21 setembro 2022

Interesse nacional e estratégia: autonomia ou dependência?

Leis americanas de incentivo à produção doméstica de bens e serviços de importância estratégica podem determinar os rumos da era digital. O Brasil precisa refletir sobre esses movimentos para evitar um aumento da sua dependência internacional e planejar políticas para avançar a indústria nacional

Leis americanas de incentivo à produção doméstica de bens e serviços de importância estratégica podem determinar os rumos da era digital. O Brasil precisa refletir sobre esses movimentos para evitar um aumento da sua dependência internacional e planejar políticas para avançar a indústria nacional                                                                                     

O presidente dos EUA, Joe Biden, assina lei de incentivo à produção doméstica de semicondutores

Por Sérgio E. Moreira Lima*

Num mundo marcado pelo espectro de pandemias e rivalidade entre grandes potências, responsáveis por situações adversas e pela escassez súbita de produtos essenciais no mercado internacional, os EUA decidiram incentivar a produção doméstica de bens e serviços de importância estratégica, especialmente semicondutores, e reverter a dependência daquele país de cadeias globais de suprimento para eliminar sua vulnerabilidade externa. Criaram leis que fundamentam e orientam esses objetivos, condicionando-os a preocupações de natureza ambiental e contemplando autonomia regional com parceiros do NAFTA (México e Canadá). Esse esforço terá impacto no sistema internacional de comércio e na divisão do trabalho entre as nações. Esperam seus idealizadores que dele resultem inovações em pesquisa e desenvolvimento científico e tecnológico, avanços na capacidade de produção industrial a partir de novos padrões, mais complexos e ambiciosos, com ganhos em competitividade e redução das emissões de carbono, que refletem a consciência das responsabilidades comuns no antropoceno[1].

A legislação estimula a concentração de investimentos na América do Norte em fabricantes, por exemplo, de semicondutores e veículos elétricos, em detrimento de outras regiões e países ainda atrasados na criação de condições para produção desses bens. O mesmo pode ocorrer em relação a indústrias à margem desses novos processos produtivos voltados para eficiência e tecnologias limpas.

Cabe ao Brasil refletir sobre essas mudanças, bem como examinar o papel do governo, com o apoio da iniciativa privada, na proteção e promoção do interesse nacional, seja da perspectiva do comércio e do investimento externos, seja dos interesses da indústria, como a automobilística, a aeronáutica, a de informática, a de motores elétricos e de saúde, ou mesmo a do agronegócio.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/taiwan-domina-a-oferta-mundial-de-chips-de-computador-nao-e-estranho-que-os-eua-estejam-preocupados/

Em sua estratégia industrial de revitalizar a capacidade de produção doméstica, gerar empregos, fortalecer cadeias de valor e o compromisso com o meio ambiente e, como resultado do esforço suprapartidário no Congresso de seu país, o presidente dos EUA, Joe Biden, promulgou, em 9 de agosto, a Lei de Semicondutores e Ciência de 2022,  com o olhar no futuro da indústria do século XXI, incluindo nanotecnologia, energia limpa, computação quântica, inteligência artificial, e na sua competitividade internacional. A lei apropriou US$ 54 bilhões para expandir a fabricação de semicondutores nos EUA, reduzindo sua dependência a redes globais de suprimento, especialmente da China. A legislação tem o mérito adicional de estimular a pesquisa científica e tecnológica no setor, bem como promover o estudo de práticas anticompetitivas de comércio. O projeto foi iniciado em meio à escassez global de “chips”, que ainda afeta a indústria automobilística e de informática em todo o mundo. A lei incentivou investimentos adicionais privados de companhias norte-americanas, como a Micron, que anunciou inversões de US$ 40 bilhões na manufatura de “chips” de memória, enquanto a Qualcomm e a GlobalFoundries, parceria de US$ 4,2 bilhões para ampliar a capacidade de produção de semicondutores.

Em 16 de agosto, o presidente Biden promulgou outro instrumento, a chamada Lei de Redução da Inflação, cujo objetivo é diminuir o custo de bens e servicos, mas nela incorporou dispositivos de combate à mudança climática com a previsão de corte de 40% de emissões de gases de efeito estufa até o fim da década. Combinou ali também política industrial e produção doméstica com medidas de proteção ao meio ambiente para atingir o propósito maior de reindustrializar e reduzir a dependência externa dos EUA.

