24 janeiro 2024

Equador é a mais recente vítima na América Latina, região mais violenta do mundo

Produção e comercialização de drogas nos Andes e seu contexto político ajudam a explicar crise equatoriana e servem de lição para o Brasil. Para embaixador, medidas políticas essenciais têm sido adidas, e loteamento de cargos técnicos aproxima o Brasil do mesmo drama

Produção e comercialização de drogas nos Andes e seu contexto político ajudam a explicar crise equatoriana e servem de lição para o Brasil. Para embaixador, medidas políticas essenciais têm sido adidas, e loteamento de cargos técnicos aproxima o Brasil do mesmo drama

Novos equipamentos distribuídos pelo governo do Equador para a polícia em meio a ação contra grupos criminosos (Foto: Presidência do Equador)

Por Sergio Abreu e Lima Florêncio*

Em contraste com o imaginário coletivo – sociedade alegre e cordial – a América Latina é hoje a região mais violenta do mundo. 

O continente foi marcado pela ação devastadora das guerrilhas do Sendero Luminoso, no Peru dos anos 1970; pela insurgência  das Forças Armadas Revolucionárias Colombianas – FARC e dos cartéis de Medellin e Cali, ao longo de quase cinco décadas; e pelo domínio do tráfico em estados inteiros, durante a Guerra às Drogas, no México, a partir de 2006. Na América Central, El Salvador viveu quase três décadas, até 2020, sob o domínio das pandillas ou maras, semelhantes às milícias do Rio de Janeiro. 

Nesse continente da violência, o Equador, até 2018, era uma rara exceção. Mas a partir de 7 de janeiro de 2024 passou a ser sua mais dramática vitrine. O que explica tão marcante inflexão? 

‘A geografia fraturou o Equador entre um Altiplano (Quito) com economia  voltada para o mercado interno, e uma Costa (Guayaquil) exportadora de camarões, atum e bananas’

A geografia fraturou o Equador entre um Altiplano (Quito) com economia  voltada para o mercado interno, e uma Costa (Guayaquil) exportadora de camarões, atum e bananas. A sociedade também se dividiu entre indígenas socialmente excluídos e uma elite branca, conservadora e  politicamente dominante. Isso explica a histórica e recorrente instabilidade político-institucional. 

Esses fatores, no entanto, não explicam a emergência de poderosas  facções narcotraficantes no país a partir de 2018 e seu ápice no início de 2024. Para compreender isso, é preciso analisar os rumos da produção e comercialização da cocaína na região andina, e seu contexto político. 

Dias antes do primeiro turno das eleições presidenciais, em agosto de 2023, o jornalista investigativo e então candidato Fernando Villavicencio foi executado após ter sido ameaçado de morte pelo chefe do grupo mafioso Los Chomeros, Adolfo Macias, conhecido como Fito. O candidato prometia decisivo combate ao crime organizado e havia denunciado esquema de corrupção entre aquele grupo, o cartel de Sinaloa no México e o ex-presidente Rafael Correa, condenado e exilado no México. 

‘Mais de 20 gangues espalharam terror pelo país: invasão de canal de TV, ataques a hospitais, universidades e nas ruas, guardas carcerários mantidos como reféns e controle de complexos prisionais’

Em janeiro deste ano, Fito fugiu do complexo de segurança máxima em Guayaquil – La Regional – e o grupo rival, Los Lobos, acusou o governo de favorecer Los Chomeros. Em seguida, mais de 20 gangues, com cerca de 20 mil membros, espalharam terror pelo país: invasão de canal de TV, em transmissão ao vivo; ataques a hospitais, universidades e nas ruas; 178 guardas carcerários mantidos como reféns; e controle de complexos prisionais, como as penitenciárias Regional e do Litoral, em Guaiaquil, que abrigam cerca de 10 mil presos, correspondentes a um quarto da população carcerária do país.  

Diante desse surto de violência, o jovem e inexperiente presidente Daniel Noboa, no poder desde novembro de 2023, decretou estado de exceção por 60 dias, toque de recolher e conflito armado interno. Em consequência, as Forças Armadas colocaram 22.400 militares nas ruas de Guayaquil, e prenderam 329 pessoas, numa demonstração de força, sob aplausos da população. Apear dessas medidas, o governo não consegue deter a violência nem evitar o caos social.

‘Até final dos anos 1980, o mercado mundial de cocaína era dominado pelos cartéis colombianos e escoado via Peru e Bolívia. Esse esquema de comércio da droga mudou radicalmente na virada do século’

Para Fernando Carrión, prestigiado acadêmico da Faculdade Latino-americana de Ciências Sociais – FLACSO, de Quito, até final dos anos 1980, o mercado mundial de cocaína era dominado pelos cartéis colombianos de Medellín, dirigido por Pablo Escobar, e de Cali. A coca colombiana era escoada via Peru, Bolívia e exportada para os EUA. 

