29 agosto 2022

Um embaixador pode dizer qualquer coisa? Tato e diplomacia

Um diplomata representa as autoridades do seu Estado que o envia junto a outra nação em que está acreditado, o que confere um caráter oficial às palavras que profere –mesmo em circunstâncias não oficiais

Um diplomata representa as autoridades do seu Estado que o envia junto a outra nação em que está acreditado, o que confere um caráter oficial às palavras que profere –mesmo em circunstâncias não oficiais

“O Congresso de Paris de 25 de fevereiro a 30 de março de 1856”, de Édouard-Louis Dubufe, 1856 (CC)

Por Raoul Delcorde*

Declarações recentes do embaixador chinês na França de que o povo de Taiwan um dia terá que ser “reeducado” provocaram protestos. E quando este mesmo Lu Shaye qualifica a viagem a Taiwan de Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes do Congresso dos Estados Unidos, de “capricho octogenário” pode-se perguntar se ele não cruzou a linha vermelha do dever de reserva que tradicionalmente é seguido por diplomatas.

Mas o que é exatamente esse dever de reserva? O dever de reserva do diplomata exige que ele demonstre moderação em qualquer julgamento feito sobre os líderes e a política interna de um Estado estrangeiro.

“Natureza igual e paciente”

Se voltarmos aos grandes tratados de diplomacia –de François de Callières, embaixador de Luís XIV e então secretário do gabinete do Rei, autor em 1716 de uma obra de referência intitulada De la manière de négocier avec les souverains, de l’utilité des négociations, du choix des ambassadeurs et des envoyez, et des qualitez nécessaires pour réussir ces employs, que foi em particular o livro de cabeceira do terceiro presidente dos Estados Unidos Thomas Jefferson, até Harold Nicholson, diplomata e escritor britânico que participou da Conferência de Versalhes em 1919, e cujo a magnum opus, simplesmente intitulada Diplomacia, marcou sua geração e as seguintes– vemos que o tato é citado entre as primeiras qualidades do diplomata. Consiste em reagir a uma situação inesperada com a máxima compostura.

Para citar Callières:

“Um temperamento equilibrado, uma natureza igual e paciente, sempre pronto a ouvir sem contradição a quem trata. Uma abordagem sempre aberta, gentil, civilizada, agradável […] Para ter sucesso neste tipo de trabalho, você precisa muito menos falar do que ouvir. É preciso contenção, muita discrição e paciência infalível”

E Callières acrescentou que o diplomata deve ser “justo e modesto em todas as suas ações, respeitoso com os príncipes, complacente com seus iguais, acariciando seus inferiores, gentil, civil e honesto com todos”.

Diante dessas qualidades, qualquer comentário crítico de um diplomata sobre o país onde se encontra pode levar a um incidente diplomático. Com efeito, um diplomata em serviço representa as autoridades do seu Estado que o envia junto do Estado em que está acreditado, o que confere um caráter oficial às palavras que profere –mesmo em circunstâncias não oficiais. 

Ilustração recente: em 4 de agosto, o embaixador norueguês em Moscou foi intimado a explicar a “conduta inaceitável” do cônsul norueguês em Murmansk. Esta última, Elisabeth Ellingsen, foi filmada em um hotel na cidade do Ártico, vaiando os funcionários do hotel e a Rússia em geral. “Eu odeio russos” ela gritou no vídeo em questão. As autoridades russas pediram sua retirada imediata. O Ministério das Relações Exteriores da Noruega disse que “lamenta profundamente” o incidente e disse que o assunto será tratado internamente. Se Ellingsen não for chamada de volta a Oslo nesta fase, ela terá dificuldade em continuar suas atividades em Murmansk nas atuais circunstâncias…

No contexto das tensas relações entre a Rússia e os países da Otan sobre a Ucrânia, é claro que as autoridades russas reagiram com invulgar rapidez para “marcar a ocasião”, quando não passa de um diplomata que não tem o estatuto de embaixador. Mas é verdade que faltava à diplomata autocontrole, inclusive por uma questão de pouca importância (acesso a um quarto de hotel).

Modos e contenção

Basicamente, esperamos que o diplomata tenha “modos”, significando que ele controla suas emoções e não se afasta de uma forma de desapego em nenhuma situação.

Isso é enfatizado, por exemplo, por Harold Nicholson em seu famoso manual de diplomacia:

“Não só o negociador [ou seja, o diplomata] deve evitar mostrar irritação quando confrontado com a estupidez, má-fé, brutalidade ou presunção daqueles com quem tem o doloroso dever de negociar, mas ainda deve tomar cuidado com qualquer animosidade, preferência, entusiasmo, preconceito, vaidade, exagero, dramatização ou indignação.”

Essa compostura pode ser posta à prova, como testemunhado em Dublin, quando uma multidão enfurecida começou a sacudir o veículo do embaixador russo, Yuri Filatov, que tentava entrar no complexo da embaixada.

O incidente ocorreu dias após o início do ataque russo à Ucrânia. O embaixador protestou, é claro (a segurança da embaixada e seus funcionários é uma obrigação do Estado anfitrião), mas sem fazer uma declaração pública.

O tato diplomático é, portanto, essa capacidade de se expor a todas as situações sem perder a compostura. Os exemplos poderiam ser multiplicados – e, felizmente, na maioria dos casos, o diplomata não perde tato nem dignidade. Relata-se que em 1960, durante a crise causada pelo sobrevoo da URSS por um avião espião americano (o U-2), o embaixador americano em Moscou, Llewellyn Thompson, foi submetido a uma série de momentos embaraçosos. Em uma recepção, Khrushchev começou a gritar com ele sobre o U-2 antes de… pisar pesadamente nos pés do embaixador. A história não diz se este último reprimiu um grito de dor… Mais tarde, o líder soviético lhe explicou que “não queria machucá-lo”!

