23 abril 2025

Caminhos da democracia I – Tocqueville, Levitsky e Trump

É possível identificar em ‘Da Democracia na América’ os traços formadores – cultura, política, economia – que possibilitaram a emergência de uma sociedade democrática, tendo como marcas registradas a igualdade e a liberdade. É visível, nesse segmento do livro, a admiração de Tocqueville por uma sociedade que avança e se transforma, sem cair no recorrente vício francês das revoluções

Alexis de Tocqueville e Donald Trump em imagem criada por inteligência artificial

Três figuras marcam os caminhos da democracia. Tocqueville escreveu Da Democracia na América. Levitsky analisou Como as Democracias Morrem. Trump se empenha em destruí-las e em Make America Great Again. 

O país onde nasceu a democracia moderna irá sepultá-la? A ameaça maior para a democracia de Alexis de Tocqueville – a tirania da maioria – é a mesma identificada por Stephen Levitsky e por Yascha Mounk? Como Salvar a Democracia do primeiro nos ajuda a escapar do destino de O povo contra a democracia, do segundo?  O Ocidente sobreviverá à blitzkrieg econômica-ideológica-estratégica de Trump? 

‘É visível a admiração de Tocqueville por uma sociedade que avança e se transforma, sem cair no recorrente vício francês das revoluções’

Este artigo procura encontrar respostas para essas perguntas e se divide em quatro partes. A primeira procura identificar em Da Democracia na América os traços formadores – cultura, política, economia – que possibilitaram a emergência de uma sociedade democrática, tendo como marcas registradas a igualdade e a liberdade. É visível, nesse segmento do livro, a admiração de Tocqueville por uma sociedade que avança e se transforma, sem cair no recorrente vício francês das revoluções.  

A segunda parte reflete a face cética de Tocqueville, preocupado com  desdobramentos futuros que poderiam vir a desfigurar a harmonia inicial da relação entre igualdade e liberdade. O avanço sem freios da igualdade gera uniformidade incompatível com o sistema democrático, sempre pautado por certa instabilidade. Na visão de Tocqueville, a democracia deveria produzir pequenas revoluções e, assim, evitar uma grande revolução.  

‘Para Tocqueville, o indivíduo que luta pelo enriquecimento tende a se distanciar dos assuntos públicos – o ovo da serpente da tirania’

Da Democracia na América se constrói a partir de eixos binários – Estado e sociedade civil; igualdade e liberdade. O primeiro eixo se opõe à visão dos contratualistas (baseada no embate de poder entre Estado e sociedade) e tem como foco a lei. O segundo eixo – igualdade e liberdade – está ligado à ideia de individualismo. Para Tocqueville, o indivíduo que luta pelo enriquecimento tende a se distanciar dos assuntos públicos, que ficam sob a responsabilidade apenas do Estado ( e não da sociedade) – o ovo da serpente da tirania.

Tendo como referencial esses dois eixos, Tocqueville analisa aspectos marcantes da sociedade americana, sempre com um olhar que busca identificar as origens e a trajetória das singularidades da América:  soberania popular; sufrágio universal; igualdade de condições; liberdade democrática; riscos da tirania democrática; associação livre dos cidadãos; sistema político construído de baixo para cima; “paixão vigorosa e legítima pela igualdade”; poder judiciário; e liberdade de imprensa. 

‘As raízes do autoritarismo trumpista remontam ao macartismo anticomunista dos anos 1950’

A terceira parte do artigo está voltada para a ruptura entre Tocqueville e Trump. Enquanto o primeiro admira e analisa uma democracia em construção, o segundo quer sua desconstrução, para a afirmação do “poder americano na nova era de nacionalismos”, nas palavras de Michael Kinmage. Um nacionalismo patrocinado por figuras carismáticas e autoritárias – Trump, Putin, Xi Jinping, Erdogan, Viktor Orban. As raízes do autoritarismo trumpista remontam ao macartismo anticomunista dos anos 1950. 

Em contraste com o mundo de Tocqueville – harmonia inicial entre Estado e sociedade, imprensa livre, direitos humanos, equilíbrio entre os Poderes – a era Trump é a negação desse universo regido por princípios e regras, freios e contrapesos que tinham no Estado o impulsionador da democracia.  

