10 janeiro 2023

Os perigos do uso do termo ‘terrorismo’ para classificar ataque em Brasília

Terrorismo não é um adjetivo, é uma classificação política. Para cientista política, mobilizar as palavras terrorismo e terrorista coloca em jogo mais do que a tipificação penal e faz perder de vista o que se combate: o golpismo de orientação fascista 

Terrorismo não é um adjetivo, é uma classificação política. Para cientista política, mobilizar palavras como ‘terrorista’ coloca em jogo mais do que a tipificação penal e faz perder de vista o que se combate: o golpismo de orientação fascista 

Manifestantes invadem Congresso, STF e Palácio do Planalto (Foto: Agência Brasil).

Por Fhoutine Marie*

Desde o ano passado, quando os golpistas vestidos de verde e amarelo, jornalistas, analistas políticos, militantes e políticos  de partidos de esquerda têm insistido em classificar como terroristas os atos de depredação ocorridos na noite da diplomação do presidente eleito. Eu prefiro chamar de golpistas, já que me parecem termos mais acurados para descrever o que eles são e o que fazem. Nos Estados Unidos as pessoas que invadiram o Capitólio são chamadas de insurrecionalistas, algo parecido com termo usado por Vladimir Safatle, que chamou o acontecimento de insurreição fascista

São alternativas menos problemáticas. Em que pese muito do que se viu ano passado e na tentativa de golpe ocorrida no domingo (8) em Brasília se enquadrar na Lei 13.260 – mais conhecida como Lei Antiterrorista, sancionada por Dilma Rousseff já no ocaso de seu governo, em 16 de março de 2016 – trata-se de um termo que deveria ser usado com cautela. 

Não por razões antipunitivistas, mas para evitar desbloquear um instrumento que historicamente tem sido usado contra as mesmas pessoas que hoje pedem punição severa e exemplar “para os terroristas”. Com o argumento de que, por muito menos, outras manifestações foram reprimidas com brutalidade policial, dá-se a impressão de que aquilo que as autoridades tendem a chamar de “excessos” possuem alguma justificação plausível e que são, além disso, desejáveis. 

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Com isso corre-se o risco de dar continuidade a uma narrativa que reforça o autoritarismo praticado pela esquerda. O ato falho de Lula em seu pronunciamento ontem ao dizer stalinistas quando pretendia dizer fascistas diz muito sobre isso. A Polícia Militar comandada por governadores de partidos de esquerda – ou por pessoas que não estavam em partidos de esquerda, mas hoje compõem o atual governo – em um passado não tão distante não se fez de rogada na hora de exercer o monopólio legítimo da força, em processos de reintegração de posse ou em protestos de professores e estudantes.

Terrorismo não é um adjetivo

Terrorismo e terrorista são palavras derivadas do período do Terror da Revolução Francesa, no qual foram executados pelo Estado não apenas nobres, mas muitas pessoas da recém-nascida esquerda consideradas inimigas da Revolução. O conceito de inimigo é muito importante para compreendermos o que essa classificação mobiliza: a aniquilação de um inimigo a quem não cabem as garantias constitucionais reservadas ao cidadão. 

Autores clássicos como Hobbes, Maquiavel e Beccaria já falavam sobre o inimigo como alguém que não age dentro das regras do jogo e cuja punição, por este motivo, não deve ser a mesma destinada ao cidadão comum. Isso ajuda a compreender como a palavra câncer costuma aparecer na retórica relacionada ao terrorismo. Trata-se de algo que precisa ser extirpado, que requer um regime especial de tratamento. O problema que se coloca quando comparamos qualquer coisa ao câncer é que o tratamento para a doença costuma ser cortar fora, queimar ou envenenar o paciente para matar células cancerígenas na esperança que o corpo sobreviva. 

Terrorismo não é um adjetivo, é uma classificação política. E costuma ser apenas o começo, já que, como num câncer, sabemos apenas o início do tratamento, que pode se prolongar, se somar a outros protocolos tão ou mais destrutivos que a abordagem inicial, repletos de sequelas, de partes saudáveis atingidas ou removidas e efeitos prolongados de toxicidade. Um corpo permanentemente monitorado. Esse corpo, no caso, é o corpo social. 

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O clamor e que no futuro pode levar a criminalizar qualquer um que se manifeste contra decisões de governo, equiparando aos golpistas trabalhadores, estudantes, indígenas, pessoas em situação de rua ou condições precárias de moradia, moradores de periferias, enfim, todos aqueles cuja imagem da violência policial e militar ainda é fresca em nossa memória. 

Historicamente, todas as vezes em que se declarou guerra ao terror, uma caçada a terroristas ou algo que o valha, foi a população que sofreu as consequências. Foram os movimentos sociais e cidadãos politicamente engajados – ou às vezes nem isso – que tiveram suas liberdades e corpos violados em nome do combate a um inimigo “sem rosto”. Certas trilhas não tem caminho de volta.


*Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional. Jornalista e cientista política, participa como co-autora dos livros “Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil” (Zouk/2017) e “Neoliberalismo, feminismo e contracondutas” (Entremeios/2019). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.  


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


Fhoutine Marie é colunista da Interesse Nacional, jornalista e cientista política. Participa como co-autora dos livros "Tem Saída – Ensaios Críticos Sobre o Brasil" (Zouk/2017), "Neoliberalismo, feminismo e contracondutas" (Entremeios/2019) e "O Brasil voltou?" (Pioneira/2024). Seu trabalho tem como foco temas como gênero, raça, terrorismo, neoconservadorismo e resistência política numa perspectiva não-institucional.

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