Hamas, Israel, ‘religião’ e o uso político do termo ‘terrorismo’
Ataque do grupo palestino contra israelenses gerou troca de acusações e pressão pelo uso da classificação em discussões sobre política internacional. Para cientista política, na guerra de declarada por Israel contra Gaza, definir quem é ‘o verdadeiro terrorista’ só serve a um propósito: legitimar massacres
Ataque do grupo palestino contra israelenses gerou troca de acusações e pressão pelo uso da classificação em discussões sobre política internacional. Para cientista política, na guerra de declarada por Israel contra Gaza, definir quem é ‘o verdadeiro terrorista’ só serve a um propósito: legitimar massacres
Por Fhoutine Marie*
No dia 9 de outubro de 2023 o presidente de Israel, Isaac Herzog, pediu em pronunciamento público para que os países condenassem as ações do Hamas e classificassem a organização como terrorista. O discurso veio alguns dias após os ataques desferidos pelo grupo palestino contra território e civis israelenses, numa ousada operação que vitimou mais de 700 pessoas no mesmo dia.
Mistura de partido político, movimento social e grupo paramilitar, o Hamas governa a faixa de Gaza desde 2006, quando venceu as eleições locais derrotando o Fatah, facção rival que atualmente governa a Cisjordânia. Desde então não ocorreram mais eleições em Gaza. O grupo é considerado terrorista por alguns países, como Estados Unidos e Reino Unido, mas não pela Organização das Nações Unidas e outros países, como Rússia, China e Brasil.
No mesmo dia, no Brasil, a palavra terrorista quase levou Lindbergh Farias (PT-SP) e Carla Zambelli (PL-SP) às vias de fato. Os deputados federais discutiram no plenário da Câmara trocando acusações mútuas. Farias acusou Zambelli de ser terrorista, por conta dos atos golpistas de 8 de janeiro e do episódio em que a deputada perseguiu um homem com arma em punho em São Paulo, na véspera das eleições de 2023. Em resposta, Zambelli disse que o deputado não queria responder a ela se o Hamas era ou não um grupo terrorista. “O seu presidente anda de mãos dadas com pessoas que são terroristas e apoiam o terrorismo”, declarou.
Evidentemente, não se trata de uma troca de ofensa pueril, como se um chamasse ao outro de feio e outro retrucasse: feio é você. Se o presidente de um país atacado pede que a comunidade internacional use esta palavra, se não há consenso entre os países que integram o Conselho de Segurança da ONU, se Lula considera o ataque terrorista, mas evita chamar o Hamas dessa forma, se um dos maiores jornais do Brasil opta pelo contrário e decide que é assim que o grupo deve ser chamado, se dois deputados federais usam o termo para dar um peso moral aos atos uns dos outros. Se tudo isso está acontecendo, é porque não se trata de um adjetivo, mas uma definição política que contém uma carga negativa, que mobiliza ações coletivas e que define, de antemão, o lado certo da história.
Do terrorismo palestino ao terrorismo religioso
Na última década do século XIX, terrorismo e terrorista eram palavras associadas aos anarquistas, que em países como Itália, França, Espanha, Rússia e Áustria, realizaram diversos atentados contra autoridades e prédios públicos. Eles acreditavam que isso ajudaria a inflamar as massas, levando à revolução social. A tática conhecida como propaganda pela ação não era consenso entre todos os anarquistas, mas a reação não fez distinções.
Muitos anarquistas foram executados, presos ou exilados. Muitos dos que conseguiram fugir migraram para as Américas, onde as autoridades já os aguardavam prevenidas do “perigo anarquista”. Novamente houve perseguição: alguns foram impedidos de entrar em países como Brasil, Argentina e Uruguai e novamente deportados. Os que ficaram, passaram a ser monitorados, proibidos de exercer atividades políticas.
Pouco tempo depois, terrorismo e terrorista ganhariam duas novas aplicações: a) para designar movimentos de libertação nacional na Irlanda e no País Basco (formados no começo do século XX) e do continente africano (que ganharam força no período da Guerra Fria); b) para se referir à luta armada de inspiração comunista como Brigadas Vermelhas, o grupo Baader-Meinhof e as guerrilhas de países vivendo sob ditaduras militares na América do Sul.
