Os Estados Unidos contra a ordem liberal
Donald Trump promete fechar totalmente a importação de certos produtos chineses e encarecer as importações de outros fornecedores internacionais, ressuscitando a ideia de travar uma espécie de grande batalha naval com novos tetos tarifários
Assim como há 94 anos, quando a miopia da Casa Branca e do poder legislativo gerou um enorme caos global com a aprovação da lei Smoot-Hawley, a atual direita populista dos Estados Unidos se une às lideranças do Ocidente dispostas a fechar grande parte da economia, com a polêmica desculpa de fomentar o crescimento e restabelecer a competitividade do setor privado.
A ferramenta escolhida por Donald Trump e seus seguidores é orquestrar um grande aumento ilegal e agressivo das tarifas de importação, junto a um generoso regime de subsídios para favorecer a industrialização e reindustrialização de empreendedores locais.
Caso ainda não tenham notado, há muito tempo que em Washington se apagou a histórica lealdade à ordem liberal, um conceito que agora só aparece, de vez em quando, em centros de reflexão como o CSIS ou o Instituto CATO. A moda da geração atual induz a menosprezar o multilateralismo e a questionar, com excessiva fúria militante e racionalidade questionável, o papel da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Esses mantras não são novos, apenas se tornaram mais ásperos ao longo dos anos. A nova classe política trabalha com a nefasta e perversa convicção de que as soluções surgirão com a aplicação de uma mega dose fulminante de protecionismo.
O próprio Donald Trump fala em aumentar para 200% a tarifa sobre os carros chineses, independentemente do local onde são montados, incluindo os produzidos no México, e em 60% para os demais produtos vindos da mesma nação asiática. A bronca com Pequim, muitas vezes de fundamento duvidoso, está evidente.
Tanto que o ex-presidente reconhece que o ouvem porque sabem “que estou um pouco mais louco do que antes”.
Há anos que Estados Unidos, União Europeia e outros fundadores da OECD não estão interessados em discutir planos de liberalização comercial baseados em redução de proteção tarifária. Seus acordos de nova geração se limitam a definir e aperfeiçoar o conteúdo do protecionismo regulatório, algo que nossas autoridades políticas e ONGs supostamente especializadas não conseguem entender.
Os movimentos atuais tendem a disfarçar tanto o conceito de desenvolvimento sustentável quanto o desvirtuamento de legítimas preocupações não comerciais que interessam a toda a humanidade, como negociações sobre meio ambiente, mudanças climáticas, desertificação e preservação da biodiversidade. Ou as crises energética e alimentar que permeiam sem explicação clara este inexplicável planeta.
Infelizmente, essa distorção não é detectada na vida acadêmica; aprende-se com muito esforço na trincheira da diplomacia comercial, que hoje discute dia e noite visões e armadilhas da política externa, como a existência do Brics, o falso tema das Nações Unidas sobre Sistemas Alimentares, cuja responsabilidade foi retirada da FAO, entre outras delícias da vida diplomática.
As mentes simples, como a minha, se limitam a invocar forças celestiais para que tais observações penetrem, de uma vez por todas, na mente de nossos colegas e amigos do Mercosul e que todos aprendamos a detectar o que realmente importa, esquecendo o lema de “figuração ou morte”.
Claro que se supõe que o verdadeiro Trump, que discute desde o palanque político o tamanho dos genitais do falecido golfista Arnold Palmer, não é o tipo de aliado que os liberais e libertários da América do Sul imaginavam conseguir. Tampouco é o que diz, com grande desenvoltura, que pode conviver com um déficit fiscal de 1,8 trilhões de dólares (um pouco maior que o déficit zero de Javier Milei) e prevê um aumento da dívida pública de 7,5 trilhões de dólares.
Para aqueles de nós que lidam com esses temas, assusta um pouco o desejo de repetir o grande erro de 1930, quando o planeta enfrentou a primeira crise de superoferta global de bens, cujas consequências resultaram em uma redução de dois terços do comércio exterior nos primeiros 12 meses de aplicação, levando ao fechamento de milhares de empresas e à perda de empregos para um exército massivo de trabalhadores. Isso não aconteceu por falta de dinheiro, mas sim de inteligência.
Por outro lado, a posição da nova direita populista apenas nos livra da criação de mais e melhor comércio, além de impulsionar o crescimento global, algo que certamente não será muito celebrado pelas sociedades que desejam resgatar a iniciativa privada.
Em resumo, Donald Trump promete fechar totalmente a importação de certos produtos chineses e encarecer as importações de outros fornecedores internacionais, ressuscitando a ideia de travar uma espécie de grande batalha naval com novos tetos tarifários. Aos demais fornecedores estrangeiros, ele quer aplicar, no mínimo, tarifas de importação de 20% a 30%.
Esses ajustes são vistos como inflacionários e pouco eficazes se, além disso, Washington impede a entrada de investidores. Em setembro passado, o presidente Joe Biden rejeitou a compra da US Steel pela Nippon Steel do Japão, uma empresa que tentou assumir a responsabilidade de tornar competitiva a emblemática e vacilante siderúrgica americana.
Segundo as várias declarações e relatos técnicos que descrevem as características do cenário atual, os ajustes que chegariam à mesa da Casa Branca surgiriam de bloquear a concorrência importada com um forte, amplo, horizontal, setorial, escalonado e discriminatório aumento das tarifas de importação. Uma orgia de violações das regras que regem o comércio global.
