Marcel Fortuna Biato: O Acordo da Sexta-Feira Santa – 25 anos de paz armada
O processo de paz foi um pacto entre combatentes exauridos que, incapazes de derrotar o adversário pelas armas, transformaram um empate militar em paralisia política. Para embaixador, Forjar uma nova identidade inclusiva, agrupando generosamente toda a nação irlandesa, constituirá o passo final rumo à descolonização definitiva da ilha
O processo de paz foi um pacto entre combatentes exauridos que, incapazes de derrotar o adversário pelas armas, transformaram um empate militar em paralisia política. Para embaixador, forjar uma nova identidade inclusiva, agrupando generosamente toda a nação irlandesa, constituirá o passo final rumo à descolonização definitiva da ilha
Por Marcel Fortuna Biato*
Em 10 de abril deste ano, comemoraram-se os 25 anos do Acordo de Paz de Belfast. Para entender a importância desse marco basta circular pela pacata Falls Road, num bairro operário da cidade. Em 1998, essa rua era palco de The Troubles, guerra civil que ceifou quase 4.000 vidas e semeou incontável dor e destruição na Irlanda do Norte. Por anos, o mundo assistiu a cenas estarrecedoras de pistoleiros alvejando transeuntes desarmados a sangre frio, e bombas aleatórias matando crianças e mutilando famílias.
Uma descolonização incompleta
Não sem razão, o fim dessa tragédia foi visto como um verdadeiro milagre, numa alusão ao fato de o Acordo ter sido firmado na Sexta-Feira Santa; mais extraordinário foi o fato de interromper uma disputa secular, que nasce de processo de conquista e colonização igual ao vivido nas Américas. No início dos anos 1700, peregrinos calvinistas aportaram em Dublin, assim como chegariam à Nova Inglaterra. Por séculos, os celtas católicos –como os ameríndios no Novo Mundo- tiveram sua religião execrada, sua língua banida e sua cultura denegrida. Só que a descolonização irlandesa ainda não terminou, deixando feridas ainda em aberto na Irlanda do Norte de hoje.
De calçadas opostas da Falls Road, memoriais com cores fortes e palavras desafiadoras preservam a lembrança viva dos mártires dessa luta inconclusa. Disso dão prova os “muros da paz” levantados para apartar comunidades vizinhas rivais.
De um lado, uma minoria católica-nacionalista por décadas vítima de um regime de apartheid imposto pela maioria protestante na Irlanda do Norte. Rejeita a criação, em 1921, deste enclave britânico e defende a reunificação da ilha, em nome da plena autodeterminação do povo irlandês.
De outro, a maioria protestante-unionista, que se orgulha de suas origem inglesa e identidade britânica. Defende a continuidade da união da Irlanda do Norte ao Reino Unido. Esses 1.5 milhão de protestantes temem que, caso incorporados aos 5 milhões de católicos na República da Irlanda, correriam o risco de sofrer o mesmo destino que impuseram aos católicos no passado: ser uma população oprimida e discriminada dentre de seu próprio país.
A pedra de toque do Acordo assinado em 1998 foi o reconhecimento recíproco por nacionalistas e por unionistas da legitimidade da aspiração do antagonista. A República da Irlanda deixou de fazer da reunificação uma cláusula pétrea de sua constituição, passando a admitir a existência da Irlanda do Norte como entidade soberana. Em contrapartida, o governo britânico passou a admitir a hipótese de uma futura reunificação da ilha, caso uma maioria da população norte-irlandesa assim desejar.
Deixou-se assim em aberto o futuro formato constitucional da ilha compartilhada por todos os irlandeses: uma Irlanda unificada ou a continuidade da Irlanda do Norte como parte integrante do Reino Unido. Ficou igualmente por definir o calendário para esclarecer essa questão: o governo britânico convocará plebiscito na Irlanda do Norte se, em algum momento, avaliar que se formou uma maioria a favor de mudança.
