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Interesse Nacional
24 junho 2024

Narendra Modi e o ocaso de um mito

Coalizão do primeiro-ministro indiano perdeu maioria absoluta no parlamento, indicando que população majoritariamente hindu está longe de abrir espaço para hegemonia da agenda religiosa

Narendra Modi é homenageado durante evento do Bharatiya Janata Party (Foto: BJP/Divulgação)

Após um longo ano de campanha, a Índia promoveu suas eleições gerais entre 19 de abril a 1º deste mês de junho para eleger os 543 membros do Lok Sabha, a Câmara Baixa, equivalente à nossa Câmara dos Deputados. Mais de 968 milhões de pessoas de uma população de mais de 1,4 bilhão estavam aptas a votar, o equivalente a 70% do total do país. Cerca de 642 milhões delas participaram do pleito, entre as quais 312 milhões de mulheres, tornando este o certame de maior participação feminina na história da Índia.

O primeiro-ministro Narendra Modi concorreu pela terceira vez consecutiva ao cargo, embalado pela maioria absoluta obtida pelo seu partido – Bharatiya Janata Party (BJP) – nas eleições anteriores de 2019 e 2014, o que alimentava sua ambição de que ainda desta vez a coalizão que o BJP formou com a National Democratic Alliance (NDA) alcançaria a maioria absoluta na Câmara Baixa, pavimentando o caminho para dar continuidade às políticas que vem promovendo ao longo destes últimos anos.

Entretanto, o partido conquistou 240 assentos, perdendo a maioria absoluta no parlamento. 

‘A coalizão de Modi conquistou menos assentos do que o necessário para endossar a sua agenda, sobretudo a da pauta religiosa’

A coalizão BJP/NDA tem agora 293 dos 543 assentos no Lokh Sabha, 32 a menos do que o necessário para endossar a sua agenda, sobretudo a da pauta religiosa, que o BJP e sua falange hinduísta radical paramilitar – o Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS) – tentam impor a uma população que, embora majoritariamente hindu, está longe de abrir espaço para tal hegemonia. Este é, aliás, o “nó górdio” – ou o “calcanhar de Aquiles” – que conturba a convivência em uma das sociedades mais complexas do planeta, e semente dos confrontos que permearam todos os governos do BJP/Modi.

Fruto da história, do tamanho da população e da sua diversidade religiosa e étnica, a Índia é um dos países, a meu ver, mais difíceis de governar. 

‘Embora o governo do BJP tenha tentado alavancar o crescente status global da Índia, as questões de políticas locais acabaram se revelando decisivas para os eleitores’

O senior research fellow for South Asia, Asia-Pacific Programme, Chietigj Bajpaee, assinala que “o resultado surpreendente da eleição da Índia reafirmou a natureza imprevisível da sua política”. Segundo ele, “… embora o governo do BJP tenha tentado alavancar o crescente status global da Índia e suas credenciais nacionalistas hindus durante a campanha eleitoral, as questões de políticas locais acabaram se revelando decisivas para os eleitores”. 

Como sabemos, o mapa político do país define a União como composta por 28 estados e 8 territórios . Conforme a Lei de Reorganização dos Estados, de 1956, os estados foram agrupados segundo uma base linguística. A legislação dispõe, por sua vez, que as línguas repertoriadas incluem mais de 400 idiomas e dialetos. Diante desta babel linguística, a Carta Magna estipula que o híndi e o inglês são as duas línguas oficiais da administração federal. E todos esses estados e territórios elegeram legislaturas e governos próprios concomitantemente às eleições gerais, seguindo suas agendas internas.

‘Diante de um universo extremamente complexo, a única maneira de conduzir os destinos do país, entenderam os seus próceres, foi torná-lo numa república secular e laica’

Diante deste universo extremamente complexo, a única maneira de conduzir os destinos do país, entenderam os seus próceres, foi torná-lo numa república secular e laica, tal como prescreve o preâmbulo da sua Constituição: “…uma república democrática, socialista, secular, que sufraga as liberdades de pensamento, de expressão, de religião, de crença, de fé, e de culto…”. 