Ao examinar detalhadamente essas propostas, qualquer pessoa da área se vê tentada a suspeitar que ninguém concebe ideias tão hostis às normas da Organização Mundial do Comércio (OMC) se deseja manter a sua adesão a esse fórum.
Ao mesmo tempo, é claro que os parceiros comerciais de Washington não vão aceitar passivamente tarifas de importação ilegais que causam fechamentos parciais ou totais do mercado dos Estados Unidos. Eles não aceitaram no passado e não têm motivos para aceitar no futuro.
Apesar disso, nos círculos de quem entende do assunto, fora das salas do poder e das ONGs supostamente especializadas, houve uma reação inexplicável ao ouvir, mais uma vez, o rumor de uma possível saída dos Estados Unidos da OMC.
Na verdade, anos atrás pude participar diretamente dessas especulações em um diálogo entre ex-titulares do Escritório do Representante Comercial (USTR) que ocorreu muito antes da chegada ao poder do atual presidente Joe Biden.
Portanto, não surpreende que o assunto tenha chegado à revista Foreign Affairs no último dia 7 de outubro. Lá se encontra a coluna intitulada O mundo está abandonando a OMC – e Estados Unidos e China estão liderando o caminho, um texto muito bem escrito pela colega canadense Kristen Hopewell, que repete um diagnóstico que é voz corrente nas capitais que costumam ter voz na Sala Verde (Green Room) da OMC.
Mas não se trabalha nesses assuntos sem medir a veracidade e a viabilidade dos comentários.
Em primeiro lugar, a verborragia de Donald Trump costuma ser exagerada, imprecisa e enganosa. De onde vem a ideia de que seu país precisa estabelecer uma tarifa de 200% para frear a entrada de veículos elétricos chineses? Não acredito que venha do embaixador Robert Lighthizer, seu assessor e lobista de confiança.
Os especialistas sabem que, com a tarifa de importação de 28% que vigorava até pouco tempo, já não entrava quase nenhum veículo elétrico daquela nação asiática nos Estados Unidos.
Em segundo lugar, é sabido que o presidente Joe Biden reforçou as restrições comerciais ao aumentar as tarifas dos veículos elétricos para 100%.
Em terceiro lugar, o que sugere o ex-presidente e o que o atual mandatário está fazendo implica lançar outro capítulo da guerra comercial que o próprio Trump iniciou em março de 2018, um escudo que certamente não é consistente com os compromissos de acesso ao mercado que seu país consolidou perante a OMC, a menos que a futura Casa Branca encerre seu festival de ameaças com uma retumbante saída do maior fórum intergovernamental e contratual do planeta.
A esse respeito, embora ninguém aplauda a persistente sabotagem dos Estados Unidos ao Sistema Multilateral de Comércio, nenhum governo responsável deseja que esse país deixe a Organização. O que todos esperam é que a Casa Branca volte a se comportar como um governo adulto.
Em quarto lugar, as ideias de Trump e seus seguidores são semelhantes à tolice tentada em 1971 pelo governo do ex-presidente Richard Nixon, como parte do Acordo assinado no Museu Smithsonian. Na época, tentou-se estabelecer uma sobretaxa tarifária de 10% sobre todas as importações que acessassem o mercado americano, decisão que foi rejeitada pelo antigo GATT.
E, em quinto lugar, porque os carros produzidos no México por empresas chinesas que cumprem as condições de acesso estabelecidas para obter tratamento preferencial no novo NAFTA, o Acordo T-MEC (ou USMCA), não dão margem de manobra a quem pretende ser o “bad boy”.
As disposições do texto renegociado e adotado pelos três parceiros da América do Norte que integram o Acordo foram propostas essencialmente pelo então presidente Trump e seus assessores.
Se os Estados Unidos deixarem a OMC e derem por encerrado o Acordo regional da América do Norte, implodirão suas próprias oportunidades de exportação, e restará apenas pedir que as forças celestiais se compadeçam de Washington e do mundo diante de tamanha idiotice.
Ao redigir estas linhas, pude ver um vídeo notável em que Elon Musk pulava de braços levantados no palco eleitoral montado para ouvir o agora candidato presidencial Donald Trump.
Foi uma novidade surpreendente. Não é comum ver um líder empresarial desse calibre, a quem a revista Forbes atribui uma fortuna líquida atualizada de US$ 258,9 bilhões, se posicionar de forma tão visível ao lado de um candidato presidencial instável e com uma vocação protecionista delirante.
É o mesmo Musk que elogia a gestão desreguladora e de redução do Estado promovida por Javier Milei.
É verdade, Musk tem muitas razões para se dar bem com qualquer presidente dos Estados Unidos. Biden eliminou as tarifas e fez com que o mercado de veículos elétricos desse país fosse como pescar em um aquário; só que, a US$ 60 mil em média por carro de origem local, não chovem compradores.
O governo também deu aos veículos elétricos montados localmente uma isenção que não cobre os carros importados: um crédito fiscal de US$ 7.500 por unidade e acesso à tecnologia das grandes organizações governamentais em condições muito atraentes.
E agora Trump não só fala em mandar os impostos de importação de veículos elétricos às alturas, mas também em tornar dedutível de impostos a taxa de juros dos financiamentos pagos pelos compradores desses veículos.
Algumas das outras empresas de Musk encaixam-se bem na definição de capitalismo de amigos. Neste contexto, não é preciso resmungar nem xingar. Basta resignar-se a ganhar algum dinheiro.
Jorge Riaboi diplomata e jornalista. Seus textos são publicados originalmente no jornal argentino Clarín
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