26 outubro 2022

A ameaça nuclear de Putin segundo a teoria dos jogos

A invasão da Ucrânia se transformou em um fiasco para Putin, que ameaça reagir usando armas nucleares. Para o matemático J. Guillermo Sánchez, aplicar a teoria dos jogos cooperativos ao atual conflito levaria a uma negociação com a Rússia e a concessões para evitar uma escalada do conflito e do risco de destruição mútua assegurada

A invasão da Ucrânia se transformou em um fiasco para Putin, que ameaça reagir usando armas nucleares. Para o matemático J. Guillermo Sánchez, aplicar a teoria dos jogos cooperativos ao atual conflito levaria a uma negociação com a Rússia e a concessões para evitar uma escalada do conflito e do risco de destruição mútua assegurada

Por J. Guillermo Sánchez León*

Contamos com um Relógio do Juízo Final. Em 1945, cientistas que direta ou indiretamente, como Albert Einstein, ajudaram a desenvolver as primeiras armas nucleares, fundaram o Boletim de Cientistas Atômicos e, dois anos depois, criaram o Relógio do Juízo Final. Não é um relógio físico, é uma ideia que calcula em minutos e segundos o tempo que falta até a meia-noite, o fim do mundo. Este relógio escuro é uma metáfora para o risco de um conflito nuclear acabar com a civilização como a conhecemos. No início de cada ano é emitida uma declaração oficial indicando se avançamos ou atrasamos segundos.

A evolução do Relógio do Juízo Final desde dua criação (Boletim de cientistas atômicos)

A perestroika de Mikhail Gorbachev nos deu tempo, e a queda da União Soviética marcou o ponto mais distante do julgamento. Desde então, a cada ano se aproxima da 0:00, entre outras coisas devido à inclusão de novos riscos como o aquecimento global, a incorporação de mais países ao clube nuclear e o desenvolvimento de novas armas.

No início de 2022, o relógio marcava apenas 100 segundos para a meia-noite, mas poucos meios de comunicação fizeram eco, a sensação do risco de uma guerra nuclear parecia ter desaparecido.

A Doutrina da Destruição Mútua Assegurada e a matemática

Um encontro casual na Universidade de Princeton entre dois refugiados do nazismo levou a uma cooperação que terminaria com a publicação em 1944 de um livro surpreendente: Teoria dos Jogos e Comportamento Econômico. Os autores eram o matemático húngaro John von Neumann e o economista austríaco Oskar Morgenstern. A teoria dos jogos abriu um campo da matemática que serviria para avaliar as ações humanas em diferentes situações. A principal área de aplicação foi a economia. No entanto, o método se espalhou para outras áreas, e uma delas é a guerra.

Após a Segunda Guerra Mundial, a mesma teoria dos jogos levou John von Neumann a propor a doutrina da Destruição Mútua Assegurada (MAD, sigla em inglês, que também significa louco). Segundo o MAD, se os EUA (e a Otan) e a URSS (e o Pacto de Varsóvia) tivessem armas nucleares suficientes para matar o outro, não as usariam, porque seria autodestruição. Embora no fio da navalha, o mundo experimentou um período de paz extraordinariamente longo.

Desde 1986, o número de ogivas nucleares vem diminuindo, embora tenham permanecido em número suficiente para levar todo o planeta à catástrofe.

Inventário estimado de ogivas nucleares no mundo, 2022 (Matt Korda, and Robert Norris, Federation of American Scientists, 2022)

Mas o equilíbrio postulado pelo MAD está oscilando. A situação mudou em 24 de fevereiro de 2022 com o início da invasão da Ucrânia pela Rússia, e Putin se encarregou de nos lembrar que o risco do uso de armas nucleares ainda existe.

Cenários de acordo com a Teoria dos Jogos

A invasão da Ucrânia, que parecia ser uma parada militar, se transformou em um fiasco para Putin. As fraquezas de seu exército e sua inferioridade em relação às armas ocidentais foram reveladas. Mesmo tendo em conta que a propaganda nas guerras dificulta o conhecimento da verdade, é claro que a Ucrânia está recuperando, a um alto custo em vidas, parte dos territórios ocupados com algumas operações inquestionavelmente bem sucedidas, como a destruição parcial da ponte de Kerch, que liga a Crimeia à Rússia. O que acontecerá se o avanço da Ucrânia nessas áreas continuar?

A teoria dos jogos pode nos dar alguma clareza. Vamos considerar três cenários:

  1. A guerra está entrincheirada e continua indefinidamente.
  1. A Rússia lança uma grande ofensiva e consegue que a Ucrânia aceite as condições de Putin.
  1. A Ucrânia, com ajuda ocidental, consegue expulsar os russos das áreas ocupadas.

A terceira opção é para muitos a ideal. É possível que a Rússia aceite a situação, mas para Putin há mais em jogo do que a derrota. No abandono das áreas ocupadas poderia destruir os reatores de Zaporizhia. Isso seria um movimento desesperado que não lhe daria nenhuma vantagem ou impediria sua queda e, além disso, a contaminação afetaria a Rússia. Poderíamos propor que Putin nesta situação recorra ao uso de armas nucleares. A Rússia tem um gigantesco arsenal nuclear que poderia usar contra um país da Otan, mas nesse caso a destruição mutuamente assegurada é garantida. Por essa razão, esta rota parece descartada.

O cenário mais provável: O uso de uma bomba tática

Mas o que aconteceria se uma arma tática (uma pequena bomba nuclear) fosse usada nas áreas recuperadas pela Ucrânia sobre a qual a Rússia considera ter soberania?

A Rússia incorporou essas áreas formalmente, embora ilegalmente, em seu território. Segundo sua doutrina, um dos casos em que contempla o uso de armas nucleares é a agressão à Federação Russa, mesmo com armas convencionais, se a existência do Estado for ameaçada. A recuperação pela Ucrânia desses territórios na legalidade russa pode ser considerada uma ameaça contra a Federação Russa.

Uma bomba de fusão nuclear usa deutério e trítio que é ativado por menos de 10 kg de U-235 ou Pu-239. Esses isótopos precisam estar em concentrações muito altas, várias vezes superiores às encontradas em reatores nucleares, e obtê-los é, felizmente, extremamente difícil. Na verdade, a Rússia e os EUA não os produzem há décadas, eles têm o suficiente com o que têm em estoque.

Quando há fissão de U-235 ou Pu-239, eles geram principalmente isótopos de vida curta que se desintegram em poucos minutos. O mesmo acontece com os nêutrons liberados que ativam alguns materiais radioativos por algumas horas. A destruição é causada sobretudo pela liberação de energia. As menores (1 kt ou menos) são como bombas convencionais, mas com poder destrutivo muito maior. A consequência é que o país que os lança não teme ver seu próprio território contaminado, por isso não é um problema usá-los dentro de suas fronteiras ou em suas proximidades. Estima-se que a Rússia tenha cerca de 2 mil armas desse tipo, mas basta usar uma para mudar as regras do jogo.

A Rússia poderia usar essas bombas em áreas com baixa densidade populacional e, mesmo que não causasse milhares de mortes, o efeito de propaganda seria incontrolável. Teríamos entrado no reino da incerteza e, no melhor dos casos, talvez o cataclisma fosse apenas econômico.

A União Europeia deve agir de forma conjunta e se preparar para esta eventualidade. De fato, um acordo que inclua o maior número possível de países é necessário para isolar qualquer Estado que use uma arma desse tipo. Em um mundo pós-nuclear, todos seríamos perdedores.

A melhor opção de acordo com a teoria dos jogos

Uma das variantes da teoria dos jogos são os jogos cooperativos, populares pelo filme Uma Mente Brilhante que conta a vida de seu principal criador, John Nash.

A aplicação de jogos cooperativos à situação atual provavelmente nos levaria à opção menos ruim ser uma negociação com a Rússia que evitaria a opção nuclear, em vez de expulsar a Rússia de todas as áreas que ocupou, que também estão em guerra desde 2014.

Putin, antes de ser expulso e recorrer às armas nucleares, aceitaria a negociação. No longo prazo, parar a guerra, mesmo que isso signifique fazer algumas concessões injustas para a Ucrânia, acabará se voltando contra Putin.

Em uma análise risco-benefício, a teoria dos jogos nos diz que negociar com Putin é a opção menos ruim, mas é um jogo na corda bamba.

Em todo caso, devemos retomar o caminho da redução das armas nucleares: quem as tem pode usá-las para chantagear quem não as tem. Caso contrário, testemunharemos uma nova corrida nuclear na qual novas nações tentarão participar. O Relógio do Juízo Final marcaria mais rápido do que nunca a meia-noite.


*J. Guillermo Sánchez León é matemátido na IUFFyM, Universidad de Salamanca


Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em espanhol.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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