Anthony W. Pereira: Crise de segurança no Haiti; existe uma saída?
País enfrenta uma das crises mais graves da sua história, com taxa de insegurança alimentar e nível de violência comparáveis aos de uma zona de guerra. Para professor, o problema é de governança e não existe consenso sobre como superá-lo
País enfrenta uma das crises mais graves da sua história, com taxa de insegurança alimentar e nível de violência comparáveis aos de uma zona de guerra. Para professor, o problema é de governança e não existe consenso sobre como superá-lo
Por Anthony W. Pereira*
O mundo está mergulhado em crises humanitárias que provocaram fortes reações de atores externos. Após a invasão russa da Ucrânia no ano passado, a guerra brutal continua, nivelando cidades e produzindo um fluxo de refugiados. A guerra provocou uma resposta sem precedentes dos estados membros da Otan, com a transferência de armas e munições para os militares ucranianos e a imposição de sanções econômicas contra a Rússia. Para dar outro exemplo, no Afeganistão, os níveis crescentes de pobreza produziram uma forte resposta das Nações Unidas, com o secretário-geral da ONU, António Guterres, chamando-a de “a maior crise humanitária do mundo hoje” no início de maio. Para citar outro caso, a violência continua em Cartum, no Sudão, enquanto o exército sudanês enfrenta as Rapid Support Forces (RSF) nas ruas. Em resposta, o secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, pediu que ambos os lados concordassem com um cessar-fogo em abril.
No entanto, uma crise parece não ter produzido uma resposta eficaz, seja doméstica ou internacionalmente. O Haiti tem uma taxa de insegurança alimentar – cerca de 40% de seus 12 milhões de habitantes – e um nível de violência – mais de 1.600 incidentes de homicídio, estupro, sequestro e linchamento no primeiro trimestre de 2023 – comparáveis aos de uma zona de guerra[1]. O país enfrenta uma das crises mais graves da sua história, uma história que inclui uma revolução que acabou com a escravidão e o domínio colonial e sucessivas invasões e ocupações, mas não existe consenso sobre como superá-la.
A crise é de governança. Ela começa, mas não termina com a segurança. A violência das gangues deslocou mais de 150 mil pessoas de suas casas. As gangues controlam cerca de 60% da capital, Porto Príncipe, e interrompem periodicamente a atividade econômica. Em 24 de abril de 2023, um grupo de pessoas incendiou 13 supostos membros de gangues na capital do Haiti. O vigilantismo está se tornando uma resposta à violência das gangues, mas ameaça se tornar uma força paralela e um problema em si. O Exército, abolido em 1995 e restabelecido em 2017, é fraco demais para impor a ordem. A segurança pública é nominalmente responsabilidade da Polícia Nacional do Haiti (Police Nationale d’Haïti, PNH), mas uma pesquisa de janeiro de 2023 do Grupo de Diagnóstico e Desenvolvimento constatou que apenas 71% da população acredita que a PNH pode restaurar a segurança do país[2].
O Haiti está em um vácuo constitucional. O então presidente Jovenal Moïse, governando por decreto, adiou as eleições em 2018 e novamente em 2019. As últimas eleições do Haiti foram em 2016, e a maioria dos prefeitos e legisladores tiveram seus mandatos expirados em janeiro de 2020. O governante de fato, o primeiro-ministro Ariel Henry, foi nomeado pelo presidente Moïse em 2021. Seu mandato foi contestado desde o início porque ele nunca foi empossado, e a legislatura não tinha quorum na época. O mandato de Henry terminou há mais de um ano e meio. A Constituição do Haiti exige que as eleições sejam realizadas em até 120 dias após a vacância presidencial, período que terminou em novembro de 2021. O país não tem um presidente desde que Moïse foi assassinado em sua casa em julho de 2021[3].
Após o assassinato de Moise, membros de organizações da sociedade civil e partidos políticos se uniram para propor um caminho a seguir para o Haiti. No final de 2021, eles produziram o que é chamado de Montana Accord. Isso envolveria um governo interino de dois anos, liderado por um presidente e um primeiro-ministro, para supervisionar até que novas eleições pudessem ser realizadas. Esta proposta não foi implementada. Na mesma época, em outubro de 2021, o primeiro-ministro Henry falou sobre a necessidade de intervenção militar estrangeira no Haiti. Isso gerou polêmica, pois a última intervenção, a operação de paz da ONU MINUSTAH (2004-2017) foi vista por muitos como um fracasso (O componente militar da operação foi liderado pelo Exército Brasileiro)[4]. Em janeiro de 2023, Henry convocou novas eleições, mas não estabeleceu um cronograma para elas.
A resposta internacional à crise no Haiti envolveu quatro caminhos: incentivo ao diálogo político, prestação de assistência humanitária, apoio à Polícia Nacional do Haiti e imposição de sanções a indivíduos suspeitos de envolvimento em violência política ou corrupção. Entre os Estados com interesses no Haiti, incluindo Estados Unidos, Canadá, França, República Dominicana e Brasil, há pouco interesse em uma nova intervenção. O Quênia e a Jamaica expressaram alguma vontade de enviar instrutores de policiais para a Polícia Nacional do Haiti. No entanto, a possibilidade de um mandato da ONU para outra operação de manutenção da paz parece remota e, na ausência disso, os Estados relutam em agir.
