A guerra contra a cultura ‘woke’ de DeSantis se parece muito com as tentativas de outros países de negar e reescrever a história
Governador da Flórida recentemente assinou uma lei que proíbe o ensino sobre o racismo na história dos Estados Unidos. Para professoras, tal atitude se assemelha muito a política adotada por democracias iliberais como Rússia, Turquia, Israel e Polônia
Governador da Flórida recentemente assinou uma lei que proíbe o ensino sobre o racismo na história dos Estados Unidos. Para professoras, tal atitude se assemelha muito a política adotada por democracias iliberais como Rússia, Turquia, Israel e Polônia
Por Rochelle Anne Davis e Eileen Kane*
Uma lei da Flórida que entrou em vigor em 1º de julho de 2023 restringe a forma como os educadores das faculdades e universidades públicas do estado podem ensinar sobre a opressão racial que os afro-americanos enfrentam nos Estados Unidos.
Especificamente, o SB 266 proíbe os professores de ensinar que o racismo sistêmico é inerente às instituições dos Estados Unidos. Da mesma forma, eles não podem ensinar que ele foi projetado para manter as desigualdades sociais, políticas e econômicas.
Somos professoras que ensinam a história moderna do Oriente Médio e da Europa Oriental e sabemos que até mesmo governos democraticamente eleitos suprimem as histórias de suas próprias nações que não se encaixam em sua ideologia. O objetivo, muitas vezes, é abafar um passado vergonhoso, classificando aqueles que falam sobre ele como antipatriotas. Outro objetivo é alimentar tanto medo e raiva que os cidadãos aceitem a censura do Estado.
Vemos isso acontecendo na Flórida, com o SB 266 sendo o exemplo mais extremo em uma série de projetos de lei estaduais recentes dos EUA que os críticos chamam de “ordens de mordaça educacional”. As táticas que o governador Ron DeSantis está usando para censurar o ensino da história americana na Flórida se parecem muito com aquelas vistas nas democracias iliberais de Israel, Turquia, Rússia e Polônia.
Aqui estão quatro maneiras em que o SB 266 se relaciona com as tentativas usadas pelos governos modernos para censurar a história.
1. Inventar uma ameaça
Uma estratégia que DeSantis compartilha com outros líderes mundiais é a de inventar uma ameaça que desperte ansiedades e, em seguida, declarar guerra contra ela.
Na Rússia, o presidente Vladimir Putin está travando uma guerra brutal contra a Ucrânia em nome da “desnazificação” do país. Essa alegação de que a Ucrânia é um bastião nazista é uma invenção. No entanto, ela estimula o medo e o ódio aos nazistas, cuja invasão da URSS em 1941 causou a morte de 27 milhões de soviéticos.
Na Turquia, o presidente Recep Tayyip Erdoğan rotula os críticos da violência estatal de “terroristas”. Mais de 146 acadêmicos turcos que assinaram uma petição de paz em 2016 condenando a violência da Turquia contra seus cidadãos curdos foram julgados por “espalhar propaganda terrorista”. Dez foram condenados e cumpriram pena de prisão antes que o Tribunal Constitucional da Turquia, em uma decisão de 9 a 8 em 2019, anulasse suas condenações devido à violação de sua liberdade de expressão.
Na Flórida, a ameaça fantasma é o wokeness, uma referência a um termo que o movimento Black Lives Matter tornou popular. Stay woke significa ter consciência de si mesmo e estar comprometido com a justiça racial. Os republicanos cooptaram o termo e o usam sarcasticamente para denegrir ideias progressistas e abafar as discussões sobre os motivos das grandes desigualdades raciais dos Estados Unidos.
2. Criminalizar discussões históricas
Uma vez que uma falsa ameaça tenha sido criada, os líderes mundiais podem usá-la para criar novas leis para criminalizar o discurso e as discussões críticas sobre a história.
