18 agosto 2022

Escalada de tensões na Ásia reflete instabilidade global e interesses domésticos de EUA, China e Taiwan

Para a professora de relações internacionais Letícia Simões, Taiwan ficou pressionada como um ‘joguete’ entre as duas potências, enquanto os governos americano e chinês pensam na política interna dos seus países ao escalar as disputas políticas, econômicas e militares em torno da ilha

Para a professora de relações internacionais Letícia Simões, Taiwan ficou pressionada como um ‘joguete’ entre as duas potências, enquanto os governos americano e chinês pensam na política interna dos seus países ao escalar as disputas políticas, econômicas e militares em torno da ilha

A presidende de Taiwan, Tsai Ing-wen, e a presidente da Câmara de Deputados dos EUA, Nancy Pelosi, durante visita da americana à ilha (Makoto Lin/CC)

Por Daniel Buarque

A escalada de tensões entre Estados Unidos e China por conta da visita da presidente da Câmara dos EUA a Taiwan se tornou uma das principais crises globais das últimas semanas. Para a professora de relações internacionais Leticia Cordeiro Simões de Moraes Lima, a crise reflete instabilidades globais e interesses domésticos dos governos dos três atores envolvidos, e deve seguir o exemplo de escaladas anteriores, reduzindo as disputas para voltar a uma situação de equilíbrio tênue construído ao longo de décadas.

Do ponto de vista americano, a viagem de Nancy Pelosi serve para reforçar seu legado crítico à China e para tirar atenção de problemas domésticos do governo de Joe Biden. Para a China, a provocação não poderia passar sem resposta porque Xi Jinping busca mostrar força para se manter na posição de líder do país. E Taiwan, que fica pressionada como um “joguete” entre as duas potências, também tem um governo que quer se colocar como defensor da autonomia da ilha. Tudo isso acaba amplificado pelo contexto de guerra na Ucrânia, recessão nos EUA, crise de abastecimento da Europa e outros problemas pelo mundo, explicou Simões em entrevista à Interesse Nacional.

“A instabilidade costuma elevar os ânimos inclusive em casos que já estavam em teoria consolidados e estáveis. A situação em Taiwan espelha esse mundo instável em que a gente está vivendo”, disse.

Professora do Centro Universitário La Salle, do Rio, e membro do Centro de Estudos sobre China Contemporânea e Ásia (CEA), Simões estudou em seu doutorado a integração regional no Sudeste Asiático e analisou a liderança regional da China na disputa pela liderança regional com o Japão na região do Leste Asiático, incluindo as questões relativas ao Mar do Sul da China. Segundo ela, a tensão tem importância até mesmo para o Brasil, pois envolve importantes parceiros comerciais do país. Enquanto a disputa se desenrolar apenas em trocas de críticas, acusações e exercícios militares, entretanto, o Brasil corre menos riscos ao se posicionar de forma neutra, sem se envolver na disputa.

Leia abaixo a entrevista completa

Daniel Buarque – Em que posição Taiwan fica em meio a essa escalada de tensões entre Estados Unidos e China pela visita de Nancy Pelosi?

Letícia Simões – A visita da Nancy Pelosi a Taiwan é um combustível para tensões entre China e Estados Unidos, pois a ilha ficou no meio do caminho entre os dois países. Muitos analistas estão chamando esse episódio de Quarta Crise do Estreito de Taiwan, fazendo referência às outras crises que aconteceram entre as décadas de 1950 e 1990 e que também envolveram China, Taiwan e os EUA. Os motivos eram mais ou menos diferentes, mas continuavam envolvendo os mesmo atores importantes da política Internacional. Mas é importante considerar que mesmo com a atual escalada, uma invasão da China a Taiwan vai contra suas diretrizes de política interna. A China olha para Taiwan e entende que a ilha faz parte do seu território, o que é uma questão de orgulho, de política e história nacional. O governo na China enxerga a ilha, Hong Kong, Macau como parte do seu território, o que faz parte da lógica de Uma Só China. Então uma invasão seria como invadir seu próprio território, pois a visão da China sobre é Taiwan é de que Taiwan é parte da sua política interna. Seria um contrassenso para a China invadir seu próprio território

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Daniel Buarque – A crise atual levou a alertas e preocupações em todo o mundo. Qual a importância de Taiwan no contexto global?