Esse esquema de comércio da droga mudou radicalmente na virada do século. Em primeiro lugar, em 1999 foi lançado o Plano Colômbia, que contou com substancial ajuda militar, financeira, diplomática dos EUA e que foi responsável por desmantelar as grandes organizações criminosas no país. Em 2016, pelo histórico acordo de paz com o governo colombiano, as FARC se retiraram do mercado. Assim, abriram espaço para a entrada de facções menores, ligadas ao tráfico, que se formavam no Equador. 

Em segundo lugar, o atentado às Torres Gêmeas, em Nova York, em 2001, provocou fortes medidas de controle nos portos e aeroportos, o que reduziu muito o transporte marítimo e aéreo, ampliando significativamente o envio da droga para os EUA via terrestre. Essa função foi assumida pelos cartéis mexicanos, que não produziam a droga, e se aliaram a pequenas facções criminosas que se fortaleciam no Equador. Foi assim que a principal organização criminosa no país – Los Chomeros – passou a atuar junto com o cartel de Sinaloa, ao mesmo tempo que sua rival – Los Lobos – se aliou com o cartel Jalisco Nueva Generación.

‘O Plano Colômbia e os desdobramentos do atentado às Torres Gêmeas transformaram o Equador em rota lucrativa da droga para os mercados consumidores dos EUA e da Europa’

Os dois fenômenos – Plano Colômbia e os desdobramentos do atentado às Torres Gêmeas – transformaram o Equador em rota lucrativa da droga para os mercados consumidores dos EUA e da Europa. As  facções ligadas ao tráfico passaram então a dominar setores do porto de Guayaquil, a controlar importantes complexos carcerários, e a deter forte influência junto a instituições responsáveis pelo combate ao comércio da droga, como o Judiciário, a polícia e o Exército.  

A ampliação descontrolada de atividades ilícitas teve como corolário uma escalada substancial da violência, da criminalidade e da insegurança. A segurança pública sofreu drasticamente e hoje um quarto das penitenciárias equatorianas se transformaram em quartéis generais das gangues ligadas ao tráfico. A taxa de homicídios por cada 100 mil habitantes no Equador era 6,7 em 2019, comparável então à dos EUA, enquanto em 2023 já atingia 45 – a mais elevada da América Latina. 

Esses dados se tornam mais estarrecedores ainda se agregamos os indicadores de violência no continente americano. Dos 30 países mais violentos do mundo, 24 estão no continente americano, 5 na África e apenas 1 na Ásia. Em 2022, entre as 50 cidades mais violentas do mundo com mais de 300 mil habitantes, 46 se encontravam nas Américas. No período 2017-2019, a média latino-americana de mortes por 100 mil habitantes foi de 23 pessoas, correspondente ao dobro da ocorrida na África do Norte e Subsaariana, a dez vezes a média dos países avançados e a mais de quatro vezes a média mundial.

‘A regionalização da violência é grave advertência para o Brasil’

A regionalização da violência, com o continente americano em primeiro lugar no ranking de violência no mundo, é grave advertência para o Brasil. 

A política de  segurança pública em nosso país oscila entre sístoles e diástoles, o que resulta na incapacidade de enfrentar os verdadeiros desafios. O governo Temer criou as Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLOs), decretou a intervenção federal no Rio de Janeiro, sob o comando do general Braga Neto. Tais medidas potencializaram o  desgaste institucional do Exército, agravado pelo assassinato de Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. 

A criação do Ministério da Segurança Pública por Temer foi revertida no governo seguinte, e a posterior flexibilização da política de armas no governo Bolsonaro provocou verdadeiro descalabro. O arsenal em circulação no país se expandiu em mais de 100%, e o número de armas em acervos particulares, entre 2018 e 2022, se elevou de 1,3 milhão para quase 3 milhões. Logo em seu primeiro dia do terceiro mandato, Lula estancou esse desmando, ao congelar o registro de novas armas.

‘Os governos se sucedem, mas os mais graves problemas se eternizam’

Os governos se sucedem, mas os mais graves problemas se eternizam: a infiltração das organizações criminosas nas instituições do Estado; a expansão do domínio territorial  das milícias, tendo o Rio de Janeiro como vitrine; a simbiose de interesses entre policiais, milicianos e políticos, que configura as chamadas Bancadas da Bala; e a desmoralização das instituições de controle e repressão fortalece o poder das facções criminosas, sempre dispostas a ocupar o vácuo de poder deixado pelo Estado.     

A questão da segurança pública em nosso país se transformou, segundo pesquisas de opinião pública recentes, em problema mais agudo do que inflação e desemprego. Entretanto, em termos práticos,  continua responsabilidade quase exclusiva dos estados. No período de 1990 a 2019, mais de 200 mil pessoas foram assassinadas no Rio de Janeiro, a maioria negros e jovens moradores de bairros pobres.  Medidas essenciais, como a coordenação pelo governo federal das políticas de segurança estaduais, são incompreensivelmente adiadas, e  o loteamento de cargos técnicos da atual pasta da Justiça e Segurança Pública por políticos despreparados aproxima o Brasil do sombrio drama equatoriano.    


*Sergio Abreu e Lima Florêncio é diplomata, professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco, economista e foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra. 

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Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.

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