Agenda científica segue gigante, mesmo após arrumação do negacionismo anterior
Balanço do que aconteceu neste 2023 em termos de ciência e tecnologia no país, focado especificamente nas ações no plano federal, revela que, todo o primeiro ano foi período de arrumação da casa. E que tremenda arrumação foi necessária
Por Carlos Américo Pacheco*
Um balanço do que aconteceu neste 2023 em termos de ciência e tecnologia no país, focado especificamente nas ações no plano federal, não é tarefa difícil. Como todo o primeiro ano, até mesmo em casos de reeleição, este é período de arrumação da casa. E que tremenda arrumação foi necessária agora!
A maior parte do esforço foi para acertar os problemas de financiamento. Isto acontece com grande frequência. Aconteceu em 1994, com a renegociação do PADCT; em 1999, com a criação dos Fundos Setoriais que, até hoje, são a base principal de financiamento do MCTI; em 2004 (quando de fato, depois de um ano de delírio começou o primeiro governo Lula na área de ciência e tecnologia); em 2007 com a perspectiva de descontigenciar o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – FNDCT; no início dos governos Dilma, com as Estratégias Nacionais de Ciência, Tecnologia e Inovação (CT&I); ou mesmo no curto período de Michel Temer.
Agora, não só não foi diferente, como foi mais intenso. No que diz respeito à ciência, a tecnologia e à inovação, e sua agenda gêmea da sustentabilidade, o mandato de Jair Bolsonaro foi de triste lembrança. Para além da enorme restrição fiscal e clara não priorização do tema, que implicaram uma queda dramática dos investimentos, a mensagem foi amplamente negativa. O negacionismo pautou a conduta da presidência, fato mais que evidente nas políticas de enfrentamento da Pandemia da Covid-19 ou nas posturas referentes à questão da mudança climática global e especialmente nas políticas de combate ao desmatamento na Amazônia.
O dispêndio de todos os órgãos federais em CT&I, incluindo o Ministério de Ciência e Tecnologia e Inovações (MCTI), mas também Saúde, Agricultura e Defesa, despencou de aproximadamente R$ 50 bilhões, em 2013, para R$ 40 bilhões, em 2020, em termos reais. A execução orçamentária do MCTI sofreu muito mais. Caiu de R$ 19,4 bilhões em 2013 para R$ 7,9 bilhões em 2021, em valores reais de 2022. Grande parte disto em função do bloqueio do FNDCT.
Não foi à toa que a comunidade científica e tecnológica, incluindo as principais associações e a Confederação Nacional da Indústria se mobilizaram e conquistaram o apoio do Congresso Nacional para aprovar, ainda 2021, uma Lei Complementar (LC nº 177/21) para vedar a limitação de empenho e movimentação financeira das despesas custeadas pelo FNDCT, além de modificar a natureza do Fundo (de contábil para contábil e financeira).
O dispositivo da lei que vedava a alocação orçamentária do FNDCT em reservas de contingência – e o dispositivo que estabelecia que os recursos do FNDCT já alocados em reserva de contingência seriam disponibilizados após a entrada em vigor da lei – foram vetadas por Jair Bolsonaro. O segundo veto prevaleceu, mas, em março de 2021, o Congresso Nacional derrubou o primeiro veto e a lei foi promulgada estabelecendo que estaria “vedada a alocação orçamentária dos valores provenientes de fontes vinculadas ao FNDCT em reservas de natureza primária ou financeira”.
Mas a alegria durou pouco, pois em agosto de 2022 o presidente editou uma Medida Provisória (MP) limitando o uso dos recursos do FNDCT. Os repasses ao Fundo estariam garantidos, mas por um instrumento novo seu uso não estaria liberado. Ficaram bloqueados com a finalidade de cumprir as regras do teto do gasto. A MP na prática limitou a liberação de recursos a cerca de 50% da sua arrecadação, com um cronograma paulatino de liberação que chagaria a 100% da arrecadação apenas em 2027.
É curioso aqui registrar que o Congresso Nacional fez na gestão de Jair Bolsonaro algo similar, embora bem menos contundente, que o Congresso Norte-americano fez com o governo Trump. Nos anos de 2018, 2019 e 2020, o Presidente Donald Trump pediu repetidamente ao Congresso que aprovasse cortes profundos (de 10% e em alguns casos de até 40%) nas despesas na maioria das agências federais de investigação (NASA, NIH, NSF, EPA, NIST, apenas a DARPA ficou fora dos cortes que Trump propôs). Mas os legisladores não só ignoraram seus pedidos, como, em literalmente todos os casos, aumentaram estes orçamentos – algumas vezes de forma substancial.
Mais uma Batalha de Itararé
Dado o impasse, o primeiro passo do novo governo foi buscar uma solução para o FNDCT. Para tanto, o presidente Lula encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei (PLN 1/23) para recuperar integralmente os recursos do FNDCT e respeitar a Lei Complementar 177/2021. A Lei 14.577 foi aprovada em maio de 2023, abrindo um crédito suplementar no orçamento e liberando os quase R$ 10 bilhões do FNDCT para investimento em 2023. O mote da presidência e do Ministério foi enfático: a ciência voltou.