‘Trump ignora os princípios do direito internacional e os paradigmas da ordem econômica internacional, e sepulta o comércio internacional baseado em regras’

No plano externo, Trump ignora os princípios do direito internacional e os paradigmas da ordem econômica internacional: apoia o país invasor (Rússia) e condena a vítima da agressão (Ucrânia); rompe acordos internacionais (COP 15), hostiliza a OTAN e se distancia da União Europeia; e sepulta o comércio internacional baseado em regras, ao generalizar o uso de tarifas recíprocas, que são a pior forma de protecionismo. 

A terceira parte do artigo está dedicada a duas perspectivas para a democracia no mundo atual. A primeira examina as condições sociais, políticas e econômicas que levam a sua morte, como descrita em Como as democracias morrem e em O povo contra a democracia. A segunda perspectiva, dominada pelo ceticismo mas temperada por alguma esperança, está presente em Como salvar a democracia e também em O grande experimento.

Da Democracia na América contra a França das Revoluções 

Na terceira década do século XIX, um nobre francês – Tocqueville – viajava para a América, acompanhado de um amigo juiz, com o propósito de examinar o sistema prisional, mas durante um ano de permanência fez muito mais. Viajou o país de norte a sul, conviveu com o povo e com os dirigentes dos vários estados e da União. 

Tocqueville ficou fascinado com o grande experimento dessa jovem sociedade. “Este livro foi escrito há 15 anos, sob a preocupação constante de um único pensamento: a chegada universal, próxima e irresistível da democracia no mundo.” E acrescenta logo em seguida. “O desenvolvimento gradual da liberdade de condições é um fato providencial, com características essenciais: é universal, duradouro, escapa diariamente ao poder humano.” (1) 

‘Tocqueville se tornou um clássico do pensamento político, mas ganhou relevância e atualidade em consequência da chamada crise da democracia representativa por Trump’

Tocqueville se tornou um clássico do pensamento político, mas ganhou relevância e atualidade em consequência da chamada crise da democracia representativa e da desconstrução da Democracia na América, por Trump. 

Seu livro identifica contrastes entre uma América jovem, sem tradição, sem nobreza hereditária, com vasta extensão de terras inexploradas, organizada a partir de comunas, e uma Europa aristocrática e resistente a mudanças. 

‘Contraste entre América e Europa ajuda a entender por que a democracia ganhou mais solidez na América do que em outras partes do mundo’

Esse contraste ajuda a entender por que a democracia ganhou mais solidez na América do que em outras partes do mundo. Embora tenha visitado muitas regiões do país, é na Nova Inglaterra que ele “vê nascer e se desenvolver essa independência comunal que constitui, ainda em nossos dias, o princípio e a vida da liberdade americana.” (2)

“Na maior parte das nações europeias, a existência política começou nos estratos superiores da sociedade e comunicou-se, pouco a pouco, e sempre de maneira incompleta, às diversas partes do corpo social. Na América, ao contrário, pode-se dizer que a comuna foi organizada antes do condado, o condado antes do estado e o estado antes da União.”  (3) 

‘Padrão vigente na América de então abre caminho para uma sociedade política construída de baixo para cima e, por isso, com legitimidade e estabilidade’

Esse padrão vigente na América de então abre caminho para uma sociedade política construída de baixo para cima e, por isso, com legitimidade e estabilidade. Na verdade, a ideia de visitar a América, tanto de Tocqueville quanto de Gustave de Beaumont, ambos da carreira judiciária, resultava da fadiga com uma França de sucessivas revoluções e da admiração de uma América que prosperava sem terremotos sociais. 

Esse desencanto leva Tocqueville a refletir sobre as origens dos males da França, que não estão ligados ao excesso de ordem (absolutismo) nem de liberdade (revolução), mas sim à escassez de legitimidade. “Não é o uso do poder ou o hábito da obediência que deprava os homens e sim o uso de um poder que eles consideram ilegítimo, e a obediência a um poder que vêem usurpado e opressor.” (P.4)

Essa falta de legitimidade impossibilita que, na França, a associação livre dos cidadãos venha a substituir o poder individual decadente dos nobres, que seria a única possibilidade de o Estado ficar a salvo da tirania e do arbítrio. Antes de aprofundar sua análise da sociedade e do sistema político americano, Tocqueville conclui com um quadro de desesperança. “Onde estamos, portanto? Os homens religiosos combatem a liberdade, e os amigos da liberdade atacam as religiões… o amor pela ordem se confunde com o gosto dos tiranos e o santo culto da liberdade com o desprezo das leis.” (5)

Uma democracia sem generais, sem filósofos e sem grandes escritores

Mas Tocqueville e Beaumont não cruzaram o Atlântico em vão. O que encontraram foi um renovar de esperanças que sepultou o desencanto com a terra natal.

