Entre a reconstrução do chavismo e o extremismo da oposição – A encruzilhada política venezuelana
A falta de transparência sobre o resultado das eleições pode levar ao isolamento internacional do governo Maduro, criando condições para ações violentas dos setores de extrema-direita venezuelana, como houve no passado
Em 2024, completamos 25 anos da intitulada Revolução Bolivariana. A efeméride coincidiu com a eleição presidencial ocorrida no último domingo, 28 de julho (28J). O pleito, diferentemente do ocorrido em 2018, contou com a participação de nove candidaturas que representaram distintos setores da oposição ao chavismo. Em parte, isso nos ajuda a compreender a participação eleitoral, em torno de 59% dos habilitados ao voto contra 46% observados naquele ano.
Apesar da pluralidade de postulantes ao Palácio Miraflores, o binômio Edmundo González/Maria Corina Machado da Plataforma Unitária Democrática (PUD) concentrou os votos contra Nicolás Maduro, representante do oficialismo pelo Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV).
Esse escrutínio, como todos os ocorridos na Venezuela desde 2004, foi cercado de polêmicas e disputas de narrativas sobre a lisura e transparência do processo eleitoral. Mas, diferentemente de outras ocasiões, o oficialismo não poderia criar margens de questionamentos à sua licitude, em razão da grave crise política e socioeconômica do país. E isso não ocorreu.
Sustentando-se na divulgação dos resultados com 80% das urnas apuradas, algo questionável em qualquer país democrático, Elvis Amoroso, presidente do CNE, na madrugada de 29 de julho, afirmou que Maduro foi o vencedor da contenda, com 51,2% (5.150.092 dos votos), contra 44,2% (4.445.978 de votos) de Edmundo González.
Em ato contínuo, na tarde de 29 de julho, em um evento marcado por um longo discurso de Maduro permeado por uma retórica anticolonialista, anti-imperialista e com a evocação constante às figuras de Hugo Chávez e Simón Bolívar, o atual mandatário venezuelano foi proclamado por Amoroso o vencedor do pleito e empossado para mais um mandato presidencial. Desconsiderou-se a divulgação do resultado final com 100% das urnas apuradas ou algo bem próximo a isso.
Até o momento em que escrevemos esse artigo, o Conselho Nacional Eleitoral (CNE) não divulgou as atas eleitorais do 28J, apesar da pressão internacional para isso, em especial, a capitaneada pelo Brasil, Colômbia e México, importantes parceiros regionais da Venezuela. Ambas as nações ainda adotam cautela sobre reconhecer ou não a lisura e a transparência da eleição. Mesmo os Estados Unidos adotam postura semelhante, conforme observado no diálogo da tarde de 30 de julho entre Biden e Lula.
Obviamente, a postura do CNE contribuiu para o início dos protestos dos distintos grupos opositores, como ocorrido em Caracas e outras cidades do país. Mesmo em Petare, bairro extremamente popular de Caracas e que foi um reduto fundamental do chavismo desde 1999, manifestações espontâneas contra o resultado eleitoral foram deflagradas.
O quadro político venezuelano é extremamente tenso. O Acordo de Barbados, construído em outubro de 2023, estabeleceu que a eleição presidencial de 2024 consistiria em uma oportunidade para o início da normalização da sua democracia, que desde 2015, ocasião da eleição parlamentar vencida pela Mesa da Unidade Democrática (MUD), convive com os atropelos de Maduro e seus aliados nas Forças Armadas e nas burocracias civil e partidária. Porém, ao que parece, essa oportunidade está se evadindo.
As posturas de Maduro corroeram as pontes com aliados latino-americanos e caribenhos, sobretudo o Brasil, que desde o início da gestão de Luiz Inácio Lula da Silva, em janeiro de 2023, buscou reestabelecer internacionalmente a Venezuela. O Brasil, entendendo corretamente a relevância geopolítica e regional do seu vizinho, buscou desconstruir o isolamento internacional venezuelano e reestabelecer a sua normalidade democrática, possibilitando condições para que a suspensão das sanções norte-americanas e europeias fossem pavimentadas.
As sanções são fundamentais para explicarmos a deterioração socioeconômica que a Venezuela vive desde 2015. Estas contribuíram largamente para o esfacelamento da sua economia e para a sua grave crise social que levou à emigração de aproximadamente 7 milhões e 700 mil venezuelanos, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU).
Neste sentido, a frase de Celso Amorim de que é “amigo de César, mas mais amigo da verdade. Estou procurando a verdade” é expressiva para uma análise adequada sobre o 28J. As atas devem ser apresentadas para que os argumentos da oposição venezuelana sobre a fraude eleitoral sejam descontruídos.
Lembremos que há um setor da oposição venezuelana, hoje liderada por Corina Machado, que é alinhada à extrema-direita regional e europeia. Ela assinou, em outubro de 2020, a Carta de Madrid em conjunto com expoentes do fascismo em nosso tempo presente, como o espanhol Santiago Abascal, o argentino Javier Milei e o brasileiro Eduardo Bolsonaro.
É nessa encruzilhada que hoje o chavismo se encontra. O reconhecimento da legitimidade do 28J, hoje condicionada à divulgação das atas em razão das pressões exercidas por Brasil, Colômbia, Estados Unidos e México, por exemplo, podem intensificar o isolamento internacional do governo Maduro. Ocorrendo isso, poderemos assistir ações violentas dos setores de extrema-direita venezuelana, como observamos, respectivamente, em abril de 2002 e fevereiro de 2014, ocasiões do golpe de Estado contra Hugo Chávez e do início, em fevereiro de 2014, do movimento La Salida (1).
Talvez, no último 28J, o chavismo tenha perdido a oportunidade de iniciar um processo de reconstrução dos fundamentos democráticos da Revolução Bolivariana, marca esta fundamental do chavismo durante os mandatos presidenciais de Hugo Chávez (1999-2013) e cujas prerrogativas estão arraigadas na Constituição de 1999.
Que o CNE divulgue as atas das eleições e permita que o resultado das eleições seja reconhecido como legítimo.
Notas:
(1) Os líderes opositores Antonio Ledezma e Leopoldo López foram acusados pela justiça venezuelana de liderarem os violentos protestos ocorridos em 2014 contra Maduro e que tinham por objetivo depor o atual mandatário. Naquele ano, 43 pessoas morreram e centenas ficaram feridas em razão das ações golpistas lideradas pela oposição.
Rafael Araujo é professor do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Autor do livro A Revolução Bolivariana em perspectiva histórica e conceitual (1999-2023), em coautoria com Eduardo Scheidt (UERJ).
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