Mas esta foi mais uma Batalha de Itararé. No frigir dos ovos, apenas 50% dos recursos foram liberados para ações não reembolsáveis, exatamente a maior demanda da comunidade científica e tecnológica. Metade ficou destinada a operações de crédito, algo importante, mas fora do radar destes atores, que estão em busca de recursos de fomento ou subvenção.
Pior, a promessa de recuperar nos próximos anos o valor integral das receitas do FNDCT ficou mais distante depois da aprovação do novo arcabouço fiscal que não deixa fora do teto este tipo de dispêndio. Para 2024 a Proposta de Lei Orçamentária novamente não libera a íntegra do Fundo. Melhoramos, mas quase voltamos aonde estávamos.
Este quadro é dramático? É, mas merece muitas qualificações. Primeiro porque a recomposição orçamentária do MCTI, embora não libere todo o FNDCT, é expressiva, com um acréscimo de pouco mais de R$ 1 bilhão para 2024. Segundo porque não são apenas os recursos que são importantes, mas especialmente o que fazer com eles.
A questão mais relevante é saber qual a estratégia que vamos perseguir, num mundo polarizado e em franca rivalidade internacional. O que fazer em temas como inteligência artificial ou em tecnologias quânticas ou ainda com a nova geração da genômica? O que fazer para incentivar a inovação nas empresas, algo em que patinamos há anos.
Há aqui coisas relevantes, encaminhadas em 2023, embora ainda bem iniciais. Em primeiro lugar, a retomada da formulação de uma política industrial com ênfase na inovação. O recriado Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CNDI) definiu diretrizes da nova política e desencadeou uma série de oficinas temáticas, para detalhar a agenda da chamada neoindustrialização. O interessante aqui é a forma de organizar a política em torno de missões, como tem sido preconizado em vários países, a começar pela Comunidade Europeia.
O CNDI e o Ministério do Desenvolvimento definiram seis grandes missões ou focos de atuação: 1) cadeias agroindustriais sustentáveis e digitais para a segurança alimentar, nutricional e energética; 2) complexo econômico industrial da saúde resiliente para reduzir as vulnerabilidades do SUS e ampliar o acesso à saúde; 3) infraestrutura, saneamento, moradia e mobilidade sustentáveis para a integração produtiva e o bem-estar nas cidades; 4) transformação digital da indústria para ampliar a produtividade; 5) bioeconomia, descarbonização e transição e segurança energéticas, para garantir os recursos para as futuras gerações; 6) tecnologias de interesse para a soberania e a defesa nacionais.
Para apoiar esta nova política, o MCTI se compromete a investir R$ 41 bilhões nos próximos quatro anos por meio de instrumentos de crédito e subvenção econômica (recursos reembolsáveis e não reembolsáveis) operados pela Finep, com lastro no FNDCT, e focados no estímulo à inovação nas empresas. O objetivo é ter a inovação empresarial como um dos pilares da nova política, num programa que sintomaticamente se chama Mais Inovação.
Em complemento a isto, convém destacar que o próprio MCTI reorganizou suas prioridades também por missões. Na convocação da 5ª Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (CNCTI), que vai ocorrer em junho de 2024, o Decreto Presidencial define quatro eixos estruturantes para a nova Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação – ENCTI 2024-2030: I – recuperação, expansão e consolidação do Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação; II – reindustrialização em novas bases e apoio à inovação nas empresas; III – ciência, tecnologia e inovação para programas e projetos estratégicos nacionais; e IV – ciência, tecnologia e inovação para o desenvolvimento social. Eixos que foram detalhados em Portaria do MCTI de maio de 2023.
Estas missões – na linha do que tem sido chamado pesquisa orientada à missão – ainda vão demandar um enorme trabalho e vão exigir um razoável grau de detalhamento. Elas ainda são inspirações gerais, muito diferentes das missões definidas em vários outros países, que, ao lado de escolher problemas complexos e desafiadores, há sempre um propósito de atingir uma meta específica, passível de ser monitorada, bem como arquiteturas institucionais claras, com papéis e atribuições definidas, cronogramas e estimativas de aporte de recursos.
Dificuldades de definir prioridades
De qualquer forma, a realização de uma nova Conferência Nacional de CTI pode ser, para além de injetar ânimo e mobilizar as comunidades científicas e tecnológicas, um momento de reflexão dos rumos futuros. Ou, ao menos, uma oportunidade de avançar nesta concepção de missões e pactuar de forma ampla estas prioridades, apesar do risco de derivar um leque muito amplo de temas e ‘prioridades’ em função das diversas especialidades e interesses dos múltiplos participantes.
A questão em jogo aqui é a dificuldade natural de um país enorme e diverso de definir prioridades. Diagnósticos recentes realizados pela equipe do IPEA são claros em mostrar que o uso dos recursos do FNDCT nos anos recentes – notadamente para a infraestrutura de pesquisa – foi diluído em pequenos projetos. Estes levantamentos mostram que nossa infraestrutura de pesquisa é formada de pequenos laboratórios espalhados nas universidades brasileiras. São infraestruturas nas quais trabalham poucos pesquisadores, com equipamentos de baixo custo.
