A guerra fria pelo Canal do Panamá
A passagem marítima, tornou-se um campo de batalha estratégico entre duas potências globais que disputam a primazia sobre o comércio internacional, e reflete um embate muito mais amplo, que se estende para além do comércio e da infraestrutura e alcança setores como tecnologia, energia e segurança

A disputa geopolítica entre Estados Unidos e China pelo controle e influência sobre o Canal do Panamá é um reflexo das tensões cada vez mais evidentes entre as duas potências.
A relevância do canal remonta à sua construção, iniciada pelos franceses no final do século XIX e finalizada pelos americanos em 1914, consolidando o Panamá como um território de fundamental importância para os interesses estratégicos dos Estados Unidos. A obra, um dos maiores feitos de engenharia da época, permitiu a ligação entre os oceanos Atlântico e Pacífico sem a necessidade da longa e custosa travessia pelo Estreito de Magalhães, no extremo sul da América.
‘A influência dos Estados Unidos na região se intensificou após a conclusão do canal, quando o país passou a exercer um domínio direto sobre sua administração e segurança’
A influência dos Estados Unidos na região se intensificou após a conclusão do canal, quando o país passou a exercer um domínio direto sobre sua administração e segurança, chegando até a intervir militarmente no Panamá em diversas ocasiões para garantir a estabilidade de governos alinhados aos seus interesses.
Durante grande parte do século XX, os Estados Unidos mantiveram bases militares na região e administraram diretamente o canal até a assinatura dos Tratados Torrijos-Carter, que estabeleceram a devolução gradual da infraestrutura ao controle panamenho, concluída em 1999. Contudo, mesmo após a transferência oficial, a presença americana na região nunca deixou de existir, seja por meio de acordos de segurança ou da influência política e econômica exercida sobre o governo panamenho.
‘Estima-se que aproximadamente 5% do comércio marítimo global transite pelo canal anualmente, o que representa cerca de 3% do volume total do comércio mundial – cerca de US$ 270 bilhões em cargas anualmente’
O Canal do Panamá é uma via marítima crucial que conecta os oceanos Atlântico e Pacífico, permitindo a passagem eficiente de navios entre as duas massas de água. Estima-se que aproximadamente 5% do comércio marítimo global transite pelo canal anualmente, o que representa cerca de 3% do volume total do comércio mundial. Essa passagem é especialmente vital para os Estados Unidos, que são os maiores usuários do canal, com aproximadamente 40% do tráfego de contêineres do país passando por ele a cada ano. Além disso, em termos de valor, o canal movimenta cerca de US$ 270 bilhões em cargas anualmente.
A chegada de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos intensificou a retórica nacionalista e reforçou a posição americana sobre o Canal do Panamá como um ativo estratégico que deveria permanecer sob influência dos EUA.
‘Trump chegou a fazer declarações contundentes sobre a necessidade de retomar o controle do canal, alegando que se tratava de um legado americano e um ativo essencial para a segurança nacional dos EUA’
Durante seu governo, Trump chegou a fazer declarações contundentes sobre a necessidade de retomar o controle do canal, alegando que se tratava de um legado americano e um ativo essencial para a segurança nacional dos EUA. O presidente norte-americano indicou, em diversas ocasiões, que não descartaria medidas mais enérgicas, incluindo ações diretas para reafirmar a presença dos EUA na região. A posição de Trump se tornou ainda mais clara diante do avanço chinês no Panamá, que se intensificou nos últimos anos com investimentos em infraestrutura portuária e logística.
Nas últimas décadas, a ascensão econômica e política da China trouxe novos elementos à geopolítica do Canal do Panamá. Com um crescimento econômico acelerado e uma estratégia global de expansão comercial, Pequim começou a investir pesadamente em infraestrutura ao redor do mundo, em especial dentro do escopo da Iniciativa do Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative – BRI), que busca conectar economicamente diferentes regiões do mundo por meio de investimentos massivos em transportes e logística.
