07 outubro 2024

Desigualdade de gênero persiste na política brasileira e impacta processo democrático

Presença feminina na política nacional ainda é muito aquém do que seria necessário para uma democracia mais diversa no Brasil, país com um forte histórico de autoritarismo institucionalizado, que por décadas alimentou nossa cultura política – e que se faz presente até hoje

Baixa participação das mulheres nos espaços de decisão política no Brasil reflete o descaso de muitos partidos políticos com o cumprimento da legislação eleitoral (Foto: Fábio Rodrigues Pozzebon / Agência Brasil, CC BY)

Por Tathiana Chicarino

O Brasil teve eleições para prefeituras e Câmaras Municipais. O momento, mais uma vez, deveria exigir a devida presença e representatividade das mulheres nessa renovação dos espaços de poder democrático. Mas não é o que acontece. Na prática, a presença feminina na política nacional ainda é muito aquém do que seria necessário para uma democracia mais diversa no Brasil, país com um forte histórico de autoritarismo institucionalizado, que por décadas alimentou nossa cultura política – e que se faz presente até hoje.

O Brasil completa, nesta eleição municipal de 2024, 27 anos da criação da Lei das Eleições nº 9.504/1997, que obriga os partidos a reservarem o mínimo de 30% de suas candidaturas para cada gênero – neste caso, homens ou mulheres.

Como historicamente o gênero feminino sempre foi sub-representado entre as candidaturas, essa determinação legislativa acaba por gerar uma imposição aos partidos: a inclusão obrigatória de mais mulheres em suas listas de candidatos para Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e para a Câmara dos Deputados.

A existência dessa regra, contudo, não garante o cumprimento do seu objetivo original, que seria democratizar as candidaturas entre homens e mulheres: desde a implantação da lei, tornou-se comum entre muitos partidos a prática de se criar “candidaturas laranjas”“, isto é, inscrições meramente formais de candidatas mulheres, sem qualquer tipo de investimento ou suporte de campanha. Candidaturas, portanto, com chances nulas de serem eleitas. Uma prática que, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), é frequente até hoje em todo o país.

Nestes 27 anos, algumas complementações à Lei, pensadas para evitar tais distorções, foram criadas. A Emenda nº 12.034/2009 , por exemplo, tornou obrigatório que os partidos promovam a participação das mulheres em seus quadros de candidaturas, utilizando proporcionalmente o tempo de propaganda eleitoral gratuita (HGPE) e os recursos do Fundo Partidário (reserva financeira vinda do orçamento federal destinada a sustentar as atividades dos partidos políticos no Brasil).

Essa regra aumentou a pressão sobre os partidos para lançarem candidaturas femininas mais competitivas.

Em 2018, o TSE determinou que 30% do Fundo Eleitoral fossem destinados às candidaturas femininas. Oficialmente chamado de Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), ele foi instituído em decorrência da proibição de financiamento privado para campanhas.

Por fim, em 2022, uma consulta ao Supremo Tribunal Eleitoral (TSE) sobre a aplicação da Lei das Eleições aos partidos resultou em um entendimento favorável sobre a paridade de gênero na composição dos órgãos de direção dos partidos políticos até 2030. Embora ainda não tenha sido regulamentada, a regra objetiva garantir que as mulheres tenham mais acesso e influência nas decisões políticas dentro dos partidos.

Limitações e recuos

Importante chamar a atenção para o fato de que, para cargos majoritários (presidente, governador, prefeito e senador) a legislação não impõe obrigatoriedade de cumprimento da cota de gênero. Isso acontece apenas nas eleições proporcionais, ou seja, para os cargos de deputados e deputadas federais e estaduais, e para vereadores e vereadoras.

Se nos últimos 27 anos houve de fato a conquista de importantes instrumentos para garantir a equidade de gênero na política brasileira, sua aplicação tem sido repleta de contornos e recuos. Um exemplo é a aprovação recente da Proposta de Emenda à Constituição, a PEC da Anistia, que salva os partidos de multas e facilita o descumprimento dessas leis acima mencionadas.

Pior do que a Coreia e a Arábia Saudita

Uma comparação do Brasil com outros países do mundo democrático comprova que apenas a legislação não é suficiente para garantir que as mulheres ocupem os espaços de poder político de forma equânime por aqui. De acordo com o Inter-Parliamentary Union, organização internacional sobre parlamentos, o Brasil está na 132º posição no que se refere à presença de mulheres no legislativo, atrás de países reconhecidos pelo autoritarismo e pela misoginia institucionalizada, como a Coreia do Norte e a Arábia Saudita.

