O enfrentamento da desinformação intencional no Brasil: uma pauta urgente
Uma característica atual de desinformação intencional é a utilização de mecanismos muito potentes para ampliar o seu alcance e a falta de conhecimento sobre as bases da ciência. Existe uma indústria de desinformação muito bem organizada, com fortes interesses econômicos e que se baseia em uma agenda com noções bem estabelecidas do que é necessário para consolidar determinadas ideias, valores morais e ideologias
Uma característica atual de desinformação intencional é a utilização de mecanismos muito potentes para ampliar o seu alcance e a falta de conhecimento sobre as bases da ciência. Existe uma indústria de desinformação muito bem organizada, com fortes interesses econômicos e que se baseia em uma agenda com noções bem estabelecidas do que é necessário para consolidar determinadas ideias, valores morais e ideologias
Por Manoel Barral-Netto e Carlos Vogt*
Antes de mais nada, uma distinção importante a ser feita: para se debater o assunto de que trata este artigo, é preciso entender a diferença entre a desinformação não intencional e a desinformação intencional.
A primeira se origina de uma desatualização ou erros de checagem de autor de um texto informativo. Condição que a língua inglesa bem define com a palavra misinformation.
Já a desinformação intencional (disinformation, em inglês) difunde deliberadamente informações falsas, imprecisas ou enganosas, visando obter vantagens econômicas, ou para objetivos políticos e ideológicos.
Os dois tipos de desinformação existem há muito tempo, mas a ciência provia as bases para confirmar ou desmentir. O problema é que atualmente, citando a filósofa Hanna Arendt, “A mudança de ordem é que, agora, a política determina a mentira na ciência”.
No contexto do nosso projeto ENFRENTA – promovido pela Academia de Ciências da Bahia e pela Fundação Conrado Wessel para discutir a situação e as características atuais da desinformação e do descrédito na ciência no Brasil e refletir sobre o seu enfrentamento – tratamos da desinformação intencional: a que tem interesse, estratégia e risco.
Visamos com isso entender as características e mecanismos das informações falsas ou distorcidas e difundidas de maneira intencional em larga escala, com o objetivo de fornecer bases científicas para o seu enfrentamento. Estamos voltados para o enfrentamento à desinformação intencional como fenômeno que apresenta riscos aos direitos que visam corrigir desigualdades e iniquidades, à saúde, à pauta ambiental e à democracia.
Mesmo em sociedades amplamente educadas, sempre houve desconfiança sobre a ciência. Há duas causas para que essa descrença ocorra. A primeira delas é a ideologia de grupos políticos ou religiosos de grupos que se sentem ameaçados pelo conhecimento da ciência e que preferem o obscurantismo como explicação do mundo pois, dessa forma, conseguem maior poder e domínio sobre as pessoas.
O segundo componente são as dúvidas provocadas por desinformações. É necessário entender a situação do poder político e religioso, assim como do poder econômico. Para além dos aspectos emocional, moral e religioso, o apelo da desinformação conta com recursos cada vez mais apurados para tornar crível o seu conteúdo. A efetividade da desinformação intencionalmente maliciosa é multifatorial e a sua compreensão demanda das diversas áreas da ciência.
Uma característica atual de desinformação intencional é a utilização de mecanismos muito potentes para ampliar o seu alcance e a falta de conhecimento sobre as bases da ciência. Existe uma indústria de desinformação muito bem organizada, com fortes interesses econômicos e que se baseia em uma agenda com noções bem estabelecidas do que é necessário para consolidar determinadas ideias, valores morais e ideologias. Algumas das áreas temáticas em que se destaca a maquinaria da desinformação são a pauta ambiental, a saúde, a segurança pública, os direitos sociais que visam corrigir desigualdades e iniquidades, e a política atingindo, assim, a própria democracia.
Pessoas que se identificam com um dos dois pólos nos debates políticos apresentam a tendência em ser mais ativos online e compartilhar mensagens que confirmam o seu próprio pensamento, formando “bolhas”. As bolhas e identidades coletivas entre determinados atores, geram grupos com bastante densidade, interessados em receber mensagens que confirmam as suas crenças, estabelecendo o viés da confirmação. Muitas vezes, em nome de crenças, deixa-se de lado a relevância da checagem de notícias falsas.
Em tom positivo, o Brasil já combateu eficientemente a desinformação sobre o uso de cigarros, já incentivou e tem conseguido boas respostas para o aleitamento materno, conseguiu em diversos momentos ter cobertura vacinal de boa qualidade. Há, também, um crescente interesse pela ciência e pela compreensão do que é divulgado nos artigos científicos. Isto indica que temos elementos para a mudança. Por outro lado, publicações científicas com interesse de divulgar a ciência são poucas no Brasil.
