Como Giuliano da Empoli explica a política quântica e o tecnopopulismo na era dos algoritmos
Sociólogo e ensaísta italiano analisa como as redes e a presença constante dos smartphones na vida atual propiciam um cenário de constante engajamento com a política, tornando a democracia participativa obsoleta na construção de consensos e busca por soluções
No ensaio Política e a Língua Inglesa, escrito em 1946, George Orwell argumentou que o “texto político da nossa época consiste quase inteiramente de frases pré-fabricadas encaixadas como peças de um brinquedo infantil”. Lendo sobre o tema nos últimos anos, é possível concluir que as palavras do autor, mais uma vez, descrevem também a era atual. Inclusive, muitos dos clichês políticos escritos nos últimos tempos usam interpretações distorcidas e ruins de sua obra mais famosa, 1984.
Na visão de Orwell, para escrever em linguagem clara e vigorosa, é “preciso pensar sem medo, e quem pensa sem medo não pode ser politicamente ortodoxo”. A falta de ortodoxia e a percepção de que os algoritmos definem de maneira crucial todo o ambiente político atual, com muitas das definições clássicas e históricas deixando de ter relevância, ou mesmo não sendo mais aplicáveis, é o grande mérito do sociólogo e ensaísta Giuliano Da Empoli. Se o italiano-suíço não é o mais relevante escritor político da contemporaneidade, seguramente é dos mais inovadores.
No Brasil, Da Empoli ficou conhecido por ser autor de Engenheiros do Caos, uma obra que explica como poucas as estratégias políticas na era digital. Mais recentemente, o autor lançou o romance O Mago do Kremlin, em que conseguiu expor com brilhantismo em uma ficção baseada em fatos o cenário que alçou Vladmir Putin ao poder e quais são suas diretrizes uma vez no topo.
A origem de Da Empoli ajuda a explicar sua capacidade rara atualmente de descrever fenômenos políticos disruptivos com um devido distanciamento analítico. O autor chama sua Itália natal de “Vale do Silício dos populismos”, com boa razão. Da Empoli trabalhava junto ao primeiro-ministro Matteo Renzi quando surgiu uma das forças políticas mais emblemáticas da era digital, o Movimento 5 Estrelas (M5S).
O M5S foi pioneiro em utilizar o ódio gerado nas redes sociais para dar tração a um movimento político, ainda nos anos 2010. A partir de um rechaço generalizado das instituições italianas – que já havia gerado desde o forte domínio de Silvio Berlusconi à chegada de Cicciolina e seu Partido do Amor ao parlamento – o M5S transformou usuários das redes em eleitores profundamente engajados. Um ponto alto foi a criação da chamada plataforma “Rousseau”, na qual cidadãos supostamente poderiam votar pelos próximos passos da legenda, em uma espécie de “democracia direta”.
Como oposição, o movimento foi um sucesso, impulsionou o voto contrário ao governo em um referendo proposto por Renzi, o que acabou forçando sua queda e novas eleições. O M5S foi o vencedor do pleito, mas, no poder, começaram a aparecer os inúmeros problemas. Seu primeiro mandato fracassou, forçando a criação de uma nova coalizão que contou até com o próprio Partido Democrata – sigla de Renzi – que havia sido vilanizada por anos. Ao final, a desastrosa experiência do M5S no poder contou com a ironia de alçar o tecnocrata Mario Draghi, símbolo máximo do establishment italiano, ao poder.
Por sua vez, ainda que não bastasse para governar, a influência na política italiana já havia sido suficiente para fazer com que nada fosse como antes. Um dos equívocos de muitas análises, na visão de Da Empoli, é pensar que resultados eleitorais negativos para os chamados “tecnopopulistas” possam fazer com que haja um retorno à normalidade. É um engano profundo, e os anos que se passaram após as derrotas de Donald Trump e Jair Bolsonaro dão muita razão ao autor.
Da Empoli argumenta que o cenário atual levou a um estado permanente de campanha. De fato, as redes e a presença constante dos smartphones na vida atual propiciam um cenário de constante engajamento com a política, e a melhor maneira de obtê-lo é através do ódio. A questão está na essência de como a democracia participativa atual se tornou obsoleta na construção de consensos e busca por soluções e virou um mero instrumento para alcançar engajamento por parte daqueles que sabem explorar melhor isso.