Pouquíssimas infraestruturas têm valor significativo, diferente do que acontece nos melhores sistemas nacionais de inovação. Aqui o risco, que é maior quando há recursos, é de uma pulverização dos investimentos, algo que muitas vezes soa popular, mas que é sinônimo da falta de prioridades.
De concreto e de grande importância, no contexto da nova política industrial, cabe destacar a modificação, pela Lei nº 14.592 de maio passado, da taxa de juros para linhas de inovação e digitalização apoiados pelo BNDES, que deixou de ser a TLP (Taxa de Longo Prazo) e passou a ser a Taxa Referencial (TR). Isso vai reduzir o custo de captação do BNDES e permitir que o banco apoie as atividades de inovação e digitalização com taxas mais ajustadas a essas atividades. Na prática, isso significa que os juros dos empréstimos passam a ser cerca de 2% ao ano, ante os anteriores 7% ao ano da TLP.
O mesmo ocorreu com os empréstimos da FINEP, em função das mudanças trazidas pela PLV 01/2023 (conversão da MP 1.139/2022), que igualmente altera a remuneração dos empréstimos do FNDCT à Finep, que passam a se guiar pela TR e não mais pela TJLP, com uma queda de cerca de 35% no custo destes empréstimos. Uma excelente notícia, inclusive coerente com a disponibilidade de funding para crédito decorrentes da alocação e metade dos recursos do FNDCT para operações reembolsáveis.
Uma agenda importante desta pactuação de interesses é como contornar a questão de um certo conflito distributivo e defesa de interesses que hoje permeia a política, em função da crescente mobilização do setor privado na agenda da inovação. Décadas atrás, quando este protagonismo privado não estava na agenda, o Ministério e suas agências basicamente tinham uma interlocução apenas com a comunidade acadêmica. Isto mudou, e os representantes empresarias têm hoje um papel ativo na formulação da política e têm uma agenda própria, na busca de incentivos ficais e de recursos de subvenção econômica para a inovação. São demandas distintas e legítimas que precisam ser coordenadas e alinhadas, se o país quiser de fato avançar, tanto na ciência, quanto na inovação.
Estas diferentes visões estão presentes em várias instâncias, em especial nos conselhos do FNCDT e no Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia. Mas uma forma positiva de seguir adiante é exatamente na estruturação de uma estratégia nacional de CTI, realista, mas ambiciosa, capaz de sinalizar um rumo para o país.
Em algumas áreas de fronteira isto não é difícil, como em inteligência artificial ou tecnologias quânticas. Há aqui demandas de gente qualificada para a indústria e para o setor financeiro, para citar dois exemplos. É perfeitamente possível aliar projetos acadêmicos que criem competências críticas nestes temas, com abordagens inovadoras de engajamento privado.
É verdade que nem tudo é fácil de convergir. Uma demanda privada especial é a agenda de difusão de tecnologia, a exemplo do Programa Brasil mais produtivo. Isto se afasta da demanda por pesquisas disruptivas mais sintonizadas com a vocação acadêmica. Mas é uma etapa necessária para qualquer passo adicional de qualificação das empresas para voos mais ousados.
A posse do novo governo criou, até por contraposição ao anterior, uma onda de expectativas otimistas. Há ainda muita esperança, embora o tempo desgaste o entusiasmo inicial. Caberá ao governo saber mobilizar os principais stakeholders e retomar as expectativas iniciais. A conferência pode ser um bom caminho para isto. Mas seria importante ter ações relevantes até lá, pois serão estas que permitirão criar otimismo.
Mas, para finalizar, um balanço deste ano não pode deixar de evidenciar que a questão política e as idas e vindas de eventuais reformas ministeriais foram cruciais para os rumos da atual gestão. Nos últimos meses, o MCTI foi alvo de uma negociação acirrada de pretendentes de vários partidos. Não porque o Ministério fosse atrativo para estes contendores, ao contrário, em geral ninguém demandava esta posição. A barganha soava quase sempre como uma ameaça velada. No fim do dia, após tantas idas e vinda o que sobrou foi um Ministério enfraquecido, cuja confirmação da equipe demorou e demonstrou sua fragilidade e sua marginalidade para o sistema político. O Ministério interessa aos cientistas e a alguns empreendedores, mas só a eles. Num mundo em que o Congresso tem uma importância central nos destinos do país, este não é um bom cenário. O tempo dirá. Mas fica a lição da importância de entender a agenda política. Isto não é difícil de arrumar, e o exemplo dos últimos anos mostra que ao menos dois importantes políticos nacionais dirigiram o MCTI com sucesso, tanto para o avanço do país, quanto para suas próprias biografias.
Carlos Américo Pacheco é professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp, engenheiro eletrônico pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA, mestre e doutor em Economia (Unicamp) e pós-doutor em Economia (Columbia University
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
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