021), e o Comandante do Exército, general Marco Freire, que sabota a retirada dos acampamentos golpistas próximos aos acampamentos antes da posse do atual presidente (Lorenzatto; Fruet, 2023). Estas e outras histórias de pesadelo que o retorno dos militares à política representa povoam a fauna de Brasília.
Atualmente, o cenário das relações civis-militares é de retrocesso: voltamos às reformas de primeira geração, em um esforço conformado de garantir a governabilidade política e restringir/controlar a inclinação dos militares a participar da política. Para compreender o estado débil das relações civis militares e os tímidos avanços nesta área, é necessário remontar às teorias de consolidação democrática. O teste crítico para verificar se um regime consolidou o controle democrático sobre os militares (isto é, se teve êxito em restringir o comportamento autônomo, condicionando-o às políticas definidas pelos civis) seria fazer com que os mesmos aceitassem políticas contrárias aos seus interesses (FITCH, 2001, p. 959). Os militares brasileiros passaram pelo teste, e não passaram.
Subordinação condicional às autoridades políticas
A subordinação condicional caracteriza as relações civis militares no Brasil democrático. Nesse caso, falamos em uma subordinação condicional às autoridades políticas eleitas, pois essa subordinação depende da percepção por parte das forças armadas de que os “interesses nacionais”/“dos militares”, aqui entendidos como sinônimos (como historicamente regimes militares o fazem), não estão em perigo. Os militarem atuam como atores com poder de veto sobre as políticas que afetam os seus interesses. A retomada dos militares de um papel na arena política é sintomática da percepção que o interesse dos militares não será assegurado pelos líderes eleitos democraticamente.
O governo Lula optou, no primeiro ano de poder, pela conciliação com o setor militar. A escolha do ministro de Defesa José Múcio ilustra a opção de não interferência nos assuntos de defesa: afinal, como ensinam as teorias de políticas públicas, escolher não fazer nada também é uma forma de fazer política. O atual Lula 3 efetivamente desmilitarizou as secretarias e pastas de governo, mas o preço a pagar foi alto: os gastos previstos com a defesa (R$ 52,8 bilhões) pelo Programa de Aceleração do Crescimento superam aqueles que serão destinados à saúde e à educação, incluindo a compra de aeronaves cargueiro, viaturas blindadas e caças Gripen. [1]
A relatora da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, senadora Eliziane Gama, recomendou o indiciamento de 30 militares pelo envolvimento e pela conivência com as conspirações golpistas do 8 de janeiro, incluindo os comandantes militares anteriormente citados – um fato inédito em um país que não pune militares (Congresso Nacional, 2023). Enquanto o senador Hamilton Mourão articula anistia para os militares envolvidos, cabe esperar a responsabilização dos militares no foro comum. Este fato pode representar um divisor de águas em relação à acomodação de interesses entre elites políticas e militares.
O pensador florentino Maquiavel admite que a fortuna (circunstâncias externas) seriam donas “da metade das nossas ações”, mas ainda assim, afirma, “nos deixa senhores da outra metade ou pouco menos.”(Machiavelli, 2010 [1532], cap. 25) Ter virtú, qualidades essenciais para exercer a autoridade política, sendo bastante simplista, implica alterar o currículos das escolas militares, reformar o art. 142 da constituição em relação ao uso dos militares para a “garantia da lei e da ordem” e limitar legalmente a participação dos militares na política, incluindo militares da ativa e militares da reserva. Estas são iniciativas que permitirão transitar para as reformas de segunda geração e, eventualmente, diminuir o tamanho da pegada militar no sistema político brasileiro.
*Anaís Medeiros Passos é professora Adjunta na Universidade Federal de Santa Catarina, doutora em Sociologia Política Comparada pela Sciences Po Paris e pós-doutorada pelo Instituto de Relações Internacionais, da USP. Escreveu “Democracies at War Against Drugs: The Military Mystique in Brazil and Mexico”
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Referências bibliográficas
ARTURI, Carlos S. O debate teórico sobre mudança de regime político: o caso brasileiro. Revista de Sociologia e Política, [S. l.], n. 17, p. 11–31, 2001.
CONGRESSO NACIONAL. Comissão Parlamentar Mista de Inquérito dos Atos de 8 de Janeiro de 2023. [s.l: s.n.].
COTTEY, Andrew; EDMUNDS, Timothy; FORSTER, Anthony. The Second Generation Problematic: Rethinking Democracy and Civil-Military Relations. [S. l.], v. 29, n. 1, p. 31–56, 2002.
FITCH, Samuel J. Military Attitudes Towards Democracy in Latin America. How do we know if anything has changed? Em: Civil-Military Relations in Latin America. New Analytiical Perspectivs. e-book ed. Chapel Hill and London: The University of North Carolina Press, 2001.
LORENZATTO, Márcia; FRUET, Nathalia. CPMI pede responsabilização de ex-ministro da Defesa e de dois ex-comandantes das Forças Armadas. SBT News, [S. l.], 2023.
MACHIAVELLI, Nicollò. O Príncipe. Tradução Maurício Santana Dias. São Paulo: Companhia das letras, 2010.
PORTELA, Júlia. “Coincidência”, diz comandante da Marinha sobre desfile e voto impresso. Metrópoles, [S. l.], 2021.
SANAHUJA, José Antonio; VITELLI, Marina Gisela; LÓPEZ BURIAN, Camilo. Derechas neopatriotas y fuerzas armadas en América Latina. Estudos Ibero-Americanos, [S. l.], v. 49, n. 1, p. e44033, 2023. DOI: 10.15448/1980-864x.2023.1.44033.
STOCHERO, Tahiane. General defende “despertar para luta patriótica” em palestra no RS. G1, [S. l.], 2015.
VIANA, Natalia. Dano Colateral. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2021.
VILLA, Rafael Duarte; PASSOS, Anais Medeiros. Engagement of Military Peacekeepers in Brazilian Politics (2011–2021). Armed Forces and Society, [S. l.], 2022. DOI: 10.1177/0095327X221087254.
[1]
Disponível em: https://www.gov.br/casacivil/novopac/inovacao-para-a-industria-da-defesa. Consulta 1/12/2023.
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