Pesquisa conduzida pelo governo a respeito da rede de tecnologias de energia limpa havia demonstrado a grande vulnerabilidade dos EUA em relação à China e o risco de perda de competitividade da indústria americana de veículos elétricos para congêneres da União Europeia e da Ásia (Japão e Coreia do Sul). Um dos elementos centrais para enfrentar o desafio é a concessão de incentivos fiscais para encorajar a compra de veículos automotivos elétricos. A lei prevê estímulos ao uso de energia limpa na rede elétrica dos EUA com vistas à geração de eletricidade com emissão zero, a partir de tecnologias de produção de fonte solar, eólica e geotérmica. A lei estimula e protege toda a cadeia de produção nos EUA, exigindo que pelo menos 40% da mineração da matéria prima, por exemplo, o lítio e o cobalto, até a manufatura de turbinas e equipamentos e veículos elétricos, sejam feitos nos EUA ou num país com o qual os EUA tenham acordo de livre comércio.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/carlos-franca-diplomacia-da-inovacao-quer-associar-imagem-do-brasil-a-avanco-tecnologico-e-cientifico-com-sustentabilidade/

Em 12 de setembro, na cidade do México, o secretário de Estado Antony Blinken e a secretária de Comércio Gina Raimondo chefiaram a delegação americana para conversações econômicas de alto nível com o governo mexicano. Durante o encontro, foi examinado o interesse do México em participar na implementação não só da Lei de Redução da Inflação, como também da Lei de Semicondutores e Ciência.

As autoridades americanas consideram estabelecer a rede de fornecimento de semicondutores na América do Norte, em parceria com os países vizinhos, estendendo-as a outros setores como o da geração de energia, inclusive de fontes alternativas. Essa cooperação seria voltada, entre outros, para a renovação da indústria automobilística, tornando-a independente de peças oriundas de países fora da região, mas poderá ter impacto em outras cadeias produtivas que utilizem tais componentes. Estruturada para atender a demanda do mercado americano, a indústria automobilística no México tem sofrido de forma aguda a crise de escassez de semicondutores.

Esses subsídios à expansão da cadeia de semicondutores previstos em lei pretendem não só garantir a competitividade norte-americana, como também evitar que, no futuro, a ausência de componentes externos não mais comprometa a moderna indústria regional, que se pretende construir. Ela compreende a produção de eletrodomésticos, computadores, armas, aeronaves, foguetes, equipamentos médico-hospitalares, veículos híbridos ou movidos à bateria elétrica, tratores, máquinário e implementos agrícolas até os jogos eletrônicos ou produtos ligados à biotecnologia.

Paralelamente, é cada vez maior o escrutínio do processo de pesquisa e desenvolvimento tecnológico e da inovação, bem como dos controles de exportação para proteger a indústria doméstica especialmente na competição com os gigantes da China, da Ásia e da Europa. É nesse contexto que se compreende o interesse estratégico crescente dos EUA em relação à capacidade de inovação e aos avanços da indústria de “chips” em Taiwan e na expansão da parceria com companhias como a TSMC (Taiwan Semiconductor Manufacturing Company), cada vez mais importantes para a indústria digital global.

O alcance dessa transformação industrial deverá aumentar a competitividade de produtos fabricados na América do Norte em relação a similares da China e de outros países. Esse esforço legislativo poderá criar as condições para definir quem determinará os rumos da era digital entre as nações que produzem bens e tecnologias modernos e aquelas que são meramente importadoras desses produtos, quando disponíveis.

Como a 10ª economia do mundo, deve o Brasil refletir sobre o que está acontecendo em nosso hemisfério e projetar o resultado desse desenvolvimento nas próximas décadas, a fim de vislumbrar o cenário em 2030/40, o grau de dependência econômica e tecnológica do país e suas implicações para a soberania nacional.

Ficará clara, então, a necessidade de evitar esse quadro adverso e planejar amplo esforço de pesquisa e investimento com vistas a criar condições para o avanço da industrialização brasileira.

Ainda que esse tema não tenha sido adequadamente contemplado nos debates entre os candidatos à presidência da República, convém pensar estrategicamente na defesa do interesse nacional diante das mudanças em curso na ordem internacional, especialmente aquelas que dizem respeito à capacidade industrial e à identidade econômica do Brasil. O governo está atento a essa evolução? Tem condições de dela participar ou ficará à margem, esperando que suas consequências comprometam o progresso e a modernização nacional? Interessa substituir a noção de autonomia regional da América do Norte pelo conceito de autonomia hemisférica? Em que medida poderão as leis americanas afetar o rumo dos investimentos na indústria brasileira? Essas são algumas das indagações imperiosas para o Brasil e o futuro de sua economia.


*Sérgio E. Moreira Lima é conselheiro do IRICE, advogado e consultor. Como diplomata, serviu em Washington, Lisboa, Londres e nas Nações Unidas. Foi Embaixador em Israel, Noruega, Hungria e Austrália.


Notas

[1] Trata-se de um neologismo empregado pelo cientista e Prêmio Nobel de Química (1995) Paul Crutzen para caracterizar o advento da atual era histórica, em que a espécie humana adquiriu a capacidade e a força para mudar de forma irreversível o meio ambiente e a geologia do planeta. O termo tornou-se de uso corrente, em vários idiomas, em trabalhos científicos sobre ecossistema e mudança de clima.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Cadastre-se para receber nossa Newsletter