As intervenções internacionais em estados devastados pela guerra na década de 1990 fornecem um guia sobre o que não fazer no Haiti. Os casos de fracasso sem dúvida ensinam mais do que sucessos, como Moçambique (1993-1994) e El Salvador (1991-1995). Em Angola, em 1992, uma das duas forças armadas na guerra civil, a Unita (União Nacional para a Independência Total de Angola), não foi desmobilizada antes das eleições supervisionadas pela ONU em outubro daquele ano. Quando a Unita perdeu as eleições, voltou a um conflito que só terminou em 2002, quando o seu líder Jonas Savimbi foi morto em combate com as tropas do governo angolano na província do Moxico[5]. No Camboja, em 1993, um acordo de paz levou a uma eleição diretamente administrada pela ONU. A eleição não produziu um vencedor definitivo entre o governante Partido do Povo Cambojano (CPP) e a oposição FUNCINPEC (Frente Unida para um Camboja Independente, Neutro, Pacífico e Cooperativo). A solução foi um governo de coalizão envolvendo os dois partidos. No entanto, o consenso entre as partes não foi construído de forma sólida e em 1997 a CPP expulsou violentamente a FUNCINPEC do governo.
Os exemplos de Angola e Camboja fornecem duas lições para o Haiti. A primeira é que realizar eleições antes que a situação de segurança esteja resolvida é uma receita para o desastre. A segunda é que realizar eleições antes da obtenção de um consenso básico entre os principais atores sobre as regras do jogo também é perigoso. Essas duas lições podem ser destiladas em uma fórmula de três etapas para a estabilização: trabalhar primeiro para fornecer segurança por meio de iniciativas anti-gangues; forjar um pacto majoritário que estabeleça um consenso sobre regras políticas básicas; e organizar uma eleição que produzam representantes com mandatos legítimos para governar.
Um protagonista relativamente novo e não estudado na crise do Haiti é a diáspora haitiana. Quase 150 mil haitianos vivem na província de Quebec, no Canadá, mas a comunidade haitiano-americana no sul da Flórida é maior, com cerca de 350 mil habitantes. Alguns haitianos-americanos, muitos deles baseados no sul da Flórida, criaram recentemente a Fundação Haitiano-Americana para a Democracia (HAFFD), uma organização voltada para a promoção de soluções para a diáspora e para o Haiti (faz parte do Ayiti Diaspora Collaborative (ADC), uma grande rede de organizações nos EUA e no Haiti.) O HAFFD gostaria de falar pela diáspora haitiana para fazer lobby junto ao governo dos EUA e servir como um fórum no qual soluções para a crise haitiana podem ser discutidas. Como exemplo de suas atividades, em dezembro de 2022, o HAFFD ajudou a organizar um painel na Universidade de Massachusetts em Boston que discutiu a longa história de intervenções militares estrangeiras no Haiti e teve como objetivo “fornecer recomendações sobre as medidas que a diáspora pode tomar para apoiar a pátria e promover soluções sustentáveis”. Além disso, o HAFFD está trabalhando com a Florida International University em Miami para realizar uma pesquisa com haitianos-americanos e fornecer um fórum onde os membros da comunidade possam discutir os problemas haitianos.
Na ausência de uma ação decisiva por parte dos Estados estrangeiros, o Haiti está em grande parte sozinho na atual crise. Os riscos são altos, mas as soluções são possíveis. Mesmo os casos aqui discutidos como fracassos, Angola e Camboja, acabaram por alcançar a estabilidade após períodos de violentos conflitos internos. Talvez a diáspora haitiano-americana possa desempenhar um papel na produção de um resultado semelhante para o Haiti.
*Anthony W. Pereira é colunista da Interesse Nacional, diretor do Kimberly Green Latin American and Caribbean Center na Florida International University e professor visitante na School of Global Affairs do King’s College London.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Referências:
[1] O dado sobre da insegurança alimentar vem do texto “What Can Haiti Do to Gain the Upper Hand Against Gangs?” em Latin American Advisor, publicação diária do Inter-American Dialogue, 19 de maio de 2023, p. 1. O dado sobre violência vem de Richard Roth e Hira Humayun, “Haiti’s Crime Rate More Than Doubles in a Year” em CNN.Com, 26 de abril de 2023 em https://www.cnn.com/2023/04/26/ world/haiti-crime-rate-doubles-intl/index.html acessado em 6 de junho de 2023.
[2] Diagnostic and Development Group, Sondage de la population haïtienne de 18 ans ou plus sur la situation sécuritaire du pays, Janvier 2023. A pesquisa telefônica foi realizada com mais de 5.000 respondentes e tem margem de erro de 3% e nível de confiança de 95%. A pesquisa foi encomendada pela AGERCA, a Alliance pour la Gestion des Risques Et la Continuité des Activités.
[3] Houve uma condenação pelo assassinato, com várias outras pessoas sendo julgadas. Veja Chris Cameron (2023) “Man Gets Life in Prison in Killing of Haiti Leader” in The New York Times, Sunday, 4 June, p. 4.
[4] Uma operação anterior de manutenção da paz da ONU, a Missão das Nações Unidas no Haiti (UNMIH) durou de 1993 a 1996.
[5] Anthony W. Pereira, “The Neglected Tragedy: The Return to War in Angola, 1992-93″, in the Journal of Modern African Studies, Volume 32, Number 1, March 1994, pp. 1-28 and Anthony W. Pereira, “Angola’s 1992 Elections: A Personal View” in Camões Center Quarterly, Volume 5, Numbers 1 and 2, Winter 1994, pp. 1-8.
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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