Segundo um balanço do TSE sobre as eleições municipais de 2020, as mulheres representaram apenas 12% dos prefeitos eleitos no primeiro turno, a mesma proporção de 2016. Embora o número de vereadoras eleitas naquele momento tenha aumentado, foi de apenas 16% frente aos 84% de vereadores do sexo masculino eleitos. Já no pleito de 2022, segundo o jornal Nexo, as mulheres ocuparam somente 17,7% (91) das 513 cadeiras da Câmara Federal.

Ainda citando o jornal Nexo, dos mais de 450 mil candidatos disputando vagas para as prefeituras e câmaras de vereadores nas eleições municipais de 2024, 66% são homens e 34%, mulheres. Quando esses números são desdobrados, observa-se que o percentual de mulheres é menor entre as candidaturas a prefeitas (15,2%). Na vereança, em que vale a cota de 30% de candidatas mulheres, esse número sobe para 35%.

Levantamento do jornal Folha de S. Paulo acerca das eleições para as prefeituras das capitais brasileiras em 2024 apontou que as candidatas a vice-prefeitas turbinarem a participação feminina, chegando a 60% das chapas nas capitais. No entanto, apenas uma em cada cinco candidaturas tinham mulheres como cabeça de chapa.

Essa discrepância está escorada em uma legislação eleitoral com brechas que permitem a alocação dos recursos destinados exclusivamente às mulheres nas eleições proporcionais em chapas que tenham mulheres como candidatas a vice. Em outras palavras, o acesso ao cofre se dá também pela escolha de mulheres em posições coadjuvantes nas chapas dos partidos. Ao final, isso acaba por privilegiar as candidaturas masculinas.

Meio clichê, mas sempre atual, essa “gambiarra” eleitoral brasileira se alinha muito bem à máxima do escritor italiano Giussepe Tomasi di Lampedusa, em seu livro O Leopardo: “tudo deve mudar para que tudo fique como está”. Mas será que nada mudou, ou a mudança estrutural é apenas adiada em função de interesses patriarcais?

A baixa representatividade feminina na política eleitoral acontece não porque as candidaturas de mulheres são menos competitivas, mas por profundas desigualdades sociais, políticas, estruturais e culturais.

A violência de gênero na política praticada nos espaços de poder e nas disputas eleitorais é um dos obstáculos. Ela se expressa em casos como o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL/RJ) e também no assédio sexual à ex-deputada Isa Penna (PSOL/SP) em plena Assembleia Legislativa de São Paulo.

Buscando trazer um aparato legal para o enfrentamento desses crimes, em 2021 foi sancionada a Lei 14.192/2021 que estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher nos espaços e atividades relacionados ao exercício de seus direitos políticos e de suas funções públicas, e para assegurar a sua participação em debates eleitorais. A lei dispõe também sobre os crimes de divulgação de fato ou de vídeo com conteúdo inverídico no período de campanha eleitoral.

Mudar para avançar

É preciso acelerar a conquista de uma real equidade. A primeira questão é diferenciar a cota de gênero na lista de candidaturas que os partidos apresentam aos eleitores, ou seja, os 30%, e outra é verdadeiramente ocupar as cadeiras nos espaços representativos.

Um passo necessário para garantir a pluralidade no debate e nas decisões da polis democrática seria assegurar a presença feminina na constituição dos poderes. Há uma profunda diferença entre a obrigatoriedade de um partido ter no mínimo 30% de seus candidatos pertencentes ao gênero feminino e de o poder legislativo em qualquer instância ter no mínimo 30% de suas cadeiras ocupadas por mulheres.

Ruanda, na África, por exemplo, exige que pelo menos 30% das cadeiras no parlamento sejam ocupadas por mulheres. Na Noruega não há uma cota legislativa obrigatória, mas uma longa tradição de cotas de gênero voluntárias dentro dos partidos políticos.

O México, que acaba de eleger Claudia Sheinbaum como presidenta, aprovou por unanimidade há pouco mais de dois anos na Câmara e no Senado uma reforma constitucional que definiu não apenas a paridade de gêneros, mas o fez no âmbito de todos os poderes e níveis do governo.

A falta de equidade cria um desbalanço no jogo democrático, dado que as mulheres representam 52% da população brasileira. Se queremos uma democracia mais representativa e mais justa, é preciso entender que quanto mais diversos são os espaços de poder em termos de gênero, mais o debate e as decisões democráticas refletirão os diferentes pontos de vista e interesses da sociedade com decisões mais equânimes.


Tathiana Chicarino, Cientista política e coordenadora da graduação em Sociologia e Política, Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP)

This article is republished from The Conversation under a Creative Commons license. Read the original article.

Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original em https://theconversation.com/br

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