Não podemos cometer erros. É necessário utilizar todas as estratégias e instrumentos disponíveis para fornecer informações cientificamente embasadas e em linguagem acessível para a população, além das medidas de controle sobre o poder dos que se beneficiam com a desinformação.
Características/Modalidades/Mecanismos
Por anos, a grande indústria e os bancos estiveram à frente na economia. Hoje, contudo, as grandes plataformas de comunicação social disputam esta posição. As plataformas possuem informações muito detalhadas de uma imensa parte dos cidadãos e, para atender seus interesses, as usam para estabelecer perfis e algoritmos que retroalimentam as pessoas daquilo que elas acreditam e com quem interagem. Pari passu com o interesse econômico, estas “bolhas” sociais têm sido alvo de campanhas dirigidas para uma fidelização religiosa e política. A educação midiática e a checagem de fatos são importantes, mas conseguir permear as bolhas também é muito importante, para possibilitar a chegada da informação adequada nesses espaços.
O volume e a velocidade no ambiente cibernético se somam para representar o grande desafio do enfrentamento da desinformação intencional e maliciosa. Uma característica típica da internet é a velocidade, onde não se consegue sequer construir os argumentos e circular a comprovação, pois muitas vezes a comprovação de hoje já não é o tema de amanhã. O viés da recomendação criado pelos algoritmos de funcionamento de redes sociais é um importante elemento de ação da desinformação.
A lógica do engajamento, levada à risca por engenheiros de softwares subverteu a produção do jornalismo, que por anos esteve pautada em princípios como o interesse público, a cidadania e vigilância dos poderes. A informação que circula hoje na internet não possui a lógica de accountability, da responsabilidade pelos seus atos. Embora haja uma proximidade entre os agentes do poder e a população, não há a responsabilidade legal e moral com o que se diz nas redes sociais.
A “maquinaria do boato” encontra espaço nos diversos temas da sociedade quando há falta de transparência sobre os processos pertinentes ao assunto, quando falta uma prestação de contas por parte daqueles que atuam nessa área, quando os dados não estão acessíveis (seja na linguagem ou na ferramenta) e quando aquelas informações estão sendo providas por instituições de interesses duvidosos ou por pessoas de caráter duvidoso.
Atualmente, o uso da desinformação como arma política tão expressiva é amplificado por vivermos em um cenário de crise econômica, social, e ambiental, das instituições e da democracia liberal.
A desinformação aparece e circula rapidamente pois não está limitada ao fato, não é checada previamente, não ouve lados distintos. Dessa forma, quem trabalha com desinformação tem liberdade para criar infinitas narrativas e histórias que vão cativar algumas pessoas e assustar outras. Enquanto quem trabalha com jornalismo sério e boa ciência, está restrito à sua narrativa, ao acontecimento, ao trabalho direto com as fontes.
O enfrentamento às desinformações tem que acontecer nas redes sociais para que ele chegue às pessoas e os meios precisam ser também aqueles pelos quais o público recebe o conteúdo falso, ou seja, por meio dos telefones celulares e das conversas com amigos e parentes. Será necessária também a utilização de todos os mecanismos, presentes e futuros, de comunicação de massa, ai incluída a Inteligência Artificial (IA) e suas potencialidades.
A ciência é uma forma de exploração sistemática do mundo e a sua refutação deve seguir o mesmo rigor empregado para gerar a informação. Para tal é necessário reforçar o papel dos métodos, uma vez que é a capacidade de ser reproduzida, observada e comparada que faz os achados científicos serem validados. A ciência de qualidade, com métodos apropriados, precisa ser reforçada. É preocupante a expansão de publicações sem o necessário rigor científico estimulada pela irresponsável proliferação de revistas científicas predatórias.
Enfrentamento: aspectos gerais
- Dar voz à ciência de forma ampla, na forma e no conteúdo, abordar questões humanísticas e da pesquisa de base, com um vocabulário mais acessível;
- Estimular a cobertura da realidade brasileira a partir do olhar de jornalistas negros e outros segmentos sub-representados, com conteúdo em diferentes formatos sobre assuntos variados, inserindo a informação científica neste contexto;
- Expandir e qualificar a educação midiática;
- Utilizar formas modernas de comunicação e linguagem adaptada ao público;
- Desqualificar o conteúdo do boato com informações apropriadas sobre o assunto, rapidamente e com a maior visibilidade possível. Também é necessário desqualificar as fontes que divulgam informações falsas;
Enfrentamento pela comunicação social da ciência
- Promover uma adequada capacitação dos cientistas na comunicação social da ciência, desde o período de sua formação profissional.
- Valorizar e incentivar o cientista que exerce a comunicação social da ciência. Essa valorização deve se dar na progressão de carreira, na pontuação de concursos, na obtenção de recursos para pesquisa. Ressalta-se que a Plataforma Lattes já possui área para registro destas atividades, as quais continuam sem a necessária atenção dos Comitês Assessores;
- Estimular uma comunicação científica estruturada, com transparência nos processos científicos, em que todas as etapas sejam descritas de forma clara, haja abundância dos dados e estes dados possam ser acessados e compreendidos de forma fácil.