Letícia Simões – Taiwan é um ator importante na política Internacional, apesar de ser uma ilha pequena com uma população também muito pequena em comparação com a China continental. Essa importância se dá por questões históricas, políticas e militares, pela localização geopolítica, geográfica, e por questões comerciais e econômicas. Isso é fundamental para posicionar Taiwan enquanto um ator importante, apesar de não ser reconhecido pela maioria dos países do sistema Internacional como país soberano.

Em termos econômicos, Taiwan ganhou muito destaque na década de 1950 porque buscou se desenvolver, desenvolver sua indústria, sua economia e se tornou o primeiro Tigre Asiático. Isso porque o governo já estava mais ou menos organizado em Taiwan, conseguindo reunir o poder na mão de uma elite política e começar a tentar desenvolver aquela aquela parte do território no contexto da Guerra Fria. Desde a década de 1950, Taiwan buscou se desenvolver focando em modernização para diminuir a distância entre o mundo industrializado e os países que estão mais atrasados. Esse boom de desenvolvimento da ilha começou com o apoio dos Estados Unidos, mas hoje Taiwan tem um nível de sofisticação, de desenvolvimento produtivo, que leva a uma renda per capita que é 3 vezes maior do que a da China. E isso com o domínio numa indústria vital, que é a indústria de semicondutores, de chips de eletrônicos, e a gente vê que qualquer interrupção nessa produção leva o caos à política e à economia global,

Em termos militares e de segurança, principalmente para a República Popular da China, Taiwan tem um valor muito elevado por causa da proximidade da ilha em relação ao continente. O Estreito de Taiwan, que separa a ilha do continente, na sua parte mais próxima, tem uma distância de só 130 km. Está muito perto em termos geopolíticos. Esse canal de navegação Internacional, faz com que estar em Taiwan seja ter um acesso muito privilegiado também a rotas comerciais e estratégicas até mesmo para navios militares no Mar do Sul da China.

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Daniel Buarque – E qual a importância da ilha para os Estados Unidos?

Letícia Simões – A relação dos Estados Unidos com Taiwan hoje em dia é uma relação muito mais informal. Até a década de 1970, a República Popular da China não era reconhecida internacionalmente. Quem era reconhecido era Taiwan, como República da China. E hoje essa relação nos Estados Unidos e Taiwan se baseia em um ato informal de 1979 em que o presidente norte-americano e o Congresso dos Estados Unidos são os responsáveis por manter com o governo de Taiwan essas relações de amizade, relações comerciais, sem um acordo diplomático de fato, porque isso reconheceria Taiwan enquanto um Estado soberano e iria contra a política de Uma Só China, que os Estados Unidos alegam seguir. Mesmo que sejam relações informais, as relações dos Estados Unidos com Taiwan são realmente muito profundas. Taiwan não é um ator de segunda importância para os Estados Unidos. São ligações financeiras e comerciais, principalmente por conta dos semicondutores, mas também existe uma relação militar importante, e muitos dizem que Taiwan serve quase como se fosse um porta-aviões americano naquela cadeia de ilhas da região. E mesmo que essa relação seja informal, existe praticamente um consenso entre democratas e republicanos dentro dos Estados Unidos que, no caso de um ataque da China continental a Taiwan, haverá um aprofundamento ainda maior dessas ligações.

Daniel Buarque – Nesse contexto de relações muito consolidadas entre Estados Unidos e Taiwan e China, por que está acontecendo essa crise atualmente? Existe algum motivo para essa escalada de tensões?

Letícia Simões – É uma postura bastante errática do governo norte-americano. Só Nancy Pelosi tem 100% de certeza de por que ela foi até Taiwan. Alguns vão dizer que é porque ela quer deixar um legado dessa passagem dela como presidente da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, outros vão dizer que é uma forma de desafiar o governo de Joe Biden, que já tem uma popularidade muito baixa, e alguns outros vão dizer que é uma forma do governo Biden desviar atenção dos problemas internos dos Estados Unidos

Daniel Buarque –  Até que ponto a visita da presidente da Câmara dos EUA a Taiwan é realmente uma provocação e um motivo para uma crise internacional?