Outro equívoco que Da Empoli aponta é o de atribuir grande parte do problema à desinformação e mentiras. Em sua visão, esta é a ponta do iceberg. Alguns líderes usam mais do instrumento, mas há uma série de populistas atuais que não recorrem com frequência às fake news. Da Empoli descreve a mudança de uma “política clássica”, assim como a física newtoniana, para uma “quântica”, na qual a realidade depende do ponto do observador. Neste cenário, o consenso padrão sobre a realidade e os fatos se tornou menos relevante que o conteúdo oferecido pelos algoritmos.
Recentemente, em um evento em Buenos Aires, Da Empoli expôs todas estas suas visões, e indicou como vê Javier Milei usando os recursos comuns aos tecnopopulistas. Suas constantes críticas à chamada “casta” são a versão local do repúdio às instituições inerentes a estes agentes políticos.
Como Da Empoli escreveu em Os Engenheiros do Caos, a ira impulsionada pelos algoritmos gerou uma inversão de valores na qual a falta de experiência política é vista como algo positivo. Na ocasião, perguntei a ele se havia acompanhado a política brasileira nos últimos tempos, especialmente a candidatura de Pablo Marçal. Ele disse que “infelizmente, não muito”, mas que sente que deveria observar mais. Possivelmente, terá a oportunidade dentro dos próximos anos, já que a tomada da política do Brasil pelo tecnopopulismo é o fenômeno mais relevante da democracia do país neste século.
Marçal levou o uso das redes a outro paradigma com seu amplo conhecimento da chamada “economia da atenção”. O influenciador atacou e descredibilizou instituições o tempo todo, e criou um ambiente virtual de presença constante.
Antes da candidatura à prefeitura de São Paulo, Marçal já havia ampliado sua projeção com suas ações na tragédia do Rio Grande do Sul. Na ocasião, usava o lema “o povo pelo povo”, e criticava a ineficácia de governos que não poderiam fazer nada para ajudar. Normalmente, o conteúdo vinha acompanhado de pedidos para doações através do pix. O fato de a plataforma, provavelmente o grande êxito de uma iniciativa federal nos últimos dez anos, ser totalmente desenvolvida por uma instituição pública não tem nenhuma relevância na era da política quântica.
Em uma série de podcasts, Marçal explicou sua estratégia de capturar atenção a todo custo, convertendo parte do engajamento em apoio e seguidores. Em 2024, a estratégia não foi suficiente para conseguir um cargo executivo diante da alta taxa de rejeição. Ainda assim, foi uma exposição clara e prática do que é necessário para se tornar uma figura política relevante hoje.
A rejeição que tecnopopulistas enfrentam explica o limite das estratégias para cargos executivos. Neste ano, a influenciadora Mariana Rodríguez acabou perdendo a eleição para a prefeitura de Monterrey, no México, ficando na segunda colocação. Por sua vez, a candidata de 28 anos reconheceu a derrota em um vídeo para seus mais de 3 milhões de seguidores no Instagram no qual se maquiava.
Já em cargos legislativos, o efeito do tecnopopulismo é mais eficiente. Em 2022, Nikolas Ferreira foi o deputado mais votado do país por Minas Gerais, um colégio eleitoral significativamente menor que São Paulo. Aos 26 anos, teve cerca de seis vezes o número de votos do segundo colocado, André Janones, que à época era mais um grande expoente do tecnopopulismo. Neste ano, Lucas Pavanato foi eleito vereador com o maior número de votos em São Paulo, em grande parte graças ao apoio massivo de Nikolas e seus quase 12 milhões de seguidores no Instagram.
No Parlamento Europeu, as últimas eleições foram um sucesso para influenciadores. O cipriota Fidias Panayiotou, de 24 anos, foi eleito afirmando não saber nada sobre política, e nunca ter votado. Em sua experiência, há um vídeo em seu canal no Youtube no qual ele conta como ficou por dez dias em um aeroporto de graça, com 5 milhões de visualizações.
Como lidar com o tema? Da Empoli tem uma ótima resposta, ainda que não ajude muito. “Por sorte, não estou na política, então não tenho que dizer que tenho soluções, e nem que ser otimista”, costuma brincar, com um bom fundo de verdade. Ainda assim, ele lança importantes avisos sobre as plataformas, que é o que têm em comum os tecnopopulistas. Apesar de não estar informado sobre Marçal, quando me respondeu o que vinha observando sobre o Brasil, disse “aquilo do X”.
Matheus Gouvea de Andrade é jornalista focado em temas internacionais baseado na América Latina. Trabalhou no Grupo Estado e publicou em veículos como BBC, Rest of World, Climate Change News, DW Brasil, Folha de S. Paulo, Piauí e Público, escrevendo a partir de Lisboa, Medellín, Lima, Buenos Aires e São Paulo
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