A política externa brasileira e a Iniciativa Cinturão e Rota liderada pela China
A relutância em assinar um memorando revela uma forte preferência pela autonomia da política externa brasileira na definição de acordos, pois o Brasil pode negociar com a China defendendo seus interesses. Para professor, o principal desafio do país é definir seus objetivos e como a parceria poderia contribuir para o desenvolvimento nacional
A China lançou a Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) em 2013, como um conjunto de investimentos e projetos de infraestrutura de grande escala destinados a melhorar a conectividade e a integração regional entre a Ásia, a África e a Europa. Posteriormente, a ICR ganhou um alcance mais amplo: o convite formal às nações latino-americanas veio em 2018, com promessas de novos investimentos, maior crescimento e desenvolvimento econômico. Apesar de uma assinatura formal não ser necessária para fazer parte da ICR, 21 países da América Latina assinaram memorandos relacionados aos compromissos gerais da iniciativa desde 2018.
A relação Brasil-China se fortaleceu rapidamente nas últimas duas décadas e poderíamos esperar que o país participasse oficialmente da ICR. Contrariando as expectativas, o Brasil optou por não se envolver oficialmente na iniciativa. Havia expectativas iniciais de que uma participação na ICR levaria à expansão do comércio e ao reforço da cooperação econômica entre os dois países. Do lado da China, as autoridades chinesas enfatizaram os benefícios da participação da ICR, tais como a possível ampliação do comércio, da cooperação em tecnologias emergentes e do desenvolvimento sustentável. No entanto, muitas destas oportunidades já estavam em curso, independentemente da participação formal da ICR.
Daí deriva a principal razão para o Brasil não participar oficialmente da ICR: as dúvidas sobre os benefícios econômicos concretos da iniciativa para o Brasil e a necessidade de buscar propostas que se alinhem com os interesses brasileiros em áreas como mobilidade urbana, energia renovável, infraestrutura e comunicações. A percepção na diplomacia brasileira era de que a ICR poderia ser benéfica para o Brasil, se houvesse vantagens claras para ambos os lados. Desse modo, houve uma defesa de que o Brasil não pode ser um mero receptor de investimentos chineses. A ICR deveria complementar os objetivos de desenvolvimento brasileiros e não servir simplesmente os interesses da China.
Apesar da percepção geral de que as relações Brasil – Estados Unidos poderiam ser afetadas por um acordo da ICR, identificamos que a pressão externa dos EUA existe, mas não é o principal fator na decisão do Brasil de não participar oficialmente da ICR. Por enquanto, a pressão dos EUA para fazer recuar a ICR na América Latina é formulada de uma forma que a retórica não se concentra na iniciativa em si, uma vez que é difícil argumentar contra investimentos numa região carente de capital. A narrativa dos EUA gira em torno da ameaça que a influência da China pode representar para o futuro geopolítico e geoeconômico da América Latina no longo prazo.
Por mais que a diplomacia seja uma política orientada pelos interesses do Estado, a orientação política de governos pode influenciar fortemente o processo de tomada de decisão. Havia um entendimento geral quando Jair Bolsonaro assumiu o poder, de que não era o momento certo para realizar este debate. Após a eleição de Bolsonaro, foram realizadas muitas declarações – muitas vezes xenófobas – contra a China por parte de ministros de Estado e do próprio presidente da República, e não fazia sentido discutir a adesão à ICR neste contexto.
No entanto, estas declarações negativas não prejudicaram as relações Brasil-China no longo prazo. A China estava muito mais preocupada com a sua relação com os EUA na época do que com as declarações de Bolsonaro e seus ministros. A percepção era que Pequim estava descontente com as declarações, mas a China entendia os ataques de Bolsonaro como uma característica da democracia brasileira, e algo temporário, adotando uma “paciência estratégica” para proteger seus interesses nas relações Brasil-China.
Sob Bolsonaro, o avanço de um acordo da ICR tornou-se mais difícil, mas ele não foi o único fator decisivo na relutância do Brasil em assinar um memorando. Antes de Bolsonaro já havia ceticismo na diplomacia brasileira em relação à ICR. A decisão de não se envolver oficialmente na ICR foi solidificada depois que as negociações dentro do governo brasileiro sobre o convite chinês não conseguiram esclarecer se novos elementos seriam acrescentados às relações Brasil-China em um possível acordo. A iniciativa permaneceu muito retórica. Após a recusa do Ministério das Relações Exteriores e o entendimento de que não havia espaço para discussão, a ICR foi apenas brevemente discutida no Ministério da Infraestrutura e no Ministério da Agricultura. No entanto, nenhum avanço foi feito.
De todo modo, cabe questionar o que distingue o Brasil de outros países em desenvolvimento que buscaram assinar acordos relacionados à ICR. A ICR é vista no Brasil como uma proposta vaga, sem vantagens claras para a relação econômica e diplomática bem estabelecida entre Brasil e China. O tamanho do Estado e da economia do Brasil lhe conferem maior independência na tomada de decisões do que em outras nações em desenvolvimento. Países menores ou mais endividados são mais dependentes da China, mas o investimento chinês não pode facilmente ignorar o tamanho do mercado brasileiro, o ambiente regulatório robusto e o seu peso econômico. O investimento chinês no Brasil persistirá mesmo com a ausência de um memorando assinado. As empresas chinesas não deixarão de expandir as suas operações porque o Brasil não assinou um memorando da ICR. Isto parece improvável.
A relutância do Brasil em assinar um memorando da ICR revela uma forte preferência pela autonomia da política externa brasileira na definição de acordos. Ao contrário de países menores, o Brasil pode negociar com a China e definir como o capital chinês pode ser alocado na economia brasileira de acordo com os seus interesses nacionais. O principal desafio do Brasil é, portanto, definir seus objetivos e como as relações Brasil-China poderiam contribuir para o desenvolvimento nacional.
Rafael Almeida Ferreira Abrão é doutor em economia política mundial pela Universidade Federal do ABC (UFABC), pesquisador no International Institute for Asian Studies (IIAS) e professor no Centro Universitário Ritter dos Reis (UniRitter).
Referências:
ABRÃO, R.A.F.; AMINEH, M. P. Brazilian Perception of the China-Led Belt and Road Initiative. Journal of Contemporary China, p. 1-19, 2024. Disponível em: https://doi.org/10.1080/10670564.2023.2299792
SOUSA, A.T.L.M.; SCHUTTE, G. R.; ABRÃO, R.A.F.; RIBEIRO, V.L. China in Latin America: To BRI or not to BRI. In: The Palgrave Handbook of Globalization with Chinese Characteristics: The Case of the Belt and Road Initiative. Singapore: Springer Nature Singapore, 2023. p. 495-514. Disponível em: https://doi.org/10.1007/978-981-19-6700-9_29
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