Letícia Simões – Nancy Pelosi não é a primeira presidente da Câmara dos Deputados dos EUA a visitar Taiwan. A última vez que essa visita aconteceu foi em 1997, e na época isso não causou tanta crise. Mas o mundo de 1997 era um outro mundo, e a China era muito menos poderosa, muito menos importante, muito menos central na política e na economia internacionais, e não tinha uma força militar tão sofisticada quanto tem hoje. E os Estados Unidos também eram outros. Eles não tinham um concorrente à sua altura como parece ter hoje com a China. A visita do Newt Gingrich em 1997 ocorreu logo depois da Terceira Crise no Estreito, que foi causada pela visita do presidente de Taiwan da época aos Estados Unidos. Logo depois da visita do então presidente de Taiwan aos Estados Unidos em 1995, a China começou a fazer exercícios militares com armas reais e mísseis tal qual faz agora. Essa resposta chinesa a essa visita da Pelosi está sendo quase que uma reedição do que houve naquele momento.  Mas naquela época o presidente chinês muito mais low profile do que hoje. Um possível motivo por que a China respondeu de uma forma tão “agressiva” dessa vez é que o Xi Jinping está buscando o terceiro mandato como presidente. Então, quando ele é provocado dessa forma pela Pelosi, ele não pode simplesmente não responder, porque isso vai fazer ele parecer fraco tanto na política Internacional quanto dentro da China.

Daniel Buarque – No fundo, então, Taiwan está como um peão no meio de duas potências que estão pensando mais em disputas domésticas?

Letícia Simões – Sim. Fica ali como um joguete, usado ali para um lado e para o outro para seus próprios interesses

Daniel Buarque – E se pensarmos em Taiwan como um ator que tem interesses próprios, que tem agência, como eles ficam nesse contexto. Há alguma vantagem em ter recebido a Nancy Pelosi?

Letícia Simões – A mídia chinesa chegou a publicar artigos alegando que o governo de Taiwan havia pedido para ela não ir, mas que a Pelosi teria insistido. Mas também já acusaram isso de ser fake news. De qualquer forma, a presidente de Taiwan se encontrou com Nancy Pelosi. Ela tem uma postura de maior alinhamento com potências ocidentais. Então, nesse contexto, a presidente está querendo mostrar para a China que não vai ser uma nova Hong Kong, que não vai perder autonomia e que tem aliados poderosos do seu lado –o que também não significa que ela está buscando a Independência.

Daniel Buarque – Existe alguma influência do contexto global nessa escalada, considerando a situação da Ucrânia, que serviu de mote para discussões sobre Taiwan?

Letícia Simões – O contexto sempre influencia, e logo que houve a invasão da Ucrânia se falou muito sobre a situação de Taiwan, e houve alertas de que a China iria invadir Taiwan. Mas isso não deve acontecer. Não faz parte das diretrizes de política chinesa esse tipo de invasão. Eles querem trazer Taiwan para próximo, sim, mas da forma mais natural possível, mesmo que isso seja quase que impossível. Não acho que seja coincidência a escalada acontecer logo após a invasão da Ucrânia, mas o sistema Internacional de 2022 está bastante fragilizado. A China não está crescendo como ela costuma crescer, os Estados Unidos estão em recessão técnica, há a crise na Ucrânia, crise de abastecimento na Europa, então estamos em um mundo muito instável. E a instabilidade costuma elevar os ânimos inclusive em casos que já estavam em teoria consolidados e estáveis. A situação em Taiwan espelha esse mundo instável em que a gente está vivendo.

Daniel Buarque – Qual a importância dessa crise para o Brasil, e como o Brasil deve se comportar em relação a ela?

Letícia Simões –  É claro que qualquer tipo de tensão entre China e Estados Unidos afeta o mundo inteiro. Basta lembrar da guerra comercial dos últimos anos.

