Muitas intenções e poucas realizações na área da energia no atual governo
Como todo início de novo governo, o ano de 2023 foi marcado por novas políticas e debates diversos: margem equatorial; renovação de concessões; apagão; Programa Gás para Empregar; PL combustível do futuro; preço dos combustíveis; o papel das energias renováveis; geração térmica e outros
Por Adriano Pires*
Como todo início de novo governo, o ano de 2023 foi marcado por novas políticas e debates diversos: margem equatorial; renovação de concessões; apagão; Programa Gás para Empregar; PL combustível do futuro; preço dos combustíveis; o papel das energias renováveis; geração térmica e outros. São apenas alguns exemplos de temas que permearam as discussões no setor energético. Para que possamos abordar cada um dos assuntos de forma adequada, o texto será dividido em três áreas temáticas: setor elétrico; óleo e gás; e renováveis/biocombustíveis.
Setor elétrico
No setor elétrico, o impacto das adversidades climáticas e das mudanças tecnológicas sobre as atividades do setor foi o principal assunto. Além dos desafios do clima, 2023 herdou uma grande discussão de 2022 sobre a renovação das concessões de distribuição de energia elétrica. A definição dos termos da renovação das concessões, cujo prazo inicial era 2022, foi prorrogado para 2023 e vai acabar ficando para 2024, deixando muitas incertezas para as 21 distribuidoras de energia que têm contratos de concessão a expirar entre 2025 e 2031.
Objetivando direcionar a questão, em setembro, o Ministério de Minas e Energia (MME) encaminhou a Nota Técnica nº 19/2023/SAER/SE ao Tribunal de Contas da União (TCU). O documento continha as diretrizes para a renovação das concessões de distribuição resultantes dos processos de audiência e consulta públicas promovidos para a discussão do assunto.
As diretrizes trazidas pela nota técnica do MME ao TCU precisam ser aprofundadas, inclusive, com a participação do Congresso. Essa é a forma de garantir ao segmento de distribuição e, por consequência, ao setor elétrico, o fundamento jurídico e a base regulatória, capazes de trazer segurança às próprias resoluções da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL), trazendo benefícios tanto para concessionárias quanto para consumidores.
No início de novembro, a elevação da temperatura em níveis históricos resultou em dois recordes consecutivos de demanda instantânea no Sistema Interligado Nacional (SIN).
O indicador superou o patamar dos 100 mil megawatts (MW), em razão do maior uso de ar-condicionado e afins. Foi em meio à alta temperatura e consumo que a Enel teve sérios problemas de fornecimento em suas áreas de concessão, situadas nos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. As tempestades e a onda de calor mostraram a importância das usinas térmicas para o atendimento da ponta do sistema elétrico, evitando apagões, e da necessidade de rever os contratos de concessão das distribuidoras em função das mudanças climáticas e tecnológicas. Deve-se considerar que as distribuidoras perderam muito mercado para o mercado livre e para a geração distribuída solar.
Em 15 de agosto, ocorreu um outro evento, o corte de 18.900 MW do SIN, que impactou 25 estados e o Distrito Federal. Segundo o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), a ocorrência foi causada pela atuação de mecanismos de proteção sistêmicos do SIN. A ferramenta de defesa do sistema teria sido acionada após a abertura, sem explicação, da Linha de Transmissão de 500 quilovolts (kV) Quixadá-Fortaleza II, localizada no Ceará, e de propriedade de Chesf, subsidiária da Eletrobras. Esse evento ilustrou o problema da expansão da participação das fontes renováveis, como a eólica e a solar, na matriz elétrica, sem a contrapartida da geração térmica, que garante a segurança do sistema.
