O Brasil e a Índia no Conselho de Segurança das Nações Unidas
Livro detalha a ação internacional dos dois países no órgão responsável pela manutenção da paz no mundo e destaca que a inserção regional tem um peso expressivo no incentivo ao acúmulo de capacidades militares para eles. Segundo a pesquisa, o poder nuclear não é decisivo para os votos no CSNU, mas é incontestável para a dinâmica de poder internacional
Livro detalha a ação internacional dos dois países no órgão responsável pela manutenção da paz no mundo e destaca que a inserção regional tem um peso expressivo no incentivo ao acúmulo de capacidades militares para eles. Segundo a pesquisa, o poder nuclear não é decisivo para os votos no CSNU, mas é incontestável para a dinâmica de poder internacional
Por Marianna Restum Antonio de Albuquerque *
Em 2016, ano que iniciei o doutorado em ciência política, fui selecionada para participar do Programa de Capacitação Acadêmica da Missão Permanente do Brasil nas Nações Unidas. Por meio dessa iniciativa, passei quatro meses em Nova York, acompanhando os diplomatas da delegação brasileira em reuniões, debates, votações e recepções na sede da Organização das Nações Unidas (ONU). Lembro que, em uma das minhas primeiras interações com um diplomata de outro país, compartilhei que estava no doutorado e que estava ansiosa para acompanhar uma reunião do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), que aconteceria naquela tarde. Recebi como resposta: “esquece o que você leu nos livros, as decisões são tomadas no café, não na reunião”.
Durante os meses em que estive na ONU, foram visíveis a naturalidade da troca de votos nos bastidores, as negociações conduzidas nos corredores, fora dos registros formais, e as pressões diplomáticas e financeiras para mudanças de posição. Acompanhei também dois processos eleitorais: a escolha do Secretário-Geral (o português António Guterres foi eleito na ocasião) e a eleição dos membros não permanentes do CSNU para o biênio subsequente. A composição do CSNU é dividida entre cinco membros permanentes, conhecidos como P5 –Estados Unidos, França, Reino Unido, Rússia e China– e dez membros não permanentes, eleitos para mandatos de dois anos. Aos cinco permanentes cabe uma prerrogativa diferenciada no processo decisório, conhecida como poder de veto.
No processo eleitoral que acompanhei, Itália e Países Baixos tiveram empate técnico para ocupar um dos assentos não permanentes. Os representantes do P5 se reuniram em separado, sem a participação de nenhum outro Estado membro, nem dos dois envolvidos, e decidiram que o mandato seria dividido, com um ano para cada um. A decisão foi apenas comunicada, e não houve espaço para propostas alternativas nem discordâncias.
Em 2022, Brasil e Índia estão, simultaneamente, cumprindo mandatos como membros não permanentes no CSNU. O órgão é, na estrutura da ONU, o responsável primário pela manutenção da paz e da segurança internacional, por meio tanto da identificação de ameaças quanto da decisão sobre respostas a crises. O órgão parte, entretanto, de uma assimetria estrutural. Para além da possibilidade de barrar a aprovação de resoluções por meio do veto, os P5 também possuem larga vantagem para influenciar das regras de procedimento do órgão, que são flexíveis e muitas vezes informais.
A informalidade e a flexibilidade dos métodos de trabalho do CSNU causam uma concentração ainda maior de poder decisório na mão dos cinco permanentes que, por estarem no órgão ininterruptamente, possuem mais ferramentas para ter acesso regular às informações, conhecer e participar dos processos negociadores de todas as resoluções e controlar a linguagem dos documentos aprovados. Nesse sentido, por conta da concentração de poderes na mão dos P5, o CSNU não opera por meio da reciprocidade nem tampouco da participação. Com isso, afastou-se dos propósitos do multilateralismo e se configura como o que chamo microlateralismo: a criação de um fórum restrito (legitimado e institucionalizado) no interior da arena multilateral.
Como ponto crítico, cabe ressaltar que a estrutura do órgão foi proposta e aprovada em 1945, quando as perspectivas do sistema internacional e as relações de poder entre os Estados respondiam ao contexto do pós-Segunda Guerra. O mundo de 2022 não é o mundo de 1945. Nessa linha, Brasil e Índia são defensores abertos da reforma do CSNU, tanto em relação à composição quanto ao funcionamento, e são candidatos declarados a ocuparem assentos permanentes em um CSNU ampliado. É a partir desse contexto que o livro Brasil e Índia no Conselho de Segurança das Nações Unidas (1946-2012) se insere. O objetivo deste livro é compreender como funciona a dinâmica negociadora do CSNU e qual o papel que os membros não permanentes podem cumprir em um ambiente estruturalmente assimétrico. Brasil e Índia foram selecionados como casos comparativos pois, apesar de serem países emergentes e em busca de protagonismo no sistema internacional, há um elemento central que os diferencia: o poder militar e, sobretudo, o nuclear.