Para implementar esse entendimento, apostou-se num pacto de governabilidade. Nacionalistas e unionistas formariam uma coalisão governista, um casamento forçado, inimigos siameses doravante unidos pelas rédeas do poder[1]. Essa convivência de conveniência, imaginava-se, abriria caminho para um gradual desarmamento de espíritos. Uma progressiva acomodação facilitaria encontrar respostas às complexas e polêmicas questões políticas e constitucionais que ficaram em aberto.
Um cessar-fogo sem pacificação
As armas silenciaram e, com os anos, muitas das mais graves injustiças econômicas e preconceitos sociais que ajudaram a alimentar o conflito foram superadas. No entanto, a tese de um círculo virtuoso de reconciliação não vingou. Todo início de julho, a Irlanda do Norte entra em estado de alerta. Sob o olhar contrariado da comunidade nacionalista, os unionistas celebram triunfantes, com fogueiras gigantes e desfiles marciais, o longínquo ano de 1689, quando fracassou às margens do rio Boyne, ao norte de Dublin, a última investida dos católicos para expulsar os colonizadores protestantes.
A verdade é que o Acordo instituiu uma democracia tutelada e, por isso, truncada. O conflito havia degenerado em uma “guerra suja”, ataques terroristas do Exército Republicano Irlandês, o IRA, eram revidados pelos paramilitares unionistas e forças britânicas com igual brutalidade. Em meio ao ciclo insano de vingança retaliatória, a principal vítima eram os direitos humanos de todos.
Os beligerantes atenderam ao clamor popular por um fim da carnificina, mas nem por isso estavam prontos para a pacificação. Os respectivos grupos paramilitares recuaram, mas não foram desarmados nem punidos adequadamente. Esse verdadeiro pacto de não-agressão não assegurava, no entanto, uma governabilidade segura. Pelo Acordo, tanto nacionalistas como unionistas preservaram o direito de bloquear unilateralmente –mesmo sem ter uma maioria parlamentar- qualquer iniciativa que julgassem lesiva a seus interesses. Prevaleceu uma lógica de desconfiança sectária, que legitimava a prerrogativa dos protagonistas de ambos os lados de colapsar o governo. O impasse como estratégia.
O processo de paz foi um pacto entre combatentes exauridos. Não podendo derrotar o adversário pelas armas, terminaram por transformar um empate militar em paralisia política. Dois pressupostos aparentemente imutáveis deram décadas de sobrevida a esse equilíbrio instável. De um lado, a convicção de que Irlanda do Norte, constituída politicamente e organizada eleitoralmente para ser um eterno feudo anglo-protestante, resguardaria, ainda que diluída, a preeminência política dos unionistas. De outro, a aposta que a preservação desse enclave era fundamental à integridade do próprio Reino Unido, que nunca hesitaria, portanto, em defender os interesses paroquiais dos unionistas contra o irredentismo nacionalista.
A verdade, no entanto, é que nenhuma dessas duas certezas resistiu à passagem do tempo. Em anos recentes, os católicos passaram a ser maioria demográfica na Irlanda do Norte e, como corolário, em 2022 ganharam, pela primeira vez, as eleições ao Stormont[2]. Como agravante, o referendo do Brexit, em 2016, liberou energias centrípetas que ameaçam despedaçar o Reino Unido. Em contraste com os ingleses, os norte-irlandeses –assim como os escoceses– votaram por permanecer na União Europeia. Uma maioria dos habitantes da Irlanda do Norte enxerga sua prosperidade cada vez mais vinculada ao espaço econômico europeu –e não necessariamente a Londres. Inspiraram-se, por certo, no exemplo dos primos ao sul, historicamente muito mais pobres, mas hoje significativamente mais prósperos que os britânicos. Numa tentativa de reverter essa dinâmica de crescente integração econômica e perigosa aproximação política com os sulistas, os unionistas apelaram para a velha prática de tornar a Irlanda do Norte ingovernável ao abandonar a coligação com os nacionalistas.