O leilão de linhas de transmissão da ANEEL, realizado em junho de 2023, é outro exemplo do impacto da expansão das renováveis sobre o planejamento do setor. Com o objetivo de viabilizar o escoamento da energia renovável gerada na região Nordeste para os centros de consumo no Sudeste, o certame foi o maior do seu tipo já realizado pela ANEEL e viabilizou um volume recorde de investimentos previstos para o setor elétrico, R$ 15,7 bilhões. Ao todo, os trechos arrematados compõem a construção, operação e manutenção de 33 empreendimentos que totalizam 6.184 quilômetros de linhas de transmissão e subestações com capacidade de transformação de 400 megavolt-ampéres (MVA).
Ainda neste ano, o setor elétrico brasileiro teve uma crise hídrica localizada na Região Norte, a detentora do maior potencial hidroelétrico do país. O primeiro sinal de alerta veio com a interrupção excepcional da operação na Usina Hidrelétrica Santo Antônio (UHE Santo Antônio), em razão dos baixos níveis de vazão registrados no rio Madeira, em Rondônia. A UHE opera a fio d’água, ou seja, sem reservatório. Diante da situação, o ONS foi obrigado a despachar Usinas Termoelétricas (UTEs), inclusive a óleo diesel, mais caras e poluentes, de forma a garantir o fornecimento de eletricidade.
Outra mudança significativa para o setor elétrico, nesse primeiro ano de governo, está relacionada à aprovação da reforma tributária. No setor elétrico, a principal demanda é a manutenção do status de essencialidade da eletricidade, um enquadramento conquistado recentemente, em 2022, que limita a incidência de tributos sobre o bem ou serviço.
Por fim, uma série de mudanças, que seriam propostas por novos Projetos de Lei (PLs) ou Medidas Provisórias (MPs), ainda não foram enviadas ao Congresso. As principais seriam a extensão por 36 meses do desconto na tarifa de transmissão para a energia eólica e solar, o que a nosso ver é um absurdo e não faz mais nenhum sentido. Além disso temos a discussão sobre a mudança na Lei da Eletrobras, no que se refere aos 8 GW de térmicas a gás natural, e ainda se falou muito em uma possível MP das tarifas.
Setor de Óleo e Gás
No setor de óleo e gás, as mudanças estão muito ligadas ao papel da Petrobras no novo governo. Enquanto nas gestões Temer e Bolsonaro a Petrobras foi tratada como uma empresa mais independente e preocupada com os acionistas, o governo do PT volta com uma política mais intervencionista, colocando a empresa, novamente, como um instrumento de política econômica. Nesse sentido, para que pudesse nomear a diretoria e o Conselho da companhia, atendendo a esses objetivos, foi necessário promover mudanças na Lei das Estatais. A alteração veio através de uma liminar dada pelo então ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, que suspendeu a Lei das Estatais.
A nova diretoria da Petrobras, atendendo ao prometido pelo presidente Lula durante a campanha presidencial, abandonou a Política de Preços baseada na Paridade de Importação (PPI), adotando uma nova estratégia comercial para os preços da gasolina e do diesel produzidos nas refinarias da petroleira. Segundo a empresa, a nova estratégia segue duas referências: (a) o custo alternativo do cliente, como valor a ser priorizado na precificação; e (b) o valor marginal para a Petrobras. O valor exato e as variáveis envolvidas não foram explicitadas pela companhia. A falta de clareza torna, então, cada vez mais difícil prever reajustes futuros.
Outra mudança importante foi a revogação da Resolução CNPE nº 9/2019, que estabelecia as diretrizes do processo de venda dos ativos de refino no país. Com isso, a empresa põe fim ao seu programa de desinvestimento não só de refinarias. Também, são suspensas todas as vendas de ativos de upstream, em particular, campos em terra.
O novo plano estratégico da Petrobras para o período 2024/2028 traz um volume de investimentos de US$ 102 bilhões. O segmento de Exploração e Produção (E&P) continua sendo o maior percentual de investimento da empresa. A novidade é a volta de investimentos significativos em refino, fertilizantes e energias renováveis e redução no pagamento de dividendos.
Outro destaque do plano foi o anúncio do incremento de 25% dos investimentos em atividades de exploração na Margem Equatorial. As bacias do Sudeste, onde estão localizados os principais poços da empresa, receberão o mesmo investimento que a Margem Equatorial, reforçando as pretensões da petroleira em expandir a produção na região.