Tocqueville traça o perfil de um país portador de experiência única no mundo moderno. “Uma democracia que não havia ainda dado à luz nem generais, nem filósofos, nem grandes escritores”. “Ela é o produto de dois elementos perfeitamente distintos, que alhures fizeram frequentemente a guerra, mas que conseguiram, na América, se incorporar  um no outro e se combinar maravilhosamente. Quero falar do espírito de religião e do espírito de liberdade.” (5 A). 

“Há um país no mundo onde a grande revolução social da qual falo parece ter quase atingido seus limites naturais; ela ocorreu de uma maneira simples e fácil… Esse país vê os resultados da revolução democrática que se realiza entre nós (França) sem ter passado pela revolução propriamente. Os emigrantes que se fixaram na América no começo do século XVII isolaram, de certa forma, o princípio da democracia de todos aqueles contra os quais este mesmo princípio se chocava no seio das velhas sociedades da Europa, e o transplantaram isoladamente para a costa do Novo Mundo, onde ele pôde crescer em liberdade, caminhando com os costumes, desenvolver-se pacificamente nas leis.” (6)

O império da lei

A importância das leis é sempre ressaltada na América de Tocqueville. “Não há, por assim dizer, acontecimento político em que não seja invocada a autoridade do juiz…nos Estados Unidos, o juiz é um dos primeiros poderes políticos.” (7)

O poder judiciário americano apresenta três características existentes em outros países: funciona como árbitro; atua em casos particulares; e age quando provocado. 

 Da Democracia na América demonstra que o juiz americano se assemelha aos magistrados de outras nações, mas ressalta uma importante distinção – “é revestido de imenso poder político. De onde vem isso? A causa está neste único fato: os americanos reconheceram aos juízes o direito de fundar seus acórdãos sobre a Constituição, mais do que sobre as leis. Em outros termos, permitiram-lhes não aplicar leis que lhes parecessem inconstitucionais. (8) 

‘Tocqueville dedica reflexões muito originais ao refletir sobre a liberdade de imprensa e analisar seus efeitos não só sobre o mundo político, mas também sobre a sociedade civil’

Tocqueville dedica reflexões muito originais ao refletir sobre a liberdade de imprensa e analisar seus efeitos não só sobre o mundo político, mas também sobre a sociedade civil . “Ela não modifica somente as leis, mas os costumes. … Amo-a mais em consideração aos males que ela impede do que pelos bens que faz.” (10)

Capítulo importante Da Democracia na América, relativo à ciência, também se desenvolve a partir da relação binária – mas não simplista – entre liberdade e igualdade. “A igualdade desenvolve em cada homem o desejo de julgar tudo por si mesmo. Ela lhe dá, em toda as coisas, o gosto pelo tangível, pelo real, e o desprezo por tradições e solenidades. Nos povos democráticos, os cultores das ciências sempre temem perder-se em utopias. Eles desconfiam de sistemas. … Eles nunca estão dispostos a jurar pela palavra do mestre. … As tradições científicas têm sobre eles pouco poder.” (11)

Esta Parte I do artigo analisou sobretudo as singularidades da sociedade americana do século XIX, responsáveis, segundo Da democracia na América, pela grandeza e pelas virtudes do sistema democrático. A seguir, a Parte II deste artigo, dedicada à metade final do livro, vai encontrar um Tocqueville cético. Sua preocupação maior será com as deformações da relação entre liberdade e igualdade: a supremacia da primeira pode levar ao caos e à guerra civil, e a da segunda, alimentar o despotismo democrático.


Notas

  1. Tocqueville, Alexis de.  Da Democracia na América. Vide Editorial, 1ª edição. São Paulo. SP. 2019. P. 11.
  2. Ibidem. P.54.
  3. Ibidem. P.54.
  4. Ibidem.P.18.
  5. Ibidem. P. 22.
  6. Ibidem.P.56.
  7. Ibidem. P. 23.
  8. Ibidem.P.119.
  9. Ibidem. P.120.
  10. Ibidem. P.243.
  11. Ibidem. P. 533.

Sergio Abreu e Lima Florêncio é colunista da Interesse Nacional, economista, diplomata e professor de história da política externa brasileira no Instituto Rio Branco. Foi embaixador do Brasil no México, no Equador e membro da delegação brasileira permanente em Genebra.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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