Na Rússia, Putin usa as chamadas “leis da memória” para, entre outras coisas, impedir o conhecimento sobre a escala de crimes cometidos pelo ex-líder soviético Joseph Stálin contra o povo do país entre as décadas de 1930 e 1950. E em 2018, a liderança de direita da Polônia acrescentou uma emenda a uma de suas próprias leis da memória para defender o “bom nome” da Polônia e do povo polonês contra acusações de cumplicidade no Holocausto. Os historiadores que desafiaram essa ordem de mordaça sofreram assédio e ameaças de morte.
Da mesma forma, o governo turco tem uma lei contra “denegrir a nação turca” que torna crime o reconhecimento do genocídio armênio do início do século XX.
O expurgo turco de seus intelectuais resultou na demissão de mais de 6.000 instrutores universitários em um esforço para silenciar o ensino crítico sobre o passado e o presente da nação.
O SB 266, por sua vez, exige que os cursos de educação geral “forneçam instruções sobre o contexto histórico e a base filosófica da civilização ocidental e os documentos históricos desta nação”. Também proíbe que os cursos básicos de educação geral “ensinem determinados tópicos ou apresentem informações de maneiras específicas”.
A imprecisão é deliberada. Ensinar praticamente qualquer coisa relacionada à história do racismo nos Estados Unidos, especialmente no que se refere às desigualdades raciais no presente, poderia ser considerado uma violação da SB 266. Os professores da Flórida podem se abster, por exemplo, de ensinar que as leis Jim Crow foram criadas para negar direitos iguais aos afro-americanos. Essas são as mesmas leis que Hitler usou como modelo para as Leis de Nuremberg, que privaram os cidadãos judeus da Alemanha dos direitos civis.
3. Punir os transgressores
Com leis em vigor que criminalizam interpretações dissidentes da história, os governos podem punir aqueles que as violam. A punição pode envolver ameaças de prisão e encarceramento de indivíduos, bem como a retirada do financiamento de instituições.
Por exemplo, em 2011, Israel promulgou a Lei Nakba, que autoriza o ministro das finanças a cortar o financiamento de instituições que comemoram ou reconhecem o que os palestinos chamam de Nakba – ou “catástrofe” em árabe. A Nakba é o deslocamento de mais da metade da população palestina indígena e a destruição de suas comunidades que aconteceu por conta da criação do Estado de Israel em 1948.
Da mesma forma, a SB 266 desmerece os esforços de diversidade, equidade e inclusão em faculdades e universidades públicas e dá poder aos administradores e conselhos escolares para tomar medidas contra aqueles que desafiam as regras. Essa lei vem na esteira da Lei Stop WOKE de 2022 da Flórida, que restringiu as discussões sobre raça nas escolas de ensino fundamental e médio e levou os professores a retirarem de suas salas de aula os livros que, segundo eles, poderiam resultar em uma sentença de cinco anos de prisão.
4. Escrever uma nova história
Com os eventos históricos reais negados ou suprimidos, os governos podem reescrever a história para monopolizar ainda mais a verdade e impor as suas ideologias. A Rússia oferece o exemplo mais flagrante disso.
Em 2021, Putin publicou um artigo de 20 páginas intitulado On the Historical Unity of the Russians and Ukrainians , no qual ele argumentava que os povos ucranianos e russos eram a mesma coisa. Críticos alarmados viram isso, com razão, como uma justificativa preventiva à escalada de sua guerra contra a Ucrânia, a qual ele concretizou com uma invasão em grande escala ao país em fevereiro de 2022.
Assim como os ideólogos de direita em outras partes do mundo, DeSantis afirma estar defendendo a história dos EUA de falsidades promovidas por ideólogos. Em suas tentativas de reescrever a história, os apelos por um acerto de contas com a história de anti-negritude dos Estados Unidos são ridicularizados como doutrinação, e o fanatismo é reempacotado como patriotismo.
Se a maneira como os governos estão reescrevendo a história em outras partes do mundo servir de guia, a legislação de DeSantis e de outros estados pode ser o prelúdio de um ataque ainda maior à história precisa e à liberdade de pensamento.
*Rochelle Anne Davis é professora de antropologia política na Georgetown University
Eileen Kane é professora de história no Connecticut College
Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em inglês.
Tradução de Letícia Miranda
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
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