O debate acerca da exploração da Margem Equatorial ampliou-se quando o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) negou o pedido de exploração da área pela Petrobras. A partir de então, iniciou-se uma queda de braços para que a petroleira nacional consiga o aval para pesquisar a existência de petróleo na região. Essa discussão, contudo, não deve ser unilateral por não ser restrita unicamente à questão ambiental ou exploratória. É preciso racionalidade econômica. A exploração da área pode render recursos capazes de apoiar uma política ambiental e ainda colaborar para o desenvolvimento socioeconômico da região.
Segundo estimativas preliminares, a reserva da margem equatorial brasileira pode chegar a 30 bilhões de barris de petróleo, sendo 10 bilhões recuperáveis, volume próximo às reservas provadas do pré-sal, de 14 bilhões. Em um cenário conservador, o CBIE Advisory estima uma produção potencial de 1,1 milhão de barris por dia (b/d) no pico de produção da área, em razão do risco ambiental atribuído. Com esse volume, a arrecadação nacional de Royalties poderia ter a adição de R$ 3,4 bilhões ao mês ou, considerando que a produção da nova área se assemelhe ao observado no pré-sal atualmente, de R$ 7,8 bilhões mensais. O presidente do Ibama, Rodrigo Agostinho, declarou que a resposta à Petrobras sobre o tema virá no início de 2024.
Estímulo à promoção do gás natural
Na área do gás natural, o projeto mais significativo do ano foi o lançamento do Programa Gás para Empregar. Nas palavras do ministro de Minas e Energia, “é um programa que visa ao processo de reindustrialização nacional através do gás, não só o gás do pré-sal, mas de todas as petroleiras”. O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, também apontou para a necessidade da promoção de medidas que estimulem o gás natural, considerado por ele como insumo essencial para a garantia de segurança energética e desenvolvimento industrial nacional.
Dentre os objetivos do programa estão listados: (i) o aumento da oferta de gás natural da União ao mercado doméstico; (ii) o melhor aproveitamento e retorno, tanto social quanto econômico, da produção de gás natural, priorizando a redução dos volumes de reinjeção; (iii) a maior disponibilidade do hidrocarboneto para a produção nacional de fertilizantes hidrogenados, produtos petroquímicos e outros setores produtivos; e (iv) a incorporação do gás natural à estratégia nacional de transição energética.
O CNPE também destacou quatro medidas que poderão ser implementadas, a fim de alcançar os objetivos elencados. Dentre as medidas, o maior destaque foi dado à implementação do reconhecimento como custo em óleo, pela Empresa Brasileira de Administração de Petróleo e Gás Natural S.A. – Pré-Sal Petróleo S.A. (PPSA), do desenvolvimento de infraestrutura essencial. A medida englobaria o acesso, construção, operação e manutenção de unidades de escoamento e processo do gás natural dos contratos de partilha de produção. Programas como o Gás para Empregar, que promovem a redução dos obstáculos físicos e regulatórios, são um ponto chave para que o combustível se torne um dos alicerces da indústria nacional.
A perspectiva da indústria de O&G sobre a reforma tributária tem como prioridade a reformulação do Repetro, o regime aduaneiro especial de exportação e de importação de bens destinados às atividades de pesquisa e de lavra das jazidas de petróleo e gás natural, estabelecido originalmente nos termos do Artigo 458, do Decreto nº 6.759/2009.
O Repetro, do segmento de O&G, passa por uma lógica similar ao do REIDI, no setor elétrico. O regime, embora não seja uma desoneração, desempenha um papel crucial no avanço da exploração e produção de petróleo e gás no Brasil. De acordo com projeção apresentada pelo Instituo Brasileiro de Petróleo (IBP), durante os próximos 10 anos, o Repetro deve garantir investimentos, empregos e arrecadação de tributos no setor, totalizando projetos no valor de US$ 180 bilhões e gerando mais de 445 mil postos de trabalho diretos e indiretos anualmente. Ademais, a manutenção do regime está alinhada com uma pauta que está no cerne da reforma tributária, que é a desoneração dos investimentos.
