A saga da Índia 5
Pouso indiano na lua reflete décadas de investimento em ciência e tecnologia no país a fim de impulsionar seu desenvolvimento. Para embaixador, o país busca construir uma relação privilegiada com os EUA para reforçar sua posição como potência regional e criar um contrapeso à influência estratégica da China
Pouso indiano na lua reflete décadas de investimento em ciência e tecnologia no país a fim de impulsionar seu desenvolvimento. Para embaixador, Índia busca construir uma relação privilegiada com os EUA para reforçar sua posição como potência regional e criar um contrapeso à influência estratégica da China
Por Fausto Godoy*
Como acompanhamos pela imprensa, no dia 23 de agosto a Índia tornou-se o quarto país a enviar uma nave espacial à lua. Porém, diferentemente dos seus três antecessores – a Rússia (então União Soviética), o primeiro a realizar a façanha, em 1966; os Estados Unidos, três meses após os russos; e a China, em 2013 –, a iniciativa indiana foi mais ambiciosa: o Chandrayaan-3 pousou no polo sul lunar, região considerada mais difícil do que a faixa equatorial do satélite, local onde os outros “alunaram”.
Agora, o foco dos cientistas indianos passou a ser a paralelamente pesquisar o sol. De acordo com a Indian Space Research Organization (Organização Indiana de Pesquisa Espacial/ISRO), estava previsto para o dia 2 de setembro o lançamento da espaçonave Aditya-L1, na tentativa de estudar o astro-rei. Esta operação, apontou a entidade, constituirá o primeiro observatório espacial do país para “desvendar” o sol. A missão focará o estudo das características do vento solar, que pode potencialmente causar perturbações nos sistemas de comunicações e navegação na Terra.
Qual é a motivação destas iniciativas? Vamos à História.
Logo após a independência, em 1947, Jawaharlal Nehru, o primeiro primeiro-ministro da Índia, iniciou reformas para promover a área de ciência e tecnologia. Uma das primeiras iniciativas foi a criação do Indian Institute of Technology (IIT), concebido por uma comissão de acadêmicos e empresários. Inaugurado em 18 de agosto de 1951, o ITT foi a matriz de todo o processo subsequente.
A partir da década de 1960, laços estreitos do país com a União Soviética permitiram que, paralelamente ao programa espacial, a ISRO avançasse nas pesquisas nucleares. Recordemos que as relações conturbadas com o vizinho Paquistão foram o principal motivo da autorização dada pela primeira-ministra Indira Gandhi para que a Índia detonasse um artefato nuclear – o Pokran-I – no deserto do Rajastão, na manhã de 18 de maio de 1974, transformando-se numa potência nuclear, ainda que não reconhecida pelo Tratado de Não-Proliferação Nuclear (TNP).
Esta realidade foi um choque para o mundo inteiro. O Paquistão “reciprocaria” quando realizou com sucesso, em 28 de maio de 1998, o teste Chagai-I, codinome de cinco explosões subterrâneas simultâneas na província do Baluchistão. Esta iniciativa, e o momento em que ocorreu, foi uma resposta direta ao segundo teste nuclear – Pokhran-II – que a Índia efetuara alguns dias antes.
Nenhum dos dois aderiu até o momento ao TNP. São, portanto, “potências nucleares não-declaradas”. Mas ambos comprometeram-se com a política do No First Use, o que significa que nenhum deles será o primeiro a lançar mão desses artefatos num conflito. E ambos respeitaram este compromisso até agora.
Vamos à análise dos dados e fatos.
A Índia moderna mantém um forte foco em ciência e tecnologia, áreas consideradas chaves para o seu crescimento econômico. Com este objetivo, o governo introduziu várias políticas destinadas a projetar o país como potência nessa esfera e, para tanto, envolveu estreitamente os setores público e privado.
