29 outubro 2024

As urnas e as preocupantes sinalizações para o futuro político-eleitoral do Brasil

O ecossistema de desinformação é uma realidade consolidada no país e que se potencializa a cada eleição, com recursos cada vez mais robustos, uso de tecnologias inovadoras, utilização sem pudor de IA

Eleitores votam na 71ª Zona Eleitoral, no Colégio Liceu Nilo Peçanha, no centro de Niterói (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

Por Eliara Santana*

Após dois turnos com muitas disputas pelo país, um apanhado geral das eleições municipais de 2024, para além do resultado das urnas com vencedores e perdedores, nos possibilita visualizar alguns tópicos muito relevantes. Aspectos importantes que se referem não apenas a esse pleito especificamente, mas, sobretudo, que apontam possibilidades e cenários para as eleições de 2026. Vamos a esses pontos.

Potencialização do ecossistema de desinformação

Para nos localizarmos na conversa, vamos primeiro à definição: o ecossistema brasileiro de desinformação deve ser compreendido como um sistema complexo de produção e disseminação de conteúdo falso e falseado (ressignificado, com novos sentidos). Esse sistema envolve vários atores e etapas, que vão da produção/elaboração da mensagem, passando por sua transformação em produto midiático, até a reprodução e disseminação dessas mensagens. Não se trata, portanto, de um processo aleatório ou linear de transmissão de mensagem.

No Brasil, é um sistema com grande financiamento, que se estrutura em suporte a determinado projeto político e que se construiu discursivamente com esse propósito. Esse sistema atua com a produção sistemática e articulada de conteúdo intencionalmente falso, com a ressignificação da realidade no cenário de um país semi-alfabetizado.

Em 2022, como mostrou o monitoramento realizado pelo Observatório das Eleições, o ecossistema de desinformação foi responsável pela emergência de narrativas falseadas que reordenaram, naquele momento, o debate público. Nesta eleição de 2024, algumas delas retornaram, atualizadas e bastante fortalecidas.

Essas narrativas incluem a vinculação das esquerdas ao crime organizado, perseguição a atores políticos, papel do Estado x atuação do cidadão, apelo a valores religiosos e denúncias falsas com conotação sexual (atualizando, por exemplo, a narrativa já consolidada do kit gay, difundida em 2018).

Nos debates eleitorais, nas propagandas de diversos candidatos, nas redes sociais, as fake news foram utilizadas sem qualquer moderação – apesar do papel muito eficiente do TSE em monitorar e combater a disseminação de desinformação.

O estudo “O Ambiente da desinformação em torno das eleições”, foi desenvolvido pelo International Institute for Democracy Electoral Assistance (IDEA) e publicado no final de 2022, aponta para uma abordagem relativa aos impactos da desinformação nos processos eleitorais. A referida pesquisa mapeou mais de 900 casos de desinformação relativos a eventos eleitorais nacionais em diversos países e apontou para a relevância das ações de desinformação com a elaboração de narrativas.

O estudo avaliou os principais aspectos que são impactados pela desinformação eleitoral:

a) Percepção – a desinformação contribui para alterar a percepção do público em relação à capacidade e à imparcialidade das autoridades eleitorais, além de impor dúvidas sobre o processo eleitoral, especificamente em relação à exatidão dos resultados;

b) Atitudes – a desinformação sistematizada promove desconfiança e uma confusão sobre os direitos eleitorais e a aceitação dos resultados;

c) Comportamento – há manifestação de violência eleitoral, intimidação a funcionários que atuam nas eleições e questionamento em relação aos processos.

De acordo com essa pesquisa, o Brasil só perde em desinformação eleitoral para a Índia. Portanto, o ecossistema de desinformação é uma realidade consolidada no país e que se potencializa a cada eleição, com recursos cada vez mais robustos, uso de tecnologias inovadoras, utilização sem pudor de IA – mesmo com todas as ações de combate à disseminação de desinformação.