Mais uma vez, o pacto de governabilidade sucumbiu a uma perene e beligerante desconfiança. Não estranha que, hoje, são 37 quilômetros de “muros de paz”, muito mais do que em 1998. Enterrou-se qualquer ilusão de que alcançar a pacificação duradoura é simplesmente uma questão de tempo.
Democracia, identidade e paz
Passados 25 anos, escasseiam-se os dividendos da paz de um modelo de governança que interrompeu o derramamento de sangue, mas não criou um roteiro para a reconciliação definitiva. Pois permitiu que desavenças históricas fossem a cada geração realimentadas. Mais grave, não baniu completamente o espectro do retorno às armas. Os grupos paramilitares, dos dois lados, permanecem uma mão morta, uma ameaça latente, a pesar sobre qualquer esforço de diálogo franco.
Inevitavelmente, cresce o coro dos questionamentos ao pactado em 1998 entre as gerações mais novas, que não vivenciaram as agruras dos anos de chumbo. Ganha força o clamor pela abolição do mecanismo de repartição sectária em detrimento do interesse coletivo. Fração crescente da população, ainda que nominalmente católica ou protestante, não adere ao discurso binário. Defende a instauração de regime de representação efetivamente proporcional, de modo a eliminar a capacidade de minorias recalcitrantes manter refém a sociedade como um todo.
O fim da Guerra Fria e o colapso do regime de apartheid na África do Sul sinalizavam o anacronismo do conflito etnorreligioso na Irlanda do Norte.
Uma nova geração de líderes em Belfast, Londres, Dublin e Washington entenderam a mensagem e juntaram forças, naquela Sexta-Feira Santa. Haverá, hoje, condições para um novo gesto de estadismo que desmonte em definitivo a lógica do sectarismo revanchista? Perseguição religiosa e apartheid socioeconômico são coisas do passado. O que resta por vencer na Irlanda do Norte é uma disputa tribal por identidade e poder, alimentado pelo discurso do ódio e do rancor.
Em 1998, descortinou-se uma saída para romper esse nó górdio. Para escapar ao binarismo adversativo, que admite apenas identidades excludentes, contrapostas, o Acordo propõe uma relação de convivência mais fluida. Parte do pressuposto de que a identidade nacional é uma construção complexa, não necessariamente monolítica nem restrita a parâmetros histórico-territoriais, mas confortável na múltipla diversidade[3]. Os mecanismos de cooperação transfronteiriça previstos no Acordo ajudam a aterrissar essa aspiração, ao viabilizar fórmulas de integração binacional que condicionam a soberania ao imperativo da tolerância e da paz.
A construção dessa nova identidade requer a cicatrização das feridas herdadas. Começa com uma coreografia de gestos recíprocos de remorso, perdão e reconciliação. Nenhum tem maior poder restaurador do que assegurar justiça às vítimas e oferecer reparações aos familiares. Infelizmente, essa é uma frentes em que o processo de paz silenciou, preservando a impunidade de grupos paramilitares.
Forjar essa nova identidade inclusiva, agrupando generosamente toda a nação irlandesa, constituirá o passo final rumo à descolonização definitiva da ilha, livre das amarras do passado. Este é um dos pouco consensos entre irlandeses. É também o que pede um dos grafites na Falls Road: “A paz não pode ser imposta pela força; só pode ser alcançada pelo diálogo”.
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*Marcel Fortuna Biato é diplomata e embaixador do Brasil na Irlanda. É mestre em sociologia política pela London School of Economics, do Reino Unido. Foi assessor especial da Presidência da República de 2007 a 2010 e embaixador na Bolívia de 2010 a 2013. Atuou também como representante na Missão Permanente do Brasil junto à Agência Internacional de Energia Atômica em Viena, na Áustria.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
[1] O Acordo estipula eufemisticamente uma “paridade de estima” entre as “duas tradições”.
[2] Sede do parlamento regional de Belfast, que só não é responsável por defesa e política externa, prerrogativas do parlamento nacional de Westminister.
[3] Pelo Acordo, os norte-irlandeses podem optar pela “cidadania irlandesa, britânica ou ambas”.
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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