A China por todos os lados
Foco de Pequim tem sido transformar o país numa potência capaz de influenciar padrões, cadeias de suprimento e de valor globais, e o Brasil tem dificuldade de entender isso, fruto de uma percepção de viés ideológico anacrônico e raso
O título da matéria do The Economist que o Estadão replicou trata de um tema que todos conhecemos bem: o espraiamento espetacular da República Popular da China pelo mundo afora neste último quartel de século, inclusive na América Latina, e neste caso, com foco sobretudo na América do Sul.
Segundo a matéria, um dos projetos principais recentes é um grande porto em Chancay, no Peru, no qual a Cosco, maior empresa de transporte marítimo chinesa, vai investir em parceria com uma empresa peruana, cerca de US$ 1,3 bilhão, para o desenvolvimento da infraestrutura portuária. Por ali, devem ser escoados rumo à Ásia desde materiais para a transição energética, como o lítio, a alimentos e produtos industrializados. O objetivo é óbvio: encurtar em um terço o tempo médio que os produtos da região levam para chegar ao Oriente.
A matéria anota ainda que um dos objetivos paralelos é manter a região, sobretudo a América do Sul, como um dos vetores para o incremento do seu comércio mundial, que cresceu, na região, de US$ 18 bilhões, em 2002, para US$ 450 bilhões, em 2022! Desta forma, a RPC já superou os EUA como o principal parceiro comercial de Brasil, Chile, Peru, entre outros países. Só no Peru os chineses investiram cerca de US$ 24 bilhões nos setores de mineração, energia e transportes. Entretanto, no caso da América Central e do México, a sua presença sofre a concorrência da política do nearshoring americano.
Segundo The Economist, este projeto vai mais além dos aspectos comerciais propriamente ditos: seus diplomatas têm aprimorado o conhecimento de espanhol e português, por exemplo. A propósito, neste processo de acercamento foi muito relevante o papel que as vacinas chinesas desempenharam durante a crise da Covid-19, como recordamos.
Segundo The Economist esta expansão alarma pessoas como Marco Rubio, notório senador republicano que faz parte do Comitê de Relações Exteriores norte-americano. Ele afirmou que os Estados Unidos “não podem se dar ao luxo de permitir que o Partido Comunista Chinês expanda sua influência e absorva a América Latina e o Caribe em seu bloco político-econômico privado”.
É aí que, a meu ver, se insere a questão da(s) ideologia(s). Para o “Ocidente central” capitaneado pelos Estados Unidos, o mundo gira em torno de valores civilizacionais que obrigam as sociedades e os Estados a tomarem partido ideológico: os “comunistas chineses” ocupam agora o espaço dos “comunistas soviéticos” contra as “democracias ocidentais”, só que em tempos e contextos diferentes.
Já os chineses primam pelo pragmatismo. Na verdade, está sendo muito complexa a aceitação pelo Ocidente de que a dinâmica do mundo mudou e que é necessário convivermos com paradigmas novos e distintos nas relações internacionais: a Ásia tornou-se fator decisivo na economia/política globalizada, e sua presença, crescente e irreversível, instiga sentimentos ambíguos: de um lado, respeito pelo despertar de um gigante de História muito antiga e, de outro, temor das consequências que este protagonismo crescente possa causar. Mais que tudo, evidencia o nosso despreparo para lidar com esta realidade.
Um destes paradigmas estratificados são os fatores ideológicos no processo de acercamento dos “comunistas”. Não notei nestes anos todos de convívio com os temas chineses qualquer empenho de Pequim em “converter” os brasileiros, ou quem quer que seja, ao seu ideário, até porque desde as reformas de Deng Xiaoping, no final da década de 70 do século passado, o maoísmo hard foi-se desconstruindo e se transformando num “experimentalismo” que eles mesmos passaram a chamar de “socialismo com características chinesas”, ou seja, um “vale tudo” monitorado que levou a República Popular a ganhar a passos largos seu espaço na economia e comércio internacionais, sobretudo após a sua entrada na Organização Mundial do Comércio, em dezembro de 2001. Fruto disto, a China é o país que conta com o maior número de bilionários (comunistas???) do planeta!
O foco do governo central tem sido aggiornar o perfil do país desde quando o XIV Plano Quinquenal da China estabeleceu, em 2015, um conjunto de metas destinadas a fortalecer a economia e definiu no plano Made in China 2025 os dez setores de tecnologia de ponta que atualizarão, consolidarão e alavancarão a sua indústria, transformando-a numa potência capaz de influenciar padrões, cadeias de suprimento e de valor globais: a tecnologia 5G e os automóveis elétricos BYD são apenas alguns exemplos deste novo “status quo”. Seria esta, em definitivo, a “ameaça” escondida atrás da retórica anti-comunista chinesa?..
Que nós, brasileiros, não estamos entendendo bem, fruto de uma percepção de viés ideológico anacrônico e raso.
No mundo que se está conformando não há, a meu ver, espaço para esta espécie de antagonismo que nos ata ao oceano Atlântico e nos isola do Pacífico, onde, a meu ver, mora o futuro. Isto me leva a refletir sobre os meus primeiros anos no Itamaraty, na década de 1970, quando o nosso mais brilhante Chanceler, Antonio Azeredo da Silveira, cunhou a política do “pragmatismo responsável”: trocando em miúdos, a mesma de Deng Xiaoping quando abriu a economia da China para o mundo: “não importa se o gato é negro ou branco, desde que cace ratos”. São os nossos interesses que nos definirão.
Seria esta a posição mais lúcida?
Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.
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