‘Em 2013, a China anunciou um ambicioso plano para construir um canal alternativo na Nicarágua, um projeto estimado em mais de US$ 50 bilhões’
Foi nesse contexto que empresas chinesas de Hong Kong passaram a atuar na administração de portos na entrada e na saída do Canal do Panamá, uma movimentação vista com preocupação pelos Estados Unidos. O interesse chinês na América Central não se limitou ao Panamá. Em 2013, a China anunciou um ambicioso plano para construir um canal alternativo na Nicarágua, um projeto estimado em mais de US$ 50 bilhões. O objetivo era criar uma nova rota interoceânica sob controle direto de Pequim, reduzindo a dependência do Canal do Panamá, historicamente vinculado à influência norte-americana. No entanto, a forte pressão diplomática e econômica exercida pelos Estados Unidos inviabilizou o projeto, e a iniciativa foi progressivamente abandonada. O fracasso do canal nicaraguense levou a China a intensificar seus esforços para consolidar sua presença no Panamá.
Mais recentemente, a disputa entre Estados Unidos e China pelo controle logístico na região ganhou novos contornos com a tentativa da BlackRock, a maior gestora de ativos do mundo, de adquirir ativos portuários no Panamá por US$ 23 bilhões. A proposta foi rapidamente vetada pelo Comitê de Revisão de Segurança Nacional da China, sob a justificativa de riscos à infraestrutura estratégica do país.
‘O bloqueio da aquisição pela BlackRock demonstra claramente a importância do Panamá para os interesses estratégicos de Pequim e como o país tem utilizado sua influência para impedir que empresas americanas fortaleçam sua presença na região’
O bloqueio da aquisição demonstra claramente a importância do Panamá para os interesses estratégicos de Pequim e como o país tem utilizado sua influência para impedir que empresas americanas fortaleçam sua presença na região. Atualmente, a empresa Hong Kong Hutchison Ports controla os portos de Balboa e Cristóbal, localizados nas entradas do canal pelos oceanos Pacífico e Atlântico, através da sua subsidiária Panama Ports Company.
A tentativa de aquisição por parte da BlackRock foi vista como uma manobra estratégica dos EUA para reverter a influência chinesa na região, mas a recusa de Pequim reforça a determinação da China em manter seu domínio sobre essa infraestrutura crucial.
Essa disputa reflete um embate muito mais amplo entre as duas maiores economias do mundo, que se estende para além do comércio e da infraestrutura e alcança setores como tecnologia, energia e segurança.
‘A dependência crescente da América Latina dos investimentos chineses representa um desafio significativo para Washington, que luta para manter sua influência sobre um continente historicamente considerado sua área de influência natural’
Os Estados Unidos, ao perceberem o avanço chinês na América Latina, intensificaram seus esforços para conter essa expansão, reforçando alianças com governos locais e utilizando mecanismos financeiros e diplomáticos para limitar a presença chinesa. No entanto, a dependência crescente da América Latina dos investimentos chineses representa um desafio significativo para Washington, que luta para manter sua influência sobre um continente historicamente considerado sua área de influência natural.
O Canal do Panamá, mais do que uma simples passagem marítima, tornou-se um campo de batalha estratégico entre duas potências globais que disputam a primazia sobre o comércio internacional.
A China, ao impedir que a BlackRock adquirisse os portos panamenhos, deixou claro que não abrirá mão da influência que conquistou na região nos últimos anos. Por outro lado, os Estados Unidos, especialmente sob a influência de figuras como Donald Trump, continuarão a buscar formas de retomar o controle sobre esse território estratégico, seja por meio de iniciativas econômicas, alianças políticas ou mesmo uma presença militar renovada.
O desenrolar desse embate definirá não apenas o futuro do canal, mas também o equilíbrio de forças na geopolítica global nas próximas décadas.
Economista pela PUC-Rio e Mestre em Relações Internacionais e em Administração Pública pela Universidade Columbia, em Nova York. Atua nas áreas de resolução de conflitos,gestão de projetos de infraestrutura para PPPs, licitações e concessões, bem como em análise política, economia e dados, para os setores público e privado, no Brasil e no exterior.
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