Da lógica do conflito ao paradigma da paz
Tensão geopolítica na Europa e no Indo-Pacífico, mudanças climáticas, pandemia e problemas econômicos, sociais e humanitários geram preocupação sobre ameaças à segurança internacional, mas a lógica do conflito deve ser substituída por um paradigma com foco na sobrevivência, no desenvolvimento, no respeito aos direitos humanos e no restabelecimento do diálogo. E o Brasil tem credenciais para ajudar a articular a convivência pacífica global
Tensão geopolítica na Europa e no Indo-Pacífico, mudanças climáticas, pandemia e problemas econômicos, sociais e humanitários geram preocupação sobre ameaças à segurança internacional, mas a lógica do conflito deve ser substituída por um paradigma com foco na sobrevivência, no desenvolvimento, no respeito aos direitos humanos e no restabelecimento do diálogo. E o Brasil tem credenciais para ajudar a articular a convivência pacífica global
Por Sérgio E. Moreira Lima*
A data de 30 de agosto de 2022 marca o primeiro aniversário da retirada americana do Afeganistão, encerrando a mais longa guerra na história dos EUA, iniciada em 2001, contra o governo do Talibã, que acolhera Bin Laden e Al-Zawahiri, responsáveis pelo atentado terrorista de 9 de setembro. A maneira caótica como os militares americanos deixaram Cabul, em 2021, novamente sob o governo do Talibã, foi interpretada por muitos analistas como a pá de cal na pax americana. No entanto, a liderança do presidente dos EUA, Joe Biden, na resposta da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) à invasão russa da Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022, e no fortalecimento daquela aliança militar indicaria que a combalida hegemonia americana sobrevive com o apoio dos seus demais membros.
Essa conclusão seria válida tanto para o Leste Europeu como para o Indo-Pacífico, onde se articulam novos arranjos de inteligência, segurança e defesa. Na verdade, diante das premências globais, das consequências e riscos do confronto entre potências nucleares, não basta a dissuasão, é necessário substituir a lógica do conflito pelo paradigma da paz.
A ideia de democracias versus autocracias, princípio organizador da política externa do atual governo americano reflete o dilema da competição entre as grandes potências. A perspectiva de continuada ascensão da China manterá sob pressão o que restou da pax americana. Para Biden, é preciso reverter a perspectiva de declínio do Ocidente e defender seus valores democráticos.
Dois fatos graves recentes criaram situações sem precedentes na história contemporânea pós Segunda Guerra Mundial e influem na gênese de uma nova ordem internacional. A invasão da Ucrânia pela Rússia, com ameaça de recurso às armas nucleares, colocou sob risco imediato o centro da civilização ocidental. Por sua vez, o alcance dos exercícios e manobras militares recém conduzidos pela China, anunciados como processo “permanente”, após a visita a Taipé da presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, Nancy Pelosi, representa, além de dissuasão, ameaça de mudança unilateral do status quo de Taiwan por meio da força com impacto na segurança do Indo-Pacífico.
A ascensão da China foi a mudança histórica mais importante da política internacional contemporânea no século XXI. Contribuiu para o surgimento de novos polos de poder e tornou a Ásia Pacífico a região mais dinâmica do planeta em termos econômicos. Essa transformação desloca do Atlântico o eixo do poder político e militar. A competição estratégica entre os EUA e a China pela hegemonia regional poderá determinar a ordem internacional nas próximas décadas.
Segundo Kissinger, a cada século, como numa lei natural, emerge um país com o poder, a vontade, o ímpeto moral e intelectual para transformar todo o sistema internacional de acordo com seus valores[1]. Quando ele elaborou essa análise, tinha em mente os EUA no século XX. No atual mundo multipolar, o grau de interação é maior, assim como a resistência à hegemonia e à