As estratégias diplomáticas diferenciadas de Brasil e Índia, que levaram o último à nuclearização, são decorrentes de um processo histórico multicausal, com implicações domésticas, regionais e globais. Como os votos no CSNU estão intimamente relacionados às estratégias diplomáticas de cada país, detalhei a ação internacional de Brasil e Índia a partir de cinco níveis de análise: os atores, o governo, o aspecto socioeconômico, as relações regionais e o sistema global. Entre os principais resultados encontrados, cabe destacar que a inserção regional tem um peso expressivo no incentivo ao acúmulo de capacidades militares para os países.
Estando em uma região pivô e cercada por conflitos e países nuclearmente armados, a opção pacífica seria uma ameaça à integridade territorial da Índia. Já o Brasil está localizado em um subcontinente que não possui o mesmo peso estratégico e que é, comparativamente, menos sujeito a conflitos de grandes proporções. A Índia envolveu-se em diversas guerras e intervenções em sua região, e foi tema de resolução condenatória no CSNU. Com isso, formou-se no país uma visão de desconfiança do multilateralismo, e consolidou-se nas elites a percepção de que o caminho para atingir o patamar de grande potência era fazer frente ao crescimento militar de seus vizinhos, sobretudo da China.
Já no Brasil, por conta da ausência de conflitos imediatos com os vizinhos e a presença regional dos Estados Unidos, não houve legitimação nem incentivo por parte das elites para o projeto de potência militar. A opção do Brasil foi, portanto, mostrar-se como uma alternativa pacífica e aderir ao multilateralismo, para influenciar a construção das normas.
Por meio da análise dos votos e das justificativas conferidas pelos representantes de Brasil e Índia no CSNU, em seus mandatos no órgão entre 1946 e 2012[2], complementada pela contextualização das políticas doméstica e externa dos países em cada período, a principal conclusão é que o padrão dos votos e o alinhamento com os membros permanentes não variaram significativamente entre Brasil e Índia. Isso indica que a lógica negociadora do CSNU e a concentração do poder decisório opera mais no eixo membro permanente-não permanente do que no de país nuclear-não nuclear.
Se interpretamos as negociações no CSNU como um jogo de coordenação, pesam sobre o curso de ação escolhido os pay offs de cada ator envolvido. Neste cenário, os custos de transação são consideravelmente mais altos para os membros não permanentes, que possuem menos ferramentas para influenciar o resultado. Há um custo político alto para que um membro não permanente se oponha a uma resolução em que os P5 possuem consenso. A negociação precisa ser feita previamente, pois o custo de oposição em plenário é grande e com baixíssima possibilidade de alterar o resultado, a não ser que um membro permanente integre o bloco opositor.
Entretanto, apesar de não ser definidora para o posicionamento no CSNU, a nuclearização indiana não pode ser descartada das relações de poder, pois o país ampliou seu poder de barganha e seu peso específico nas discussões e negociações de questões de segurança, sobretudo regionalmente. O poder nuclear não é decisivo para os votos no CSNU, mas é certamente incontestável para a dinâmica de poder internacional.
Portanto, o livro pretende se somar ao vasto campo de estudo sobre as atividades da ONU, notadamente no campo da segurança, além de apresentar os principais acontecimentos, fatores e marcos da política externa do Brasil e da Índia desde o pós-Segunda Guerra.
*Marianna Restum Antonio de Albuquerque é diretora adjunta de projetos do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI) e doutora em ciência política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj). Este artigo sintetiza os principais pontos do livro “Brasil e Índia no Conselho de Segurança das Nações Unidas (1946-2012)”, publicado em 2022 pela Editora Appris.
[1] O texto conta com trechos extraídos do livro de mesmo nome, publicado pela autora, em 2022, pela Editora Appris.
[2] No marco temporal do livro, Brasil esteve representado nos biênios de 1946-1947, 1951-1952, 1954-1955, 1963-1964, 1967-1968, 1988-1989, 1993-1994, 1998-1999, 2004-2005 e 2010-2011. A Índia, por sua vez, ocupou o assento não permanente em 1950-1951, 1967-1968, 1972-1973, 1977-1978, 1984-1985, 1991-1992 e 2011-2012. Recentemente, a Índia voltou ao CSNU para o mandato 2021-2022, e o Brasil para o mandato 2022-2023.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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