Importante frisar aqui, nesta reflexão, que a sistematização de desinformação no Brasil não se restringe ao ambiente midiático digital – o espaço de mídia tradicional também cedeu e cede aos apelos de encampar falseamentos e fatos mentirosos. Um exemplo muito apropriado foi a declaração do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, no dia da eleição no segundo turno, em 27 de outubro. Sem apresentar qualquer prova, ele afirmou que o PCC havia determinado o voto em Guilherme Boulos. A declaração de Tarcísio ganhou destaque, sem questionamentos, no maior jornal de São Paulo.

Por outro lado, e também em consonância com as dinâmicas desse ecossistema, essas eleições também revelaram um avanço nos ataques a jornalistas. De acordo com dados da Coalizão em Defesa do Jornalismo (CDJor), entre 15 de agosto e 6 de outubro, postagens ofensivas se proliferaram em redes como X, Instagram e TikTok. Foram registrados mais de 44 mil ataques nesse período, com insultos violentos e a consolidação de hashtags contra a imprensa.

Infelizmente, o fato de haver ataques contra jornalistas não é exatamente uma novidade. No entanto, o avanço expressivo desses ataques no período eleitoral e a forma discursiva violenta no ambiente digital são indícios significativos que revelam o avanço da desinformação e uma prática reiterada da extrema direita, que é a quebra de mediação – ou seja, a destruição da reputação de instâncias responsáveis por fazerem a divulgação de conhecimento e informação na sociedade.

O papel das redes sociais

Outro aspecto que destaco refere-se ao comportamento das candidaturas nas redes sociais, com alguns desdobramentos interessantes. Monitoramento realizado por nós no Observatório das Eleições este pleito revelou, por exemplo, que centenas de candidatos – parte deles envolvida com os atos antidemocráticos em 8 de janeiro de 2023 em Brasília – não apenas enalteceram a ocorrência dos atos, como também escolheram os números 801 e 81 numa alusão ao 8 de janeiro – 8/1.

O tema teve, inclusive, bastante destaque nas redes sociais, a despeito das ações do Supremo para punir tais atos e os responsáveis. Esse levantamento revelou ainda, para além dos números, um culto ao 8 de janeiro por parte de vários grupos, numa representação distorcida dos fatos que contribui para criar na memória do eleitor uma percepção equivocada em relação àquele ato de atentado à democracia. O que ressignifica a realidade histórica e desinforma ampla fatia da população.

Em outro monitoramento, foi possível observar o comportamento dos candidatos em relação à atuação nas redes. Tal uso varia de acordo com o tamanho dos municípios – com um predomínio do WhatsApp nas cidades de menor porte. De modo geral, as redes mais utilizadas foram Instagram e Facebook. Em relação à adesão dos candidatos ao uso das redes, do total de candidaturas registradas nesta eleição, observou-se que, entre partidos de esquerda, a adesão é menor do que a verificada nos partidos de direita: 57,2% dos candidatos de direita estão nas redes sociais, contra 22,5% dos candidatos de centro e 20,4% dos candidatos de esquerda.

Crime organizado e política

Por fim, entre os aspectos que destaco, está a presença do crime organizado. As Eleições Municipais de 2024 trouxeram à tona uma preocupação que já vinha se manifestando em algumas instâncias: a forte inserção do crime organizado no cenário político-eleitoral do país. O Relatório Preliminar da Missão Observação Eleitoral da OEA no Brasil, divulgado em 9 de outubro de 2024, expôs claramente esse problema.

O documento enfatizou dois pontos principais em relação a esse tópico:

  • a ação de grupos criminosos, que impõem restrições de mobilidade nas áreas que controla, afetando as candidaturas locais, e coagem eleitores de algumas comunidades;
  • a preocupação com a entrada de fundos ilícitos nas eleições, sobretudo provenientes do tráfico de drogas.

Todos esses aspectos, discutidos aqui brevemente, estão interligados e precisam ser compreendidos a partir desse recorte. Essas dinâmicas dialogam entre si, se retroalimentam e se fortalecem a cada eleição no Brasil, impondo muitos desdobramentos. Portanto, encerrado o pleito de 2024, precisamos nos debruçar sobre tais aspectos para nos anteciparmos aos desafios que virão nas eleições de 2026.


Eliara Santana, Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela PUC Minas, pesquisadora, Observatório das Eleições

This article is republished from The Conversation under a Creative Commons license. Read the original article.

Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original em https://theconversation.com/br

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