As urnas e as preocupantes sinalizações para o futuro político-eleitoral do Brasil
O ecossistema de desinformação é uma realidade consolidada no país e que se potencializa a cada eleição, com recursos cada vez mais robustos, uso de tecnologias inovadoras, utilização sem pudor de IA
Por Eliara Santana*
Após dois turnos com muitas disputas pelo país, um apanhado geral das eleições municipais de 2024, para além do resultado das urnas com vencedores e perdedores, nos possibilita visualizar alguns tópicos muito relevantes. Aspectos importantes que se referem não apenas a esse pleito especificamente, mas, sobretudo, que apontam possibilidades e cenários para as eleições de 2026. Vamos a esses pontos.
Potencialização do ecossistema de desinformação
Para nos localizarmos na conversa, vamos primeiro à definição: o ecossistema brasileiro de desinformação deve ser compreendido como um sistema complexo de produção e disseminação de conteúdo falso e falseado (ressignificado, com novos sentidos). Esse sistema envolve vários atores e etapas, que vão da produção/elaboração da mensagem, passando por sua transformação em produto midiático, até a reprodução e disseminação dessas mensagens. Não se trata, portanto, de um processo aleatório ou linear de transmissão de mensagem.
No Brasil, é um sistema com grande financiamento, que se estrutura em suporte a determinado projeto político e que se construiu discursivamente com esse propósito. Esse sistema atua com a produção sistemática e articulada de conteúdo intencionalmente falso, com a ressignificação da realidade no cenário de um país semi-alfabetizado.
Em 2022, como mostrou o monitoramento realizado pelo Observatório das Eleições, o ecossistema de desinformação foi responsável pela emergência de narrativas falseadas que reordenaram, naquele momento, o debate público. Nesta eleição de 2024, algumas delas retornaram, atualizadas e bastante fortalecidas.
Essas narrativas incluem a vinculação das esquerdas ao crime organizado, perseguição a atores políticos, papel do Estado x atuação do cidadão, apelo a valores religiosos e denúncias falsas com conotação sexual (atualizando, por exemplo, a narrativa já consolidada do kit gay, difundida em 2018).
Nos debates eleitorais, nas propagandas de diversos candidatos, nas redes sociais, as fake news foram utilizadas sem qualquer moderação – apesar do papel muito eficiente do TSE em monitorar e combater a disseminação de desinformação.
O estudo “O Ambiente da desinformação em torno das eleições”, foi desenvolvido pelo International Institute for Democracy Electoral Assistance (IDEA) e publicado no final de 2022, aponta para uma abordagem relativa aos impactos da desinformação nos processos eleitorais. A referida pesquisa mapeou mais de 900 casos de desinformação relativos a eventos eleitorais nacionais em diversos países e apontou para a relevância das ações de desinformação com a elaboração de narrativas.
O estudo avaliou os principais aspectos que são impactados pela desinformação eleitoral:
a) Percepção – a desinformação contribui para alterar a percepção do público em relação à capacidade e à imparcialidade das autoridades eleitorais, além de impor dúvidas sobre o processo eleitoral, especificamente em relação à exatidão dos resultados;
b) Atitudes – a desinformação sistematizada promove desconfiança e uma confusão sobre os direitos eleitorais e a aceitação dos resultados;
c) Comportamento – há manifestação de violência eleitoral, intimidação a funcionários que atuam nas eleições e questionamento em relação aos processos.
De acordo com essa pesquisa, o Brasil só perde em desinformação eleitoral para a Índia. Portanto, o ecossistema de desinformação é uma realidade consolidada no país e que se potencializa a cada eleição, com recursos cada vez mais robustos, uso de tecnologias inovadoras, utilização sem pudor de IA – mesmo com todas as ações de combate à disseminação de desinformação.
Importante frisar aqui, nesta reflexão, que a sistematização de desinformação no Brasil não se restringe ao ambiente midiático digital – o espaço de mídia tradicional também cedeu e cede aos apelos de encampar falseamentos e fatos mentirosos. Um exemplo muito apropriado foi a declaração do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, no dia da eleição no segundo turno, em 27 de outubro. Sem apresentar qualquer prova, ele afirmou que o PCC havia determinado o voto em Guilherme Boulos. A declaração de Tarcísio ganhou destaque, sem questionamentos, no maior jornal de São Paulo.
