Daniel Buarque: Ambição e expectativa de ‘volta’ do país ao cenário externo geram frustração e desânimo após um ano
Fracasso da negociação Mercosul-UE parece marcar fim de clima de ‘lua de mel’ com a diplomacia do governo Lula. Excesso de expectativa com agenda de muitas viagens do presidente e decisão de fazer o país ficar ‘em cima do muro’ ajudaram a consolidar a percepção de resultados negativos
Fracasso da negociação Mercosul-UE parece marcar fim de clima de ‘lua de mel’ com a diplomacia do governo Lula. Excesso de expectativa com agenda de muitas viagens do presidente e decisão de fazer o país ficar ‘em cima do muro’ ajudaram a consolidar a percepção de resultados negativos
Por Daniel Buarque*
Antes de completar um ano do novo governo no poder, a “lua de mel” parece ter chegado ao fim. Começa a ficar para trás a euforia com a “volta” do Brasil ao cenário global, e a se consolidar um balanço negativo da política externa do país no terceiro mandato de Lula. O crescente pessimismo de comentaristas no país e no exterior é evidente.
O anunciado fracasso das negociações do acordo do Mercosul com a União Europeia na última semana veio para coroar uma série de limitações do país em sua atuação internacional durante o ano. Elas incluem o “prêmio” de “fóssil do dia” (para quem atua contra a defesa do ambiente) para o país na COP-28 (onde o Brasil tentava se colocar como líder global contra o aquecimento global), a incapacidade de conseguir algum resultado pela paz em Gaza enquanto presidiu o Conselho de Segurança da ONU e o descaso global com a ideia de um clube da paz para negociar o fim da guerra na Ucrânia.
Para completar o cenário, na América do Sul, a vitória de Javier MIlei nas eleições Argentinas (e a provável ausência de Lula da posse do novo presidente), bem como o referendo venezuelano sobre o território de Essequibo, também pesam negativamente.
Apesar das recentes notícias claramente negativas, falar em “fracasso” da política externa brasileira a esta altura é um tanto exagerado – como foi exagerada a euforia de muitos com a chegada de Lula ao poder. O tempo lento das negociações diplomáticas é diferente do tempo acelerado do noticiário, e muito do que se coloca como malogro atualmente faz parte de longos processos que não se pautam pela pressa do presidente, pela urgência do noticiário e dos comentaristas. A calma é essencial para evitar problemas maiores.
O acordo Mercosul-UE continua sendo discutido por diplomatas nos bastidores. O “prêmio fóssil do dia” é ruim, mas não é lá tão relevante. O Brasil recebeu ele em várias outras conferências do clima, incluindo na Rio+20, evento que consolidou o país como potencial líder na luta contra as mudanças climáticas. A frustração da resolução por cessar-fogo em Gaza não teve muito a ver com a atuação do país, e a incapacidade de criar um clube da paz pela Ucrânia reflete uma ambição um tanto iludida de Lula, ignorando a realpolitik. A cautela também pode ser uma boa posição em relação à Venezuela, uma vez que é difícil entender de forma clara o que está acontecendo e quais serão os próximos passos de Maduro em relação à Guiana.
Um ponto que parece estar contribuindo para o fim do clima de lua de mel é que já fica para trás a “ressaca” de muitos analistas em relação à política externa problemática do governo de Jair Bolsonaro. Depois de um ano, a comparação com os tempos em que o chanceler falava em ser aceitável transformar o Brasil em um pária deixa de servir para legitimar um apoio a toda e qualquer posição de Lula. Além disso, era essa rejeição à diplomacia de extrema-direita que justificava muito do que levava à euforia com o novo governo.
E a frustração se completa por conta da agenda exageradamente internacional do primeiro ano de governo, com recorde de países visitados pelo presidente brasileiro, o que pode ter aumentado as expectativas de resultados reais.
Apesar do clima de desânimo, é preciso registrar que o maior mérito de Lula e da “volta do Brasil” é a sensação de volta da normalidade diplomática do país e da sua presença global. Após quatro anos de Bolsonaro, a troca de governo restabeleceu uma situação de certa independência da chancelaria. Por mais que Lula faça declarações que podem não ajudar a burocracia formal da diplomacia, e que Celso Amorim dê um tom mais ideológico à presença do país no exterior, ficou para trás o tempo em que o Brasil se isolava do resto do mundo.
Ainda que seja possível apontar várias questões envolvendo cada um dos revezes do país na sua atuação internacional ao longo do ano, há um ponto que se alinha a esta ideia de volta da “normalidade” da diplomacia brasileira e que pode atrapalhar a projeção do país. Por trás de muitos dos problemas da política externa brasileira está o abraço efusivo do governo Lula na tradição do país de evitar escolher lados em meio à polarização, querer ser amigo de todos e ter uma voz ativa nas grandes questões geopolíticas, o que é visto de fora como um movimento cheio de contradições.
O Brasil ficou “em cima do muro” ao querer ser líder contra o aquecimento global e também se tornar membro da Opep+, teve postura igualmente ambígua ao se posicionar de forma neutra em relação ao conflito na Ucrânia (sendo visto como apoiador da Rússia pelo Ocidente), também não teve uma postura exatamente eficiente sobre Gaza (apesar do tom mais crítico em relação a Israel). A questão do acordo com a UE é menos clara nesse sentido, e o Brasil parece ter sido mais direto ao rejeitar imposições europeias que não vê como justas, mas continuou querendo aprovar o acordo. E mesmo ao tratar do plebiscito venezuelano sobre o território da Guiana, evitou se posicionar e fez menção a pedido de contenção dos dois países.
Como já apontado em uma coluna anterior, ficar “em cima do muro” não é bem visto por ninguém em meio à polarização da geopolítica. Quando os principais atores da política internacional decidem assumir um lado de forma clara, a oscilação nos posicionamentos do país em política externa podem gerar desconfiança permanentemente em relação ao Brasil, que pode perder com isso. Em meio à polarização, quem tenta se equilibrar de forma equidistante corre o risco de ser mal visto e tomar pedradas de todos os lados. Mesmo que haja uma crescente percepção de ampliação da multipolaridade, o Brasil parece cada vez mais pressionado a deixar claro de que lado quer estar nas disputas globais.
*Daniel Buarque é colunista e editor-executivo do portal Interesse Nacional, pesquisador do pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP e doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. É jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor dos livros “Brazil, um país do presente” (Alameda) e “O Brazil É um País Sério?” (Pioneira).
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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