- Empoderar instituições e cientistas como agentes qualificados para dirimir dúvidas sobre a informação e a desinformação.
- Oferecer mais oportunidade para conhecimento e discussão de ciência pela população.
Enfrentamento no ambiente acadêmico/profissional
- Qualificar e expandir a educação cientifica em escolas, mormente nas públicas, nos diversos níveis de ensino;
- Desenvolver mecanismos de identificação e controle das publicações sem o necessário rigor científico;
- Estabelecer mecanismos normativos de controle institucional para desestimular e coibir a disseminação de desinformação científica por seus profissionais e alunos;
- Estimular avaliações qualificadas para embasar políticas públicas.
Aspectos legais do enfrentamento da desinformação
- Criar marcos legais e normativos, garantida a liberdade de opinião, para o controle de conteúdo que intenciona desinformar;
- Manter a defesa da liberdade de expressão pela criação de mecanismos que busquem garantir liberdade ao usuário e assegurar às plataformas o direito de moderar o conteúdo, quando a informação for potencialmente enganosa, ou que pode gerar danos;
- Estabelecer regras de transparência nos mecanismos das redes sociais e outros canais de comunicação, na medida em que os algoritmos precisam ser descritos e divulgados de forma clara para toda a sociedade;
- Regrar a responsabilização sobre as palavras e ações das autoridades, dos agentes públicos e de figuras públicas.
A necessidade de enfrentar a desinformação é urgente e deve ser executada por várias instituições, públicas e privadas, envolvidas com a ciência e que apoiam o regime democrático, e promovam a redução das desigualdades sociais e da iniquidade.
Evidentemente, este documento não contém um levantamento aprofundado das origens, mecanismos e ações dos agentes desinformadores, mas faz um panorama realista de como ele opera no Brasil e dos riscos que representa. No mesmo passo, as reflexões sobre ações a serem desenvolvidas não se constituem num vade mecum a ser seguido inflexivelmente, mas exemplificam várias ações muito necessárias e indica instituições cuja ação é fundamental para mitigar os danos atuais e prevenir as ações futuras da desinformação.
*Manoel Barral-Netto é presidente da Academia de Ciências da Bahia (ACB)
Carlos Vogt é diretor-presidente da Fundação Conrado Wessel
O projeto ENFRENTA realizou uma série de seis webinários tratando de diversos aspectos do tema. De cada webinário foi produzido um relatório executivo. O último encontro de 2023, que é promovido pelo Departamento de Ciência e Tecnologia da Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Complexo da Saúde do Ministério da Saúde (Decit/SECTICS/MS), é o Seminário sobre Enfrentamento e Prevenção à Desinformação Científica em Saúde e Ambiente, que se realiza nesta quinta-feira 14 de dezembro, na Fiocruz Brasília.
O ENFRENTA teve apoio de diversos colegas como moderadores e palestrantes no webinários e é com base nas suas reflexões que este texto foi elaborado. Também recebeu importante apoio de instituições preocupadas com o tema, como a Secretaria de Ciência e Tecnologia e Insumos Estratégicos do Ministério da Saúde através do Departamento de Ciência e Tecnologia (DECIT), da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente (SVSA) também do Ministério da Saúde; da Secretaria de Comunicação da Presidência; da Câmara dos Deputados, de Universidades, e citamos as Universidades Federais da Bahia, de Minas Gerais, do Rio de Janeiro, do Ceará e de Brasília, entre outras, e da USP; de Fundações Estaduais de Apoio à Pesquisa, como a FAPESP, a FAPERJ e a FAPESB; além do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Democracia – INCT da Democracia, do Labjor da UNICAMP; do Projeto Comprova e de instituições privadas, como o Instituto Serrapilheira, o Instituto Ciência na Rua, Instituto Sou_Ciência e a Agência Bori.
Agradecimentos:
Este texto se louva da contribuição de colegas que elaboraram os relatórios ou participaram dos webinários do projeto ENFRENTA, nomeadamente, Evelina Hoisel, Karina Costa, Wilson Lopes, Leonardo Avritzer, João Brant, Ethel Maciel, Orlando Silva, Ana Caetano Faria, Marisa von Bullow, Helena Martins, Sergio Ludtke, Soraya Smaili, Renato Janine Ribeiro, Ana Valéria M. Mendonça, Debora Salles, Herton Escobar, Luisa Massarani, Pedro Arantes, Marco Antonio Zago, Hugo Aguilaniu, José Roberto Drugowich, Mariluce Moura, Wilson Gomes, Natasha Felizi, Marcia Correa e Castro, Sabine Righetti, Jerson Lima.
Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
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