Além do Repetro, também, existe uma preocupação associada à possibilidade de estados e o Distrito Federal determinarem uma contribuição sobre produtos primários produzidos em seus territórios. Isso poderia afetar a competitividade e a atratividade de investimentos na indústria de O&G, que já enfrenta uma alta carga tributária de cerca de 70%, segundo o IBP. Nesse sentido, é importante ressaltar que o segmento é um grande arrecadador para o Estado, tendo pagado aproximadamente R$ 690 bilhões somente em participações governamentais para a União, Estados, Municípios e Fundo Especial, entre 2010 e 2022. Ou seja, ainda sem considerar a cobrança de tributos sobre o consumo, o segmento já apresenta uma contribuição expressiva para a receita de diversas competências governamentais.
Outra ressalva feita por alguns membros do setor de energia como um todo é a falta de esclarecimento quanto à aplicação do IS. A princípio, o objetivo do tributo é onerar bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente, no entanto, essa definição “aberta” abre espaço para diferentes interpretações e aplicações. Apesar de o setor de energia não apresentar um volume de emissões expressivo quando comparado ao uso de terra e agropecuária no Brasil, há de se considerar o possível impacto de sobretaxar os combustíveis fósseis, seja qual for sua finalidade.
Renováveis/Biocombustíveis
No setor dos bicombustíveis o destaque do ano foi a apresentação, em setembro, do PL do “Combustível do Futuro”. O Projeto de Lei reúne uma série de medidas que tem como objetivo comum a descarbonização da matriz de transportes, a reindustrialização do país e o incremento da eficiência energética da frota de veículos nacional. A norma agrega seis iniciativas que devem mudar o terreno do setor energético no Brasil, sendo cada uma delas referente a um eixo temático, que são:
- O Programa Nacional de Combustível Sustentável de Aviação – PROBIOQAV; que propõe o estabelecimento de um percentual mínimo de mistura de BioQAV ao QAV tradicional, começando com 1% em 2027 e alcançando 10% em 2037;
- O aumento de 27% para 30% o percentual máximo de etanol na gasolina C;
- A reunião de iniciativas de políticas de mobilidade e biocombustíveis, integrando as medidas adotadas no âmbito do RenovaBio, do Programa Rota 2030 e do Programa Brasileiro de Etiquetagem – PBE Veicular, utilizando a metodologia do ciclo de vida do poço à roda;
- O Programa Nacional do Diesel Verde – PNDV, que objetiva a redução da dependência do diesel importado e colocar o biocombustível como uma alternativa de adição na mistura obrigatória do diesel comercial;
- A regulamentação da atividade de Captura e Estocagem de Carbono em território nacional;
- A regulamentação e fiscalização da atividade de produção e comercialização de combustíveis sintéticos.
- Outros avanços foram alcançados em termos de pesquisa e desenvolvimento no segmento, especialmente no que diz respeito à comercialização e produção de biometano, que deveria estar no texto original do “Combustível do Futuro”.
Quando se fala de mudanças concretas, a mais importante seria, sem sombra de dúvidas, a retomada da evolução dos mandatos de mistura do biodiesel. Em 2021 e 2022, quando os preços dos combustíveis estavam pressionados pela alta no mercado internacional, o Governo Federal havia decidido pela manutenção da mistura obrigatória em 10%, interrompendo as alterações previstas para o período. Em abril deste ano, o percentual foi ajustado para 12% e o calendário para futuras alterações também foi acertado. A previsão é de que a mistura chegue a 15% em abril de 2026, com aumento de 1 ponto percentual por ano.
O primeiro ano do governo Lula no setor de energia foi um pouco frustrante, na medida que que existiram mais intenções do que realizações.
*Adriano Pires é diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE)
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
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