Atravessando todo esse período, no meio do caminho, combinando motivações, táticas e ideologias, há a questão palestina, que acabaria redefinindo o conceito de terrorismo não pelo modo de atuação, mas porque é a partir desse movimento que este se tornaria um problema internacional, devendo ser condenado e combatido por todos.
Em 1960, no contexto da independência da Argélia e outros processos de descolonização que ocorriam em África e Ásia, a Organização das Nações Unidas declarou legítima a luta pela libertação nacional. Por meio da resolução 1514[1], aprovada em dezembro daquele ano, reconhece a autodeterminação dos povos como direito inalienável, assim como o direito ao exercício de sua soberania e à integridade do seu território nacional. O documento descreve o colonialismo como um empecilho à cooperação internacional e recomenda cessar qualquer ação armada dirigida aos movimentos de libertação nacional.
A partir do documento é possível afirmar que havia uma certa aceitabilidade do uso da violência ilegítima (terrorista) quando o objetivo era a constituição de um Estado, visto que essas forças eram incorporadas (legitimadas) pelos Estados recém-criados[2]. Foi o que aconteceu na Argélia, quando a Frente de Libertação Nacional se converteu no único partido naquele país até 1989 e com os grupos paramilitares sionistas como Irgun Zvai Leumi (também conhecido como Etzel) e o Lohamei Lehut Israel (Lehi) que deram origem ao serviço secreto e Exército israelense, mas durante o protetorado britânico fizeram uso de táticas de uso ilegal da força (terroristas) para desestabilizar o domínio inglês.
O terrorismo internacional só apareceu na agenda das Nações Unidas em 1972, após os atentados do grupo Setembro Negro contra a delegação israelense nas Olimpíadas de Munique. O debate foi marcado pelas diferentes propostas defendidas pelo bloco ocidental e pelo bloco soviético. Enquanto o autoproclamado “mundo livre” pedia a criação de um tratado internacional para legislar e punir criminalmente o terrorismo, os representantes do “socialismo real” queriam a prevenção do terrorismo por meio da eliminação de suas causas, em particular, do colonialismo – contexto em que até então era considerado legítimo a atores não-estatais fazer uso da força. Mesmo com esse impasse, a Resolução 3034, reafirmou o direito à autodeterminação dos povos e a legitimidade dos movimentos de libertação nacional, condenando atos repressivos e terroristaspraticados por regimes coloniais, racistas ou estrangeiros que impedissem o acesso dos povos a esses direitos.
Em 1974, Yasser Arafat subiu ao plenário da ONU para pedir o reconhecimento da independência dos territórios palestinos da Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental. Em um discurso histórico, o então líder da Organização Para a Libertação da Palestina (OLP) afirmou que o movimento não era uma simples questão de refugiados, mas tratava do direito à autodeterminação dos povos, consagrado pelas Nações Unidas. Frisando que a disputa com os judeus não se tratava de um conflito religioso, Arafat afirmou o respeito pela fé judaica, mas criticou a política sionista, que considerava colonialista e discriminatória.
A palavra terrorista foi usada por ele para se referir à ocupação dos territórios palestinos por Israel e ao tratamento dispensado pelas forças armadas do país aos residentes das áreas ocupadas. Para Arafat, a diferença entre terrorista e revolucionário seria o motivo pelo qual se luta. O terrorismo seria a prática dos colonizadores e invasores estrangeiros, enquanto a luta armada seria uma forma legítima de resistência contra a dominação.
As palavras de Arafat buscavam afastar a causa palestina do rótulo de terrorista, situando-a dentro do que havia sido estabelecido como legítimo pelas próprias Nações Unidas nas décadas anteriores.
Os anos seguintes vieram carregados de cisões no movimento palestino e surgimento de novas organizações, incluindo as confessionais, como Hezbollah (no sul do Líbano) e Hamas, em Gaza, e no âmbito da ONU começaram a ocorrer mudanças significativas nas resoluções relativas ao terrorismo. A legitimidade da ação armada objetivando a libertação nacional desaparece das normativas, dando lugar à condenação inequívoca das práticas de terrorismo em todas suas formas e ao chamado para a cooperação nacional para combatê-lo.
