27 outubro 2022

Benjamin Junge: Falta de diálogo em eleição polarizada é ruim para a democracia

Aumento da violência política no país reflete o avanço do discurso autoritário em uma sociedade contraditória e com sentimentos ambíguos em relação à política, explica antropólogo na State University of New York. Para ele, definição de um novo presidente dificilmente vai superar as divisões abertas pelas disputas dos últimos anos

Aumento da violência política no país reflete o avanço do discurso autoritário em uma sociedade contraditória e com sentimentos ambíguos em relação à política, explica antropólogo na State University of New York. Para ele, definição de um novo presidente dificilmente vai superar as divisões abertas pelas disputas dos últimos anos

Divisão política em Brasília na época do impeachment de Dilma Rousseff (Foto: CC)

Por Daniel Buarque

Apesar de a população brasileira tradicionalmente se identificar como uma sociedade pacífica e harmônica, episódios de violência política têm se mostrado cada vez mais frequentes durante a campanha presidencial de 2022. Para o antropólogo americano Benjamin Junge, a radicalização política que se vê no país é um reflexo da falta de diálogo entre pessoas com pontos de vista diferentes, o que pode se tornar um problema duradouro para a democracia do país.

“Em uma democracia funcional e saudável, o momento de votar deveria ser precedido de pensamento, de diálogo, de informação e tudo isso fica comprometido neste momento”, disse, em entrevista à Interesse Nacional

Junge é um dos organizadores do livro recém-lançado Democracia Precária: Etnografias de esperança, desespero e resistência no Brasil. A obra examina como brasileiros comuns viveram e entenderam as mudanças drásticas pelas quais o Brasil passou entre 2013 e 2019. Parte dessa avaliação passa pela discussão a respeito da visão que essa população tem sobre a política do país.

Seu próprio trabalho analisa como estas divisões políticas criam problemas até mesmo dentro de famílias de classes populares brasileiras. Segundo ele, a sociedade do país sempre teve contradições e tendências autoritárias e hierárquicas, mas isso foi exacerbado e legitimado pelo discurso do presidente Jair Bolsonaro nos últimos quatro anos.

Leia abaixo a entrevista completa

Daniel Buarque – Seu livro menciona como a tradição política brasileira costumava levar a discussões, mas não à violência. Agora estamos vendo aumento de casos de violência política no país. Acha que há uma mudança na forma como as pessoas estão se comportando por causa da política no Brasil? 

Benjamin Junge – Sim. Esta é uma questão complicada, mas muito importante. É um fato empírico que a violência homofóbica, de gênero, de raça no Brasil tem aumentado desde 2018. E há mais na situação do que isso, pois havia violência homofóbica e baseada em raça e gênero antes disso. A questão é que não era tão visível e não havia um discurso público que a legitimasse. Este é um dos muitos legados terríveis de Bolsonaro. Ele não tem toda a culpa, pois isso já existia em formas menos desenvolvidas antes de 2018. Mas ele tentou legitimar isso intencionalmente, com um discurso duro e autoritário que vem de cima na sociedade. 

‘Esse discurso que vem de cima foi abraçado e internalizado por muitas pessoas comuns, gerando conflitos até mesmo dentro de grupos familiares’

E agora o Brasil chega às eleições com uma sociedade mais genuinamente polarizada. Esse discurso que vem de cima foi abraçado e internalizado por muitas pessoas comuns, gerando conflitos até mesmo dentro de grupos familiares. Parte dessa polarização já existia antes, como na eleição de 2018, mas se intensificou ainda mais na maneira como os brasileiros de ambos os lados do continuum ideológico articulam suas preocupações, suas frustrações e suas esperanças. Isso se concentra especialmente em dois temas, que são segurança e corrupção. O curioso é que os dois lados em disputa concordam que estes dois pontos são problemáticos, mas adotam posturas muito diferentes em relação a eles. 

Daniel Buarque – Como esse contexto de aumento da violência pode impactar nas relações sociais e políticas no Brasil? 

Benjamin Junge – Isso já é um problema político no país. A ideia de que o conservadorismo é um fenômeno novo no Brasil não faz muito sentido. Trata-se de uma continuidade de uma cultura autoritária que habita a sociedade brasileira. Não há nada de novo ou recente nas crescentes manifestações de intolerância. Acho que o Brasil é uma sociedade profundamente autoritária e hierárquica. Agora, a questão da violência, é diferente, pois as pessoas podem ser intolerantes sem necessariamente atacar e matar o outro. E isso vem crescendo, mesmo que os brasileiros continuem se identificando como pacifistas em uma sociedade harmônica. 

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As redes sociais tiveram uma força muito negativa no discurso democrático, sobre a capacidade de as pessoas que discordam de questões políticas conversarem de forma pacífica sobre seus pontos de vista. As pessoas publicam seus pontos de vista, mas não há mais diálogo. E a pandemia acelerou isso. Este contexto reduziu as discussões interpessoais até mesmo dentro das famílias. E essas discussões são importantes para a democracia.  É importante que as pessoas conversem umas com as outras mesmo que não concordem. 

Não podemos colocar toda a culpa em Bolsonaro, mas ele é um modelo desse tipo de comportamento desde o topo. A polarização que começou a se solidificar em 2018 e agora está muito mais consolidada e transformou o ambiente das famílias em um espaço estranho. Tradicionalmente é aonde as pessoas vão atrás de apoio e amor. E por mais que isso ainda seja verdade, também é um lugar estranho, especialmente para as gerações mais jovens. Parece que eles se sentem fora do lugar. E as redes sociais são parte disso, amplificando os conflitos. Isso é muito ruim para a democracia.

‘Há um tipo particular de ressentimento, desencanto, ceticismo que toma conta da mente das pessoas quando elas experimentam uma vida melhor e então perdem isso’

O foco da minha  pesquisa são as classes populares, pessoas que experimentaram algum tipo de mobilidade ascendente durante a primeira década do século XX, mas que, como todo mundo, na segunda década do século, ficaram em estado de precariedade. Tento entender o sentimento político dessa população. É um grupo que foi incentivado pelo Estado a sonhar com um futuro melhor e conseguiu avançar por algum tempo. Isso lhes deu um vislumbre de uma vida melhor. E então, claro, começando por volta de 2012, 2013, talvez um pouco antes, tudo foi precarizado por conta das crises econômica e política. Há um tipo particular de ressentimento, desencanto, ceticismo que toma conta da mente das pessoas quando elas experimentam uma vida melhor e então perdem isso. Este grupo nunca desenvolveu um sentimento mais elaborado sobre política, ou de solidariedade. Muito do que houve foi uma visão muito consumista de redução da pobreza. E a esquerda pagou o preço por isso, porque muitas dessas pessoas que se beneficiaram de políticas do PT se voltaram contra ela quando sua situação foi precarizada. E a maneira como essas pessoas passaram a lidar com isso foi em parte através de discussões morais sobre gênero, sexualidade e religião ao longo de linhas geracionais. É um sentimento profundamente ambivalente.

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Daniel Buarque – Como acha que essa situação vai ficar após as eleições?

Benjamin Junge – O que estamos vendo é o encerramento do diálogo, que é ruim para a democracia. Em uma democracia funcional e saudável, o momento de votar deveria ser precedido de pensamento, de diálogo, de informação e tudo isso fica comprometido neste momento, quando as famílias não conversam entre si. O primeiro passo já está contaminado neste momento. Se você for para fora da família, é ainda mais difícil de conseguir esse diálogo e fazer pessoas conversarem com outras que discordam delas. 

‘O que estamos vendo é o encerramento do diálogo, que é ruim para a democracia’

A posição de muitos dos eleitores de Bolsonaro, por exemplo, reflete uma espécie de frustração ou uma certa dificuldade em abraçar uma sociedade multicultural. Esta é a grande questão que o Brasil vai ter que resolver. Ele vai ser a sociedade igualitária prevista na Constituição de 1988? Isso não se reflete na realidade. É um desafio criar uma sociedade multicultural.

Não estou otimista em relação à situação do país após as eleições. Aconteça o que acontecer, a eleição não vai aproximar as famílias que têm tensões ideológicas. Isso é ruim, e qualquer que seja o resultado das eleições de outubro, não vai se resolver esse problema.

Daniel Buarque – Um ponto interessante é que seu trabalho lida muito com a ideia de “família”, e este é um assunto que está no centro do discurso de apoio a Bolsonaro, por mais que você mostre que a polarização está dividindo muitas famílias. Como vê este processo e o lugar da ideia de família na sociedade brasileira?

Benjamin Junge – Para os apoiadores de Bolsonaro, os últimos quatro anos foram uma chance de restaurar uma velha visão do patriarcado em que o papel do homem na sociedade é prover para sua família, cuidar dela e protegê-la. Trata-se de uma velha noção do papel do homem na sociedade, que se tornou mais forte entre os apoiadores de Bolsonaro e vai persistir mesmo que Lula ganhe.

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O problema é que em muitas dessas famílias há pessoas, especialmente mais jovens, que não têm essa visão de mundo e não querem ser protegidas, não querem ser cuidadas, mulheres que não querem ser tratadas como cidadãs de menor importância. Então a questão geracional é fundamental. Jovens que cresceram nos anos de progresso, não conheceram a ditadura e conheceram um período de crescimento e um otimismo, com abraço de uma sociedade multicultural, com visibilidade racial. Isso não vai mudar após as eleições.

Essa é uma questão em disputa em torno do conceito de patriotismo, como se o Brasil fosse um país homogêneo. Os brasileiros têm uma capacidade incrível de carregar contradições, de comemorar e se divertir mesmo com diferenças ideológicas e políticas. É bom que as pessoas de alguma forma ainda possam se dar bem umas com as outras, mesmo que discordem fortemente. Por outro lado, é problemático agir como se tudo estivesse bem quando na verdade há problemas e divisões reais, especialmente ao longo de linhas geracionais, que devem ser discutidas.

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Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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