Ivan Bomfim: A estrutural dificuldade da imprensa em pensar o mundo a partir do Brasil
Cobertura da política externa de Lula na mídia nacional tem adotado um tom crítico influenciado por uma visão baseada em interesses estrangeiros, especialmente dos EUA. Para professor de jornalismo, a postura de imprensa conflui para uma negação da existência do Brasil, o que acaba por reforçar a primazia do establishment
Cobertura da política externa de Lula na mídia nacional tem adotado um tom crítico influenciado por uma visão de mundo baseada em interesses estrangeiros, especialmente dos EUA. Para professor de jornalismo, a postura de imprensa conflui para uma negação da existência do Brasil, o que acaba por reforçar a primazia do establishment
Por Ivan Bomfim*
Enquanto potência regional, país com enorme população e uma das 15 maiores economias do mundo, é natural que o Brasil busque traçar um caminho próprio em sua atuação no ambiente internacional –historicamente, tal perspectiva foi uma das que guiaram a formulação da Política Externa Brasileira (PEB).
Ao longo da maior parte do século XX até metade da segunda década do XXI, a imagem de não-alinhado e de líder das nações em desenvolvimento foi cultivada pelos governos e pelo Itamaraty, objetivando a maximização de ganhos numa arena dominada por potências e seus artifícios de pressão –das sanções econômicas ao uso de força bélica (com aparições esporádicas do fantasma da ameaça nuclear).
A viagem, em caráter de visita de Estado, do atual presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, à China entre os dias 12 e 15 de abril, indica que o país retoma as rédeas de condução própria das relações externas. Mais do que a assinatura de acordos e parcerias, a missão busca a afirmação, no cenário internacional, de interesses próprios, sob viés nacional.
Este posicionamento é especialmente necessário após um interregno de subserviência ardorosa do governo de Jair Bolsonaro aos interesses dos Estados Unidos durante a administração Trump. Ao longo desse período, diversas situações causaram embaraço na relação com os chineses, com ataques a Pequim e declarações xenófobas por integrantes do governo, inclusive por parte do próprio mandatário. Com a subida ao poder de Joe Biden, em 2021, o Ministério das Relações Exteriores de Bolsonaro perdeu seu norte, imiscuindo-se a uma agenda proscrita no cenário mundial –vale lembrar a frase do ex-chanceler Ernesto Araújo (2019-2021), jactando-se de que se a atuação do Itamaraty “faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”.
Em expressiva medida, porém, a chamada grande imprensa do país –que, de modo simplificado, podemos definir como empresas e veículos noticiosos com trajetória histórica destacada e de credibilidade no que tange a sociedade– não se caracteriza por uma compreensão dessa perspectiva.
É marcante que, ao noticiar as ações do Estado brasileiro em dimensão internacional, a maior parte da mídia jornalística não busque fazê-lo a partir do que seriam as bases de interesse de uma política independente; são defendidas lógicas, valores e mesmo crenças arquitetadas a partir de cosmovisões externas. Em parte, tal situação advém de uma cobertura baseada em agências de notícias internacionais, que refletem formas de ver e entender o mundo formuladas alhures. O jornalismo sobre acontecimentos além das fronteiras nacionais, desde o século XIX, depende da atuação dessas empresas, que alimentam os meios de comunicação com a disponibilização de conteúdos por meio de despachos.
Mas as notícias sobre política externa não devem ser alocadas no mesma conformação que molda a editoria de jornalismo internacional, pois envolvem também interesses internos. No caso brasileiro, há um engendramento entre substratos informativos externos e domésticos, com estes produzidos no espectro do chamado jornalismo político. Desta feita, considerável fração da atenção da imprensa sobre as interações do Brasil com outros atores estatais vai expressar, também, formas de narrativização da arena política nacional, enraizada nas disputas ideológicas (partidárias ou não).
Imaginário periférico
Levando-se em conta que o jornalismo é uma forma de conhecimento e que participa dos processos de construção social da realidade, pode-se entender que as disputas de sentido na cobertura sobre política externa refletem modos de compreensão do ambiente internacional, com posições normativas sobre como “ser” e “estar” no mundo.
São entremeadas posições editoriais advindas de grupos midiáticos públicos e/ou privados como Reuters, Bloomberg, BBC, AFP, EFE, Associated Press, entre outras –que respondem a demandas e conjunturas específicas– às dinâmicas envolvendo grupos de interesse e de pressão nacionais, em suas diversas formas e constituições, expressando objetivos políticos, econômicos e socioculturais.