Ainda que não seja apresentada uma definição precisa do que seria terrorismo, as resoluções da ONU ao longo da década de 1980 e 1990[3] reforçam a necessidade de uma política transnacional de prevenção e combate ao terrorismo “em todas as suas formas”. O apoio aos movimentos anticoloniais vai enfraquecendo até que eles deixam de ser mencionados nos documentos. Em seu lugar, na esteira da desintegração do bloco soviético, vai se cristalizando a aproximação entre terrorismo e produção de drogas e a pressão para ampliação da criminalização das práticas consideradas terroristas.
Com o fim da ameaça comunista, o terrorismo, essa ameaça sem rosto e sem definição, emerge como o novo inimigo a ser combatido no cenário internacional – o que está bem esboçado no pensamento neoconservador estadunidense, mas ganharia fôlego com os atentados de 11 de Setembro[4].
A partir dos atentados contra o Pentágono e World Trade Center, verificam-se dois desdobramentos para os quais gostaria de chamar atenção: a intensificação do combate ao terrorismo internacional e o recrudescimento da islamofobia ao redor do mundo – tema amplamente discutido por Angela Davis em Democracia da Abolição (2009).
Uma coisa evidentemente não está separada da outra: ao mesmo tempo que foram ampliados os dispositivos legais e extralegais para combater o terrorismo internacional, prisão de inocentes e mesmo morte de pessoas que “se parecem” com terroristas, como o brasileiro Jean Charles de Menezes, mostram que terrorismo no século XXI pode até não ter uma definição, mas tem cara: o estrangeiro não branco. Tanto é que nos atentados de Oslo (2011), o ultradireitista Andres Breivik não despertou desconfiança por não se enquadrar no perfil racial de terrorista. O atentado teve como alvo jovens que participavam de um encontro sobre multiculturalismo. O manifesto divulgado por Breivik para a imprensa afirmava que se tratava de uma ação contra o aumento da imigração de muçulmanos para a Europa.
Em suma, toda essa contextualização a respeito de como o nacionalismo palestino influenciou na discussão sobre terrorismo no âmbito das Nações Unidas somada aos desdobramentos políticos dos atentados aos Estados Unidos, em 11 de Setembro de 2001, ajudam a entender como ao longo dos últimos 50 anos foi sendo construída no discurso político internacional uma associação entre terrorismo e islamismo.
O problema – além dos já mencionados – é que as questões políticas, como disputas territoriais e intervenções militares passam a ser tratadas como algo dogmático. A pluralidade e as divergências sobre visões de mundo, soluções diplomáticas e uso ou não da força deixam se ser nuanças na cobertura e nas análises políticas. Nelas predomina a falsa equivalência entre os envolvidos em um conflito que está longe de possuir qualquer equilíbrio de forças e a ênfase em um fanatismo supostamente inerente à religião, com o qual é impossível negociar.
Tomando como exemplo o pronunciamento de Benjamin Netanyahu comparando os ataques do Hamas ao 11 de Setembro de 2001. A comparação superficial apela para a emoção, já que se trata da ofensiva com o maior número de vítimas nos dois países, ambas conduzidas por grupos extremistas muçulmanos, desconsiderando que nos atentados de 11 de Setembro não foram realizados por uma organização surgida numa ocupação militar de um território em litígio e tampouco tinham uma reivindicação explícita: a autonomia sobre esse território. Mas a retórica do premiê israelense não parece buscar precisão e sim justificar o que estaria por vir: uma guerra de aniquilação.
*Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional. Jornalista e cientista política, participa como co-autora dos livros “Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil” (Zouk/2017) e “Neoliberalismo, feminismo e contracondutas” (Entremeios/2019). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Referências:
[1] Entretanto, a resolução contém um paradoxo: ela informa que qualquer tentativa de quebrar total ou parcialmente a unidade nacional e a integridade territorial de um país é incompatível com os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas.
[2] O mesmo não ocorre quando o uso ilegal da violência visa quebrar a unidade territorial de um Estado (como no caso do nacionalismo basco e irlandês) ou uma mudança de regime político autoritário – nesses casos o terrorismo volta a ser intolerável.
[3] Alguns exemplos: Resolução 40/61 (1985); Resolução 42/159 (1987), Resolução 49/60 (1995).
[4] Para saber mais ver O pensamento neoconservador em política externa dos Estados Unidos, Carlos Gustavo Poggio Teixeira (2010)
Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional