25 abril 2024

Agnotologia e ‘ciência cristã’: quando a ignorância e a fé religiosa se voltam contra o conhecimento

A Abin e o GSI produziram mais de mil relatórios sobre a pandemia, mas governo minimizou a gravidade, estimulou aglomerações, questionou o quantitativo de mortos, colocou em dúvida a eficácia das vacinas, demitiu ministros e guiou suas ações pelo ‘gabinete paralelo’ em busca da ‘imunidade de rebanho’

O ex-presidente Jair Bolsonaro e a primeira dama Michelle acenam com bíblia recebida do pastor Jonatas Câmara (Foto: Marcos Corrêa/PR)

Por Helcimara Telles, Horrana Grieg Oliveira e Nayla Lopes*

Em meio às profundas mudanças pelos quais passam globalmente os sistemas políticos, ideológicos e econômicos, a agilidade da contribuição da ciência para a redução dos danos provocados pela pandemia de Covid-19 ilustra um dos maiores desafios contemporâneos: a oposição entre a credibilidade nas inovações da ciência versus a fé religiosa e a acelerada disseminação de teorias conspiratórias e anti-ciência.

Parece existir um intervalo cada vez maior entre as descobertas científicas e a confiança da sociedade nelas. A separação entre ciência e fé, que parecia ter sido gradualmente resolvida a partir do século XVIII, com o início da secularização e da modernidade, tem sido questionada com força e impactado até mesmo as políticas públicas.

Agnotologia, ciência e política na pandemia

A manipulação da realidade humana, econômica, social ou política tem longa tradição. A possibilidade de manipulação da verdade aumenta quando catástrofes produzem insegurança e medo, como no caso da pandemia, uma vez que esses momentos potencializam a produção de teorias conspiratórias, do pensamento mágico e de crenças religiosas no debate público e na conversa social. À medida em que aumenta a tensão social, cresce também a facilidade para a construção de falsas verdades.

O procedimento para produzir e reproduzir a ignorância é designado como Agnotologia. A intencionalidade é o elemento principal desse conceito, criado por Robert Proctor, em referência à disseminação de dúvidas e incertezas. E a tática dos agentes agnotológicos é mais bem-sucedida quanto menor for o volume dos dados disponíveis sobre a realidade que se pretende questionar ou minimizar.

Na pandemia do coronavírus, que no Brasil ocorreu durante o mandato do presidente Bolsonaro, a estratégia agnotológica passou a ser adotada com o intuito de romper o consenso acerca da eficácia das vacinas e de outras medidas que visavam conter os danos da pandemia. Embora pesquisadores tenham dado respostas rápidas para debelar o vírus e reduzir a sua letalidade, as inovações científicas não tiveram a adesão de parcelas significativas da opinião pública.

Reportagem do jornal Folha de S. Paulo, de 28 de julho, de 2023 revelou que mais de mil relatórios sobre a pandemia de Covid-19 foram produzidos pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin) e pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI) do governo brasileiro. A despeito das evidências produzidas durante sua própria gestão, o presidente Bolsonaro minimizou a gravidade da pandemia, estimulou aglomerações, questionou o quantitativo de mortos, colocou em dúvida a eficácia das vacinas, demitiu ministros alinhados às evidências científicas e guiou suas ações pelo “gabinete paralelo” em busca da “imunidade de rebanho”, segundo conclusões da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia.

São fortes os indícios de que a minimização dos riscos da pandemia foi uma estratégia intencional. Além de ignorar os relatórios e as projeções de cenários, a gestão de Bolsonaro foi responsável pelo apagão de dados sobre a pandemia e sobre a realidade brasileira no período, como nas medidas adotadas para conservar determinadas informações sob sigilo durante um século.

A “ciência cristã”

Outro elemento estrutural importante para compreender os tempos dissonantes entre as inovações científicas e a adesão da opinião pública a elas é a ciência cristã. Na concepção bíblica da palavra, a fé representa “[…] a realidade daquilo que esperamos; ela nos dá convicção de coisas que não vemos” (Hebreus 11:1). Em outros termos, é uma crença profunda e íntima em algo que não pode ser provado ou visto empiricamente.

Para teóricos como Weber, com o advento da modernidade como consequência do avanço científico, observaríamos no mundo um certo desencantamento em relação ao Sagrado. Nessa nova lógica, as crenças religiosas, seus meios mágicos de salvação, os elementos de superstição e a dimensão do pecado cederiam lugar a uma interpretação mais empírica da realidade.

Indo de encontro a tais previsões, o que se observa na contemporaneidade é senão o oposto de tudo isso. Concepções religiosas como o da Teologia do Domínio (praticada pela maioria das igrejas evangélicas pentecostais no Brasil) e o da Ciência Cristã ganham cada vez mais força na sociedade. Esses movimentos buscam, nos processos científicos, garantir à religião maior status e credibilidade para sua atuação.

Na esteira do dominismo, diversos são os pesquisadores mobilizados para provarem, por meio da ciência, que os contos bíblicos de fato existiram. A exemplo disso está a contratação de arqueólogos que pretendem provar a existência do Dilúvio. Já a Ciência Cristã baseia-se em uma série de princípios espirituais – leis relativas à natureza de Deus e Sua criação – para explicar, de forma racional, os motivos pelos quais as doenças existem na humanidade e como disseminar a cura, nos mesmos moldes das práticas e ensinamentos de Jesus Cristo.

Para os adeptos da Ciência Cristã, a doença não compreende apenas as enfermidades do corpo, mas também abarca tudo aquilo que é maligno e não proveniente de Deus, como o pecado, o erro, o medo, etc. Tais doenças, por sua vez, têm por causalidade uma mente mortal (gênero humano doente e pecador) que subjuga a matéria (corpo físico). Já a cura, em oposição a isso, reina sobre o Homem quando nele é refletida a imagem de Deus no ideal espiritual Divino (individual, verdadeiro, perfeito e eterno).

Com a transformação da mente do paciente pela Ciência Cristã, é conferida a cura para quaisquer malefícios ou doenças. No livro Ciência e Saúde com a Chave das Escrituras, Mary Baker Eddy (fundadora dessa crença religiosa) apresenta inúmeros processos de cura alcançados pela translação da mente mortal conquistado por meio das práticas de orações por ela estabelecidas, da a cura de reumatismo, ossos quebrados, catarata, problemas na válvula do coração, entre outros.

A pesquisa “A extrema direita encontrou solo fértil: comportamento político, evangélicos e conservadorismo no Brasil”, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), que desenvolvemos com colaboradores na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), tem mostrado a expansão de movimentos que descreem da ciência a partir de bases religiosas, o que desafia a laicidade do Estado.

Apesar da existência de alertas para a comunidade de seguidores sobre a importância da obediência às leis locais – como medidas de lockdown e campanhas de vacinação -, os adeptos da Ciência Cristã costuram junto às instituições oficiais regulamentares inserções nas leis de saúde que permitam a pais se desobrigarem da necessidade de recorrerem a médicos em casos de doenças de seus filhos, pregam pela ineficiência dos tratamentos medicamentosos e acreditam que, quando a Ciência Cristã for compreendida universalmente, cada indivíduo será seu próprio médico. Esse e outros grupos contrários à ciência reagem aos consensos e às inovações científicas propondo leis que muitas vezes disputam com aquilo que se entende como racionalidade.

Em fevereiro de 2024, por exemplo, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (NOVO), entregou ao Supremo Tribunal Federal (STF) manifestação na qual afirma que a apresentação do cartão de vacinação nunca foi obrigatória para a matrícula na rede de ensino estadual. Segundo um trecho do documento “trata-se, com efeito, de manifestação singela e elucidativa, que visou a informar as famílias acerca da inexistência de impedimentos à matrícula escolar, decorrentes de eventuais retardos ou omissões no acompanhamento do calendário vacinal”.

O trecho demonstra que, mais do que uma simples liberdade de expressão religiosa, a Agnotologia, através da ciência cristã e da Teologia do Domínio, tem conseguido agir de forma organizada nos espaços institucionais para a aprovação de legislações que incorporem seus princípios anti-ciência.

A cultura brasileira absorveu um padrão de moralidade e costumes que se sedimentou em uma sociedade conservadora e atraída por narrativas religiosas que muitas vezes a leva a desqualificar os avanços científicos e a aderir a propostas sobrenaturais de cura que tem por base a fé.

A cobertura vacinal do Brasil, que já foi um exemplo positivo para o mundo, decaiu, produzindo alertas; o retorno de enfermidades que já haviam sido consideradas extintas, sobretudo na infância, se tornaram verdadeiros fantasmas que assustam os gestores de políticas públicas. Os movimentos anti-ciência são reforçados ora por grupos políticos ideológicos ora por fés religiosas como a ciência cristã.

Não apenas há um crescente movimento global antivacinas que se organiza em instituições representativas, como também uma maior incidência de lideranças religiosas na política brasileira, que utilizam estratégias para desafiar as inovações científicas através de métodos agnotológicos e da fé religiosa.


*Helcimara Telles é presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Eleitorais (Abrapel) e professora do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Horrana Grieg Oliveira é doutoranda em ciência política na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Nayla Lopes é doutoranda em ciência política na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original em https://theconversation.com/br

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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