As áreas de tecnologia da informação, biotecnologia, setor aeroespacial, ciência nuclear, tecnologia de fabricação, engenharia automobilística, engenharia química, construção naval, eletrônica, ciência da computação e ciências médicas incluem-se entre as que estão sendo promovidas em grande escala. Como resultado, a despesa bruta do governo em P&D vem aumentando consistentemente ao longo dos anos; fruto disto, a Índia responde atualmente por cerca de 10% de todas as despesas em P&D na Ásia.
A escolha pela área de ciência e tecnologia tem dois grandes êmulos: a China e o futuro de sua juventude.
Vamos ao primeiro: ainda que parceiras no clube – até agora – fechado do Brics, a disputa pela liderança na Ásia entre as duas grandes potências regionais tem-se acirrado nesta última década.
A China saiu na frente, como sabemos, e agora confronta-se com o desafio de consolidar o seu futuro segundo os padrões que definira, sobretudo o de ser a superpotência comercial do planeta. Para tanto, desenhou e está implementando os projetos Belt and Road Initiative (a “Nova Rota da Seda”), que unirá a Eurásia à África (so far) e o plano Made in China 2025, em que selecionou dez setores de tecnologia de ponta nos quais focará a sua política de desenvolvimento.
Enfrenta, entretanto, uma percebida estagnação decorrente do seu próprio sucesso: a economia patina frente à resistência do Ocidente afluente em entregar-lhe esta liderança; e neste cenário, busca transferir o foco da sua política de desenvolvimento para o setor interno, ou seja, para a sua população cada vez mais afluente, mas declinante em número de indivíduos. Isto muito resumidamente, é claro.
Às voltas com os seus desafios de política interna, a Índia saiu depois, mas, como vimos, empenha-se em resgatar o tempo perdido. A aposta principal é na sua juventude e na necessidade de suprir mercado de trabalho para mais de 50% de uma população com menos de 25 anos de idade, e mais de 65% com menos de 35 anos.
Através de Planos Quinquenais, o governo persegue quatro objetivos principais: crescimento, modernização, autossuficiência e equidade. No quesito crescimento inclui o aumento da capacidade do país de produzir bens e serviços internamente, e impulsionar as novas tecnologias que aumentem a produtividade e a eficiência das empresas indianas.
Lançando mão da sua liderança na área da tecnologia da informação – a grande maioria das empresas de call centers no mundo é indiana – e da facilidade natural da sua juventude em lidar com dados abstratos – foram os indianos que inventaram o zero – o governo e os setores empresariais adotaram a política de apoiar as campeãs de TI, várias delas presentes no Brasil: Tata Consultancy, Infosys, Wipro são nomes reconhecidos pelos brasileiros.
No campo externo, a fim de se recuperar da perda no final da Guerra Fria, em 1991, da que fora sua parceira estratégica tradicional, a União Soviética, a Índia vem procurando construir uma relação “privilegiada” com os Estados Unidos e os aliados deste no Sudeste Asiático. Esta mudança visa reforçar sua posição como potência regional e criar um contrapeso à influência estratégica da China.
Para tanto, em novembro de 2014 o governo de Narendra Modi, do Bharatiya Janata Party, atualmente no poder, lançou o plano Act East Policy, que foi uma atualização da política Look East do governo anterior, do Indian Congress. Trata-se de uma iniciativa diplomática para promover relações econômicas, estratégicas e culturais em diferentes níveis com a vasta região da Ásia-Pacífico, sobretudo com os países-membros da Asean. As áreas priorizadas foram conectividade, comércio, cultura, defesa e as relações interpessoais nos níveis bilateral, regional e multilateral.
Les jeux sont faits. A roleta das relações entre as grandes potências da Ásia segue em movimento: Índia + China, Índia X China, India/China, Índia + Ásia-Pacífico. E o Japão, que na década de 1990 chegou a atemorizar os americanos com seu desenvolvimento acelerado?
To be continued…
*Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.
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