No entanto, tato não significa passividade. Jules Cambon foi um grande embaixador francês no início da Primeira Guerra Mundial em Londres. Ele havia observado que a entrada na guerra do Reino Unido (ao lado da França) estava longe de ser certa. Quando o editor do jornal londrino The Times lhe perguntou: “O que você está fazendo, Monsieur Cambon?”, ele respondeu: “Estou esperando para saber se a palavra honra deve ser retirada do vocabulário inglês”. As coisas foram ditas, mas com tato.

Em caso de crise ou incidente diplomático, o tato permite reagir preservando as regras da sociabilidade. Podemos citar a esse respeito o incidente franco-saudita de janeiro de 1982. Jacques Attali, na época assessor especial do presidente Mitterrand, entrevistado no canal Europe 1, perguntava-se se não era necessário “eliminar tudo o que importamos em óleo de países em que um ladrão vê sua mão cortada”.

O embaixador da Arábia Saudita em Paris, Jamil al-Hejaillan, considerando seu país como alvo, expressou seus “fortes protestos” ao Palácio do Eliseu e perguntou se os comentários de Jacques Attali refletiam o ponto de vista do presidente. Foi-lhe dito que o presidente não havia sido informado de antemão e não os endossava. Mas o Eliseu recusou-se a comunicar publicamente sobre este assunto (apesar dos pedidos do embaixador saudita). O embaixador Hejaillan falou de um “incidente passageiro, mas lamentável” e disse estar convencido de que as relações bilaterais entre seu país e a França eram sólidas demais para que tal incidente as perturbasse.

O tato, portanto, não impede de forma alguma um diplomata de transmitir uma mensagem de firmeza caso tenha ocorrido um incidente diplomático. Mas a linguagem é pesada, as fórmulas evitam qualquer ataque direto e, portanto, qualquer tensão inútil: continue sorrindo enquanto significa sua irritação dentro dos limites impostos pelo uso.

Obviamente, diante desses exemplos, pode-se perguntar sobre o grau de ocultação (alguns diriam hipocrisia) que o tato e a contenção refletem na diplomacia. Isso lembra a famosa descrição que o príncipe Murat fez de Talleyrand:

“Seu traseiro receberia um chute que seu rosto não revelaria.”

O próprio Talleyrand disse que “a fala foi dada ao homem para disfarçar seu pensamento…”

Estilo indireto, paciência e flexibilidade

Essa restrição que ensinamos aos diplomatas é, obviamente, destinada a evitar a escalada e a humilhação (aquela que sentimos como aquela que infligimos). Ela se espalhou pela linguagem diplomática, que pratica o eufemismo e o understatement, fórmulas oblíquas e contornadas. Estamos procurando por eufemismos. Se um diplomata diz “meu governo se sente compelido a expressar reservas sobre…”, isso significa que “meu governo não permitirá…”. Quando uma reunião diplomática termina com uma declaração dizendo que “compreendemos nossos respectivos pontos de vista”, significa que não concordamos em nada… E a fórmula “um passo positivo” significa que a negociação está em um impasse, na melhor das hipóteses. O perigo é afogar o peixe à força de recorrer ao eufemismo.

Mais profundamente, não há risco de despersonalização? A invectiva (proibida na diplomacia, apesar de algumas exceções, como vimos) tem o mérito da franqueza. Mas a contenção acaba repercutindo na personalidade do diplomata. Romain Gary, que teve uma carreira diplomática antes de se tornar totalmente absorvido pela escrita, escreveu em La nuit sera calme:

“É ao nível do caráter que surge o problema, porque enfim, por quanto tempo você pode mostrar continuamente flexibilidade, adaptabilidade e também aceitação, no que diz respeito às instruções que recebe, às opiniões que é obrigado a expressar, às relações que você é obrigado a ter com pessoas que às vezes o horrorizam, nos países onde você se encontra – e ao mesmo tempo manter um caráter intacto, seu centro de gravidade, relações sólidas consigo mesmo, não se deixe despersonalizar? Acredito que a maior ameaça, depois de vinte anos no negócio, é despersonalização.”

É certo que essa visão do diplomata que sempre se desdobra pode parecer exagerada. Reflete a percepção que ainda temos da diplomacia, que lembra o Congresso de Viena e Talleyrand. Mas se existe um trabalho baseado na paciência, cortesia e busca de compromisso, é esse. Lembre-se do filme Quai d’Orsay, retirado da história em quadrinhos homônima, onde em contraste com o ministro vituperante e perpetuamente agitado (inspirado em Dominique de Villepin), o chefe de gabinete (inspirado no embaixador Pierre Vimont) evidencia a compostura e tato infalível.

Em última análise, toda a arte do diplomata, que é uma arte de “simplesmente falar”, consistirá em ser um diplomata tal como o entendemos na linguagem cotidiana: capaz de entrar em contato, inclusive informalmente, com pessoas para as quais sente pouca simpatia particular, tendo a capacidade de “acomodar” o comportamento dos outros de acordo com a ocasião e a necessidade.

Concluamos com esta citação de Lawrence Durrell, famoso escritor britânico que também foi diplomata (no Cairo e em Belgrado) por alguns anos: “Nós, diplomatas […] estamos acostumados a estar cheios de recursos, a desempenhar qualquer papel vida, estar à altura de quase qualquer situação: de que outra forma poderíamos enfrentar todos esses estranhos? “Estamos aqui a mil léguas da figura do “lutador de lobos” que o embaixador chinês em Paris afirma ser.


*Raoul Delcorde é embaixador honorário da Bélgica e professor convidado na Université catholique de Louvain (UCLouvain)


Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em francês.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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