Por outro lado, e também em consonância com as dinâmicas desse ecossistema, essas eleições também revelaram um avanço nos ataques a jornalistas. De acordo com dados da Coalizão em Defesa do Jornalismo (CDJor), entre 15 de agosto e 6 de outubro, postagens ofensivas se proliferaram em redes como X, Instagram e TikTok. Foram registrados mais de 44 mil ataques nesse período, com insultos violentos e a consolidação de hashtags contra a imprensa.
Infelizmente, o fato de haver ataques contra jornalistas não é exatamente uma novidade. No entanto, o avanço expressivo desses ataques no período eleitoral e a forma discursiva violenta no ambiente digital são indícios significativos que revelam o avanço da desinformação e uma prática reiterada da extrema direita, que é a quebra de mediação – ou seja, a destruição da reputação de instâncias responsáveis por fazerem a divulgação de conhecimento e informação na sociedade.
O papel das redes sociais
Outro aspecto que destaco refere-se ao comportamento das candidaturas nas redes sociais, com alguns desdobramentos interessantes. Monitoramento realizado por nós no Observatório das Eleições este pleito revelou, por exemplo, que centenas de candidatos – parte deles envolvida com os atos antidemocráticos em 8 de janeiro de 2023 em Brasília – não apenas enalteceram a ocorrência dos atos, como também escolheram os números 801 e 81 numa alusão ao 8 de janeiro – 8/1.
O tema teve, inclusive, bastante destaque nas redes sociais, a despeito das ações do Supremo para punir tais atos e os responsáveis. Esse levantamento revelou ainda, para além dos números, um culto ao 8 de janeiro por parte de vários grupos, numa representação distorcida dos fatos que contribui para criar na memória do eleitor uma percepção equivocada em relação àquele ato de atentado à democracia. O que ressignifica a realidade histórica e desinforma ampla fatia da população.
Em outro monitoramento, foi possível observar o comportamento dos candidatos em relação à atuação nas redes. Tal uso varia de acordo com o tamanho dos municípios – com um predomínio do WhatsApp nas cidades de menor porte. De modo geral, as redes mais utilizadas foram Instagram e Facebook. Em relação à adesão dos candidatos ao uso das redes, do total de candidaturas registradas nesta eleição, observou-se que, entre partidos de esquerda, a adesão é menor do que a verificada nos partidos de direita: 57,2% dos candidatos de direita estão nas redes sociais, contra 22,5% dos candidatos de centro e 20,4% dos candidatos de esquerda.
Crime organizado e política
Por fim, entre os aspectos que destaco, está a presença do crime organizado. As Eleições Municipais de 2024 trouxeram à tona uma preocupação que já vinha se manifestando em algumas instâncias: a forte inserção do crime organizado no cenário político-eleitoral do país. O Relatório Preliminar da Missão Observação Eleitoral da OEA no Brasil, divulgado em 9 de outubro de 2024, expôs claramente esse problema.
O documento enfatizou dois pontos principais em relação a esse tópico:
- a ação de grupos criminosos, que impõem restrições de mobilidade nas áreas que controla, afetando as candidaturas locais, e coagem eleitores de algumas comunidades;
- a preocupação com a entrada de fundos ilícitos nas eleições, sobretudo provenientes do tráfico de drogas.
Todos esses aspectos, discutidos aqui brevemente, estão interligados e precisam ser compreendidos a partir desse recorte. Essas dinâmicas dialogam entre si, se retroalimentam e se fortalecem a cada eleição no Brasil, impondo muitos desdobramentos. Portanto, encerrado o pleito de 2024, precisamos nos debruçar sobre tais aspectos para nos anteciparmos aos desafios que virão nas eleições de 2026.
Eliara Santana, Doutora em Linguística e Língua Portuguesa pela PUC Minas, pesquisadora, Observatório das Eleições
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