Normalmente, quando a gente fala sobre a importância de questões globais para o Brasil, é importante olhar para as relações econômicas do Brasil com os países envolvidos. Se houver um conflito entre China e Taiwan, o mundo todo sofreria. O Mar do Sul da China tem algumas das principais rotas comerciais do mundo, e qualquer problema nelas afetaria a situação até do Brasil. Entre Taiwan e China, a China é o nosso principal parceiro comercial. Taiwan está em 42º no que diz respeito a destinos dos nossos produtos. Em 2021 foram cerca de US$ 1,3 bilhão exportados do Brasil para Taiwan –basicamente grãos. Já a China é nosso principal parceiro comercial, e em 2020 a gente teve um superávit com a China de US$ 40,2 bilhões –basicamente também com grãos. De Taiwan , o principal produto que a gente importa são eletrônicos. E a gente compra mais deles do que vende para eles, quase o dobro de importação se comparado com a exportação. Mas nossa principal relação sem dúvida é com a China. A gente importa da China basicamente tudo. Enquanto eles têm um foco muito específico do que que eles compram da gente, como soja, minério de ferro, petróleo e carnes, a gente compra desde aparelhos elétricos, medicamentos… Não tem um único setor que é predominante. E isso pode afetar o Brasil, pois, se a gente não consegue comprar isso da China, isso vai afetar o nosso setor de venda de produtos, mas a gente vai ter problema na hora de produzir também.

Um confronto entre China e Taiwan afetaria o Brasil, a economia brasileira e a vida no país de diversas formas. Desde o dia-a-dia do brasileiro que precisa comprar remédios na farmácia, seja pelo aumento do preço dos alimentos por conta da ausência de fertilizantes.

Mas a gente pode ir além da questão comercial, pois trata-se de uma tensão entre as duas grandes potências do sistema Internacional, então estamos falando de todo tipo de influência. Não se trata só de uma crise bilateral entre China e Estados Unidos. Trata-se das duas maiores economias, das duas maiores forças militares, duas potências nucleares. No extremo do extremo, seria uma guerra total. Não acho que vá acontecer nada assim. Acredito que as tensões vão desescalar da mesma forma que aconteceu nas outras crises no Estreito de Taiwan, quando houve de 10 a 12 meses de tensões, até que o pragmatismo venceu e deu uma solução à crise. E no final da década de 1990, inclusive, houve um aumento das relações estratégicas entre China e EUA. Apesar dessa postura errática dos Estados Unidos, a gente vê uma China que entende que não vale a pena entrar nessa briga agora.

Daniel Buarque – Você falou de questões de comércio e de segurança, mas e como fica a questão diplomática do Brasil nessa situação. Este foi um ponto importante em relação à guerra na Ucrânia, com críticas ao posicionamento “equidistante” do Brasil. Como o país poderia se colocar diplomaticamente nesse contexto de tensões entre EUA, China e Taiwan?

Letícia Simões – Na verdade, a nossa relação com os dois principais atores dessa tensão está complicada. A relação diplomática do Brasil tanto com a China quanto com os EUA esfriou nos últimos anos. Falta uma relação com embaixadores dos dois países em Brasília, o presidente brasileiro demorou a reconhecer a eleição de Biden, a Cúpula das Américas mostrou esse esfriamento. Enquanto isso, a relação com o governo chinês se enfraqueceu por conta da postura do governo brasileiro

No caso da guerra da Ucrânia, o governo brasileiro parecia estar mais favorável à Rússia do que à Ucrânia, especialmente pela visita de Bolsonaro a Putin.

Mas, no fim, nessa questão de Taiwan, o Brasil deve ficar neutro e evitar entrar no debate –isso especialmente por causa das eleições por aqui. São atores que nos são muito caros economicamente e comercialmente, então tomar um partido ou outro seria prejudicial para o Brasil. Faz sentido estar neutro pelo menos até que aconteça algum tipo de agressão, se é que ela vai acontecer, o que eu acho pouco provável.

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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China 🞌 Diplomacia 🞌 Política Externa 🞌 Segurança 🞌 Taiwan 🞌

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