Ademais do panorama exposto, é necessário destacar que o “entendimento de si” do Brasil é perpassado, historicamente, por considerações do país como ente periférico, em contraposição àqueles que compõem o que antigamente era chamado de “primeiro mundo”. Os processos de colonização, além do modelo econômico de exploração e da normalização da desigualdade social, estabeleceram também um complexo de inferioridade que influencia, objetivamente e subjetivamente, das formas pelas quais os brasileiros dão sentido ao mundo.
Esta situação pode ser percebida em diversas manifestações: de um deslumbramento relativo ao consumo de produtos e serviços estrangeiros à extrema preocupação da imprensa nacional com o que é publicado em veículos jornalísticos sobre o Brasil. É de conhecimento geral a ideia de “complexo de vira-lata”, cunhada por Nelson Rodrigues, com a expressão representando um imaginário periférico.
Em minha tese de doutorado (2015)[1], argumentei que parte da imprensa buscou instituir uma concepção negativa do processo de inserção empreendido ao longo da primeira administração Lula da Silva (2003-2010), mobilizando para tal sentidos de inferioridade em relação aos países do Norte Global. É relevante destacar o termo “megalonanico”, cunhado pelo jornalista Reinaldo Azevedo em fins da década de 2000, para se referir à concepção de política externa “altiva e ativa” defendida pelo então chanceler Celso Amorim. O vocábulo representa a ideia de um país que se imaginava maior do que realmente era, sendo conduzido por um “delírio de grandeza” ao querer participar do jogo como protagonista. Curiosamente, na atualidade, Azevedo se tornou um dos principais (e únicos) defensores de posicionamento independente da PEB na grande imprensa.
Alguns conteúdos publicados pela imprensa de referência brasileira nos dias após a viagem de Lula à China trazem elementos interessantes. As opiniões de colunistas e articulistas, em grande parte, indicam um verdadeiro desastre diplomático.
Por exemplo, a coluna Radar, da Veja, trouxe como manchete Lula ofusca agenda positiva na China com novo fiasco internacional. Em texto no site d´O Globo, em meio a críticas sobre “declarações infelizes”, Míriam Leitão desconsiderou o questionamento que o presidente fez sobre a utilização do dólar nas transações mundiais. No portal G1, também do Grupo Globo, Gerson Camarotti traz diversas opiniões de um integrante da diplomacia dos EUA em off (ou seja, de maneira anônima), ecoando a voz e os interesses da fonte sem que esta precise se revelar. Por sua vez, uma enxurrada de matérias em distintos veículos trouxe como mote as críticas da imprensa dos EUA ao Brasil e a Lula em suas relações com a China.
É espantosa a ausência de mínimo aprofundamento sobre os interesses do próprio Estado brasileiro. Via de regra, as ações do país são noticiadas a partir de ponto de vista que ignora solenemente as motivações e metas nacionais, empregando narrativas que dificultam maneiras de pensar o mundo a partir de outras formas de compreensão dos processos globais; o conceito de soberania parece algo acessório ou mesmo inexistente, já que o mundo é tomado como hierárquico, com a verdade emanando do que se convencionou a chamar de Ocidente.
A postura de expressiva parcela das empresas jornalísticas acaba confluindo para uma negação da existência do Brasil se não atrelada às concepções norte-americanas de valores internacionais, o que acaba por reforçar, justamente, a primazia do establishment. O questionamento ao regime de poder já estabelecido é uma das principais bases da PEB, disposição que possibilita ao Itamaraty ser historicamente porta-voz dos países não centrais e apontar as contradições do sistema internacional.
Após o período como pária global sob o governo Bolsonaro, o retorno do Brasil ao cenário mundial poderia suscitar outras abordagens editoriais sobre a realidade internacional. Contudo, as conformações históricas, ideológicas, econômicas e políticas reforçam a estrutural impossibilidade jornalística de pensar as relações internacionais em perspectiva brasileira, com a unipolaridade sendo um traço constitutivo dos enquadramentos noticiosos efetivados. Esta invisibilização de alternativas erigidas a partir da experiência singular dificulta que a sociedade brasileira possa pensar, imaginar e, em certo sentido, ver a dimensão global a partir de lentes próprias.
*Ivan Bomfim é professor do Departamento de Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), doutor e mestre em comunicação e informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com especialização em Relações Internacionais pela PUC Minas e graduado em História (UFMG) e Jornalismo (UNIBH). Atualmente, é coordenador do Grupo de Interesse Comunicação Internacional da Associación Latinoamericana de Investigadores de la Comunicación (ALAIC).
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Referências:
[1] BOMFIM, Ivan. O global player “megalonanico”: a visão do portal Veja sobre a Política Externa do Governo Lula. 2015. Tese (doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2015. Disponível em <https://www.academia.edu/77688682/O_global_player_megalonanico_a_vis%C3%A3o_do_portal_Veja_sobre_a_pol%C3%ADtica_externa_do_governo_Lula>.
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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