PEC da Anistia reduz crescimento da participação de negros e negras na política nacional
A emenda constitucional reduz os recursos obrigatórios para candidaturas negras nas eleições futuras, passando dos autuais 50% para 30% a proporção obrigatória de recursos dos fundos eleitoral e partidário que devem ser destinados a candidaturas negras
Por Marcia Maria da Cruz*
Agosto de 2024 entrará para a história como o mês de um duro golpe à democracia brasileira. O Congresso Nacional promulgou, na última quinta-feira, dia 22, a Proposta de Emenda à Constituição 09/2023, de autoria do deputado Paulo Magalhães (PSD/BA) e outros. Batizada de PEC da Anistia, a emenda provoca muitos retrocessos no esforço recente de reduzir desigualdades e tornar o processo eleitoral mais justo no Brasil. Além de autorizar o refinanciamento de dívidas de partidos e de suas respectivas fundações contraídas nos últimos cinco anos, com isenção total de multas e juros acumulados, a PEC também perdoa os partidos que não foram capazes de (ou não quiseram) preencher a cota mínima de recursos destinados às candidaturas de pessoas negras e de mulheres nas últimas eleições.
Para piorar, a emenda constitucional reduz os recursos obrigatórios para candidaturas negras nas eleições futuras, passando dos autuais 50% para 30% a proporção obrigatória de recursos dos fundos eleitoral e partidário que devem ser destinados a candidaturas negras.
As novas regras já passam a valer para as eleições municipais deste ano, o que certamente impactará em uma menor diversidade na composição das câmaras e prefeituras de todo o Brasil.
Reduzindo o que já era baixo
A presença de mulheres e de negros em cargos políticos é ainda abaixo da proporção desses grupos na população brasileira. Historicamente, os movimentos negros e de mulheres buscam aumentar a representatividade na política institucional. Em 2022, a Coalizão Negra de Direitos lançou o Quilombo nos Parlamentos para apoiar candidaturas negras para o Congresso Nacional e Assembleias Legislativas em todo o país.
Dados recentes do Tribunal Superior Eleitoral apontam que as candidaturas negras representam 52% do total de candidatos que disputarão as eleições municipais no Brasil. De acordo com o TSE, Do total de 456.310 candidaturas registradas, 155 mil são de mulheres e 301.310 são de homens. Desses totais por gênero, 74.355 são mulheres não negras, 80.645 mulheres negras, 159.942 homens negros e 141.368 homens não negros.
No entanto, parte significativa dessas candidaturas podem não se viabilizar devido à falta de financiamento. O poder econômico, se não é determinante, é um dos fatores mais decisivos para uma campanha ser vitoriosa. Embora, nos últimos anos, tenha sido registrado um aumento no número de candidaturas negras e de mulheres, esses grupos ainda são sub-representados nos legislativos e nos executivos. Pesquisas costumam indicar que essa sub-representação permanece, em grande medida, pela desigualdade no acesso aos recursos, entre homens e mulheres; negros e brancos e cisgêneros e transgêneros.
Com o propósito de tornar a disputa política mais equilibrada, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) definiu que candidatos negros têm direito a verbas públicas, de forma proporcional, para financiamento de campanha e tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão. A resolução 23.665, de 9 de dezembro de 2021, dispõe sobre a divisão de recursos para candidaturas negras e de mulheres.
No entanto, na eleição de 2022 quando as candidaturas negras representavam 50%, os candidatos negros denunciavam que não estavam recebendo os repasses devidos, conforme revelei em reportagem para o jornal Estado de Minas (‘Estou me sentido usado’, diz candidato do MDB sobre verbas para negros). Diante de um flagrante desrespeito às candidaturas negras, os postulantes lesados esperavam que esse descumprimento por parte dos partidos pudesse ser punido de alguma forma.
Dois anos depois, o Congresso Nacional se mobilizou para que os partidos sejam perdoados por não terem empregado os valores proporcionais nas candidaturas negras e de mulheres.
A PEC 09 anistia os partidos políticos, na medida que perdoa os débitos pela não aplicação dos recursos proporcionais às candidaturas de pretos e pardos nas eleições de 2022. Ainda permite aos partidos usar recursos do Fundo Partidário para pagar as multas e outras sanções por descumprimento da lei eleitoral e os débitos de natureza não eleitoral – o que é um absurdo.
A aprovação da PEC da Anistia demonstra como os partidos políticos operaram conjuntamente nesta questão para se auto beneficiarem, contribuindo para reduzir a diversidade na política. Nesse sentido, a Ordem dos Advogados do Brasil classificou a PEC da Anistia como um ataque à democracia no Brasil.
“A OAB SP lamenta profundamente a aprovação da PEC 09/2023, conhecida popularmente como “PEC da Anistia”, que prejudica a presença de negros na política brasileira. Trata-se da quarta vez que os partidos se autoanistia em relação às suas obrigações na distribuição dos recursos públicos para a promoção de uma democracia mais diversa no país”, traz a nota da entidade.
O Instituto de Referência Negra Peregum rechaçou a diminuição de recursos para candidaturas negras, ao aprovar 30% para esse financiamento, ignorando a ideia da proporcionalidade.
A democracia brasileira se fragiliza na medida que mantém o espaço institucional da política controlado majoritariamente por um único grupo, homens brancos, cis, héteros e ricos. Um aumento pequeno na representatividade já muda a cara do parlamento, como pode se observar na Assembleia Legislativa de Minas Gerais
E não é um exercício de futurologia prever o impacto da PEC da Anistia na representatividade das casas legislativas, que, certamente, ficarão menos diversas. A representatividade significa a inclusão de grupos marginalizados em políticas e orçamentos públicos. Para exemplificar, gostaria de tomar como exemplo as deputadas negras da Assembleia Legislativa de Minas Gerais, que nunca esteve tão preta como nos dias 19, 20 e 21 de agosto de 2024. Representantes de movimentos negros, artistas, professores de todo o Estado participaram da etapa final dos Seminários do Estatuto da Igualdade Racial de Minas. A legislação foi apresentada pelas quatro deputadas negras – Andreia de Jesus, Leninha e Macaé, do Partido dos Trabalhadores, e Ana Paula Siqueira (Rede).
Pela primeira vez na história de 190 anos do parlamento mineiro, quatro parlamentares negras foram eleitas, sendo que uma delas ocupa a vice-presidência da ALMG. Das 77 cadeiras, apenas quatro são ocupadas por mulheres negras, um fato a se comemorar por um lado, pois há alguns anos não havia nenhuma, mas que demonstra que ainda há uma sub-representação se compararmos o percentual ao que representa o grupo mulheres negras na população de Minas Gerais.
A PEC da Anistia não impedirá a chegada de negros e negras a política. Mas é um surpreendente retrocesso que tornará novamente mais difícil a trajetória política dessas parcelas da população em comparação com os candidatos homens e brancos.
*Marcia Maria da Cruz é jornalista, doutora em ciência política e mestre em comunicação social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
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Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original em https://theconversation.com/br
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