Porém, desde que assumiu o poder, em 2014, após vencer o seu rival tradicional, o Congresso Nacional Indiano (Indian National Congress), o partido histórico que havia dominado a vida política do país desde sua fundação em 1885, liderado por Nehru, Gandhi, etc…, que construíram não somente a independência, senão também criaram os alicerces da Índia moderna, o Baratiya Janata Party trouxe o Hindutva como bandeira político-ideológica.

‘Inspirado nos movimentos e grupos fascistas europeus, o impulso inicial do Hindutva tem sido promover o ideal da defesa da cultura e dos valores civilizacionais do hinduísmo’

O Hindutva, simplificadamente “a supremacia hindu”, é o embasamento filosófico-político do Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), a falange paramilitar do BJP e gênese e liderança de um grande corpo de organizações hinduístas de extrema-direita. Fundada em setembro de 1925 e inspirada nos movimentos e grupos fascistas europeus, o impulso inicial da organização era “fornecer treinamento de caráter e incutir disciplina para unir a comunidade e estabelecer a “Rashtra” – nação – hindu”. Desde então o seu propósito tem sido promover erga omnes o ideal da defesa da cultura e dos valores civilizacionais do hinduísmo.

O alvo principal do RSS – e do BJP – é a população muçulmana. Como sabemos, a grande maioria dos indianos é hindu, segundo o censo de 2017 (74,33% da população). O islã vem em seguida, com 14,20% – mas, ainda assim, constitui a terceira maior população muçulmana do planeta -, seguido pelo cristianismo, o sikhismo, o budismo, o jainismo e por outras religiões de menor expressão numérica. 

O antagonismo entre hindus e muçulmanos é “ancestral”: data sobretudo desde quando os moguls adentraram o território indiano, no século XVI.

‘O frágil equilíbrio na convivência entre as duas comunidades levou o governo central a criar um arcabouço de leis para viabilizar a paz e a frágil harmonia entre ambas, o que o BJP tenta agora desconstruir’

Nesse cenário, o frágil equilíbrio na convivência entre as duas comunidades levou o governo central a criar um arcabouço de leis para viabilizar a paz e a frágil harmonia entre ambas – a Caxemira que o diga!… –, arcabouço este que o BJP tenta agora desconstruir. 

Seus membros e aliados empresariais alardeiam a falência do Indian National Congress, que ao longo dos quase 130 anos em que esteve no poder não alcançou, na sua ótica, erradicar os que eles consideram como os principais handicaps da Índia,  consoante com a sua dimensão. E o espelho é sempre a China, “aliada” no Brics. mas antagonista na disputa pelo protagonismo na região, sobretudo no sudeste da Ásia.

É neste contexto que emerge a figura política de Narendra Damodardas Modi. Eleito primeiro-ministro nas eleições gerais que levaram o BJP ao poder em 2014, ele fora muito bem sucedido como ministro-chefe (equivalente a governador) do estado de Gujarat, um dos mais progressistas da Índia, onde, de 2001 a 2014, realizou uma gestão bem avaliada pela população (mas já conflituosa no front religioso). 

‘Modi é o legítimo “garoto propaganda” da agenda hinduísta’

Modi é o legítimo “garoto propaganda” da agenda hinduísta. Excelente orador, com grande desenvoltura em público, ele alardeia os méritos do seu credo ao tempo em que obstaculiza as atividades da comunidade islâmica, como a nova Lei da Cidadania, que oferece anistia a imigrantes ilegais não-muçulmanos de países vizinhos, que estejam buscando escapar de perseguição religiosa (leia-se dos muçulmanos).

O cenário que se descortina, a meu juízo, é o da continuidade da dicotomia “economia x religião” nestes próximos anos, mas sem a estridência irretorquível que a maioria no Lok Sabha propiciava para o BJP/NDA. 

Frente ao “exitismo” da política da direita tecnocrática empresarial, principalmente na área externa, alavancada pelas boas relações com seus aliados ocidentais – sobretudo os norte-americanos – os milhões de desvalidos da Índia se sentem cada vez mais abandonados. 

Será que a Incredible India da propaganda governamental alcançará distribuir as benesses do seu sucesso (seu PIB foi o que registrou maior crescimento no ano passado) com alguma parcimônia?

O desafio para mais de um bilhão de pessoas é gigante.

Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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