Seis meses de guerra em Gaza: Impactos regionais e diplomáticos
O conflito não apenas reacendeu o debate sobre a questão palestina, mas também reconfigurou a paisagem geopolítica do Oriente Médio, testando alianças, expondo vulnerabilidades e desafiando as estratégias diplomáticas das grandes potências globais
A seis meses do início da atual guerra na Faixa de Gaza, o panorama revela um conflito de resultados mistos, embora profundamente transformadores para o tecido político e social da região. O embate entre Israel e Hamas, desencadeado pelo ataque de 7 de outubro, transcendeu as fronteiras físicas do conflito, influenciando a geopolítica regional e as relações internacionais de maneiras que, até então, pareciam inimagináveis.
Por um lado, a capacidade de resistência do Hamas frente ao poderio militar israelense, notavelmente mais prolongada do que qualquer guerra anterior travada por Israel contra o grupo, evidenciou uma vulnerabilidade na aura de invencibilidade das Forças de Defesa de Israel (IDF). Esta percepção alterou o status quo, reforçando a imagem do Hamas como uma força a ser reconhecida, não apenas localmente, mas também no palco internacional. O sucesso aparente do Hamas em sobreviver a esta ofensiva, e em alguns casos, em alcançar objetivos táticos, como a liberação de prisioneiros palestinos, certamente fortaleceu sua posição dentro do espectro político palestino, especialmente em contraste com a liderança do Fatah e da Autoridade Palestina, percebidas por muitos como ineptas ou colaboracionistas.
Entretanto, os custos humanos e materiais para a população de Gaza têm sido devastadores. A destruição da infraestrutura de Gaza e as perdas humanas civis alimentaram um debate acirrado sobre a proporcionalidade e a ética da campanha militar israelense, com críticas internacionais apontando para um possível efeito contraproducente da estratégia adotada por Israel. Em nível internacional, a crise exacerbou tensões preexistentes, desafiando alianças e testando a capacidade de liderança de potências globais como os Estados Unidos, que se viram numa posição precária ao tentar equilibrar o apoio incondicional a Israel com a pressão por uma resolução pacífica.
A dinâmica regional do Oriente Médio sempre se caracterizou por sua complexidade e volatilidade, aspectos que foram acentuados pelo recente conflito na Faixa de Gaza. A guerra não apenas desafiou a soberania e a segurança de Israel mas também reverberou através do tecido geopolítico da região, afetando alianças, realinhando poderes e destacando as fragilidades de estratégias diplomáticas previamente consideradas robustas.
A interrupção do processo de normalização das relações entre Israel e alguns estados árabes, um movimento simbolizado pelos Acordos de Abraão, representa um retrocesso significativo na busca por estabilidade e paz na região. Estes acordos, celebrados com grande otimismo, sinalizavam um afastamento das décadas de isolamento diplomático de Israel no Oriente Médio, promovendo a cooperação econômica e a segurança compartilhada. Contudo, o ressurgimento do conflito com o Hamas colocou um freio nessa evolução, gerando cautela entre os países árabes que consideravam seguir o exemplo de Emirados Árabes Unidos e Bahrein.
Especificamente, as relações entre a Arábia Saudita e Israel, que pareciam estar se aquecendo em direção a um acordo semelhante, sofreram um resfriamento notável. A Arábia Saudita, um líder inconteste no mundo árabe sunita, encontra-se agora em uma posição delicada, tendo que equilibrar seu desejo de contrapor a influência iraniana na região e de promover a modernização econômica interna com a necessidade de manter a legitimidade aos olhos de sua população e do “mundo árabe” em geral, que ainda vê a questão palestina como central.
Este cenário propiciou uma janela de oportunidade para atores como o Irã e a Rússia, que viram suas influências na região potencialmente ampliadas. O Irã, em particular, aproveitou-se do conflito para solidificar sua posição como defensor dos palestinos, ao mesmo tempo que desafia a presença americana e israelense. Ao fornecer apoio militar e financeiro a grupos como o Hamas, Teerã busca expandir sua esfera de influência e projetar poder, complicando ainda mais as tentativas de estabilização regional.
Do lado russo, o interesse em se posicionar como um mediador confiável e um poder influente no Oriente Médio foi claramente evidenciado. A Rússia tem se aproveitado da percebida retração dos Estados Unidos na região para estreitar laços com países-chave, propondo-se como uma alternativa aos alinhamentos tradicionais. A crise em Gaza deu a Moscou uma nova plataforma para demonstrar sua disposição e capacidade de atuar como um ator estabilizador, embora seus interesses nem sempre coincidam com uma resolução pacífica de longo prazo.
Por outro lado, a posição da China, que tentou manter uma política de equidistância diplomática, buscando parcerias econômicas sem envolver-se profundamente nas complexidades políticas, encontrou limites claros. A crise revelou a dificuldade de manter uma abordagem puramente econômica em uma região onde política e segurança são intrinsecamente interligadas. O fracasso em mediar um acordo duradouro entre a Arábia Saudita e o Irã, exposto pela fragilidade desse pacto diante do conflito em Gaza, ilustra as limitações de uma estratégia que busca ser agradável a todos, mas que acaba por não satisfazer as exigências de segurança e soberania das nações envolvidas.
Em suma, o conflito na Faixa de Gaza não apenas reacendeu o debate sobre a questão palestina, mas também reconfigurou a paisagem geopolítica do Oriente Médio, testando alianças, expondo vulnerabilidades e desafiando as estratégias diplomáticas das grandes potências globais. O resultado dessa complexa dinâmica regional ainda está por ser totalmente compreendido, mas é evidente que suas repercussões serão sentidas por muito tempo, exigindo uma recalibração das políticas e uma reflexão profunda sobre o caminho a seguir para a paz e estabilidade na região.
À medida que a guerra avança e não podemos vislumbrar um cessar-fogo duradouro, emergem questões cruciais sobre o futuro da região e a viabilidade de soluções de longo prazo para o conflito israelense-palestino. A guerra na Faixa de Gaza não apenas reacendeu o debate sobre a legitimidade e os direitos dos palestinos à autodeterminação, mas também expôs a fragilidade de um status quo que muitos consideravam gerenciável, se não ideal.
Olhando para a frente, a tarefa de reconstruir Gaza, de retomar as negociações de paz e de enfrentar as questões subjacentes que alimentam o conflito parece mais desafiadora do que nunca. A janela para uma solução de dois Estados, vista por muitos como a resolução justa para o embate entre dois nacionalismos válidos, parece cada vez mais distante. Sem alternativas claras no horizonte, a perspectiva de um conflito perene, corroendo ainda mais as sociedades israelense e palestina, é uma realidade sombria.
No entanto, o desespero não é uma opção política. A resiliência dos indivíduos e organizações, tanto israelenses quanto palestinos, que continuam a lutar pela paz, mesmo diante de obstáculos aparentemente insuperáveis, oferece um vislumbre de esperança. A solução para o conflito na Faixa de Gaza e suas implicações mais amplas para a região requer um compromisso renovado com o diálogo, a justiça e a humanidade. Enquanto o caminho para a paz permanece incerto, a necessidade de perseguir esse objetivo é mais clara do que nunca.
Karina Stange Calandrin é colunista da Interesse Nacional, professora de relações internacionais no Ibmec-SP e na Uniso, pesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP e doutora em relações internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP).
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