Contrastes e confrontos – Os discursos de Lula e Trump na ONU
Presidentes do Brasil e dos EUA apresentaram falas antagônicas, mas abriram espaço para diálogo após ‘encontro casual’. Mas é preciso entender que a afirmação Trump de que o Brasil continuará mal, se não se alinhar aos EUA é retrato da Doutrina Monroe ressuscitada para a região e recado contra a aproximação com a China

A 80ª. Assembléia das Nações Unidas passará para a história como uma das mais importantes pelos desafios a sua sobrevivência e pelas iniciativas multilaterais que foram anunciadas durante sua realização em 2025.
As ações paralelas mais importantes procuram reavivar a importância das Nações Unidas como o fórum por excelência de discussão dos temas de paz, segurança e cooperação globais: o encontro sobre a democracia contra o avanço da direita, liderado pela Espanha e pelo Brasil, o encontro presidido pela França e Arábia Saudita sobre a Palestina, a decisão de mais de dez países de reconhecer o Estado Palestino, a reunião da aliança global do combate contra a fome e a pobreza, proposta e defendida pelo Brasil, e a criação de um Fundo para financiamento para preservar florestas tropicais (TFFF), são alguns exemplos dessas ações paralelas, significativas, mas de pouca efetividade por não contar com o apoio da maior potencia global.
‘O presidente brasileiro seguindo a tradição, pronunciou o primeiro discurso dos chefes de Estado, com um texto duro em relação às novas políticas dos EUA tanto no contexto global’
O presidente brasileiro seguindo a tradição, pronunciou o primeiro discurso dos chefes de Estado, com um texto duro em relação às novas políticas dos EUA tanto no contexto global, mas também com relação à interferência em assuntos internos brasileiros e a medidas unilaterais políticas e comerciais, e ao que chamou de genocídio praticado por Israel em Gaza. Não deixou de mencionar a necessidade de se revigorar o multilateralismo, em especial a ONU e a OMC, enfraquecidas por medidas e ações unilaterais que estão enfraquecendo as instituições internacionais.
O presidente norte-americano, que seguiu o pronunciamento de Lula, fez um dos mais longos discursos de seu país na abertura da Assembleia Geral.
Em quase uma hora, Trump criticou o funcionamento das Nações Unidas, tratou das guerras da Ucrânia e de Gaza, as iniciativas de meio ambiente e mudança de clima sempre com um jeito misto de informalidade e egocentrismo.
‘O presidente americano reiterou toda sua agenda da política para fins de política interna, como imigração e mudança de clima, falando para seus seguidores do movimento MAGA’
Reiterou toda sua agenda da política para fins de política interna, como imigração e mudança de clima, falando para seus seguidores do movimento MAGA. Em alguns momentos, refletindo o inesperado de seu personalismo, apoiou a Ucrânia e criticou a Rússia, disse que não estava gostando da continuação da guerra em Gaza e que o gesto de vários países reconhecerem o Estado Palestina significava prêmio às atrocidades do Hamas.
O momento mais inesperado do discurso do presidente norte-americano ocorreu quando fez fortes críticas ao que chama de regime brasileiro, pela perseguição aos adversários, pelo tratamento que tem dispensado aos EUA, pela corrupção.
“Lamento muito dizer isso: o Brasil está indo mal e continuará indo mal. Eles só conseguem se sair bem quando trabalham conosco. Sem nós, eles fracassarão, assim como outros fracassaram”.
Nesse momento, interrompeu o pronunciamento, saiu fora do texto, para dizer que apesar do que acabara de dizer sobre o Brasil, tinha encontrado, antes de entrar para falar, o presidente Lula com quem conversou por 20 a 39 segundos, com boa química, que gostou de falar com ele e que haviam combinado em marcar reunião na semana que vem.
O gesto trumpista pegou de surpresa tanto a delegação norte-americana, com Marco Rubio impassível com cara de poucos amigos, quanto a brasileira, que cochichou entre si com um misto de preocupação e sorrisos.
‘O aceno de Trump não significa necessariamente uma mudança de posição em relação ao Brasil. O gesto indica que a ideologia conta, mas que o relacionamento pessoal com o presidente americano e seus humores apoiam a defesa dos interesses dos EUA, na visão trumpista’
O aceno de Trump não significa necessariamente uma mudança de posição em relação ao Brasil, como mostra o texto escrito pelo Departamento de Estado. O gesto indica que a ideologia conta, mas que o relacionamento pessoal com o presidente americano e seus humores apoiam a defesa dos interesses dos EUA, na visão trumpista.
Ele vai apresentar o resultado do contato telefônico com Lula como uma vitória, ressaltando as concessões que o Brasil terá oferecido.
Do lado de Lula, será difícil não realizar o contato telefônico, demandado a muito tempo pelo setor privado para desbloquear as negociações comerciais.
Apesar da relutância e reserva de alguns de seus assessores, a conversa deverá acontecer, pois, caso Lula não chame Trump, o ônus recairá sobre o presidente brasileiro por não buscar aliviar o impacto negativo do tarifaço sobre o setor privado, do agro e industrial e certamente será explorado politicamente contra o presidente.
‘O “encontro casual” foi articulado por empresários brasileiros (Embraer e JBS) e americanos (provavelmente Big Techs) e Lula teria sido informado antes’
Segundo se divulgou, o “encontro casual” foi articulado por empresários brasileiros (Embraer e JBS) e americanos (provavelmente Big Techs) e Lula teria sido informado antes. O mesmo apoio empresarial ocorreu para possibilitar o encontro de Mauro Vieira com Marco Rubio, fora da agenda, e em escritório de empresa longe do Departamento de Estado.
Resta saber o que será oferecido aos EUA em troca da redução dos 50% das tarifas sobre 25% das exportações para os EUA e para a inclusão de café, cacau, manda e outros produtos na lista de exceções. Possivelmente, etanol, alguma abertura para negociação com as Big Techs e minérios estratégicos serão colocados na mesa.
Não deve passar despercebido, na fala de Trump sobre o Brasil, a afirmação de que “o país está mal e continuará mal, se não se alinhar aos EUA”. É a Doutrina Monroe ressuscitada para a região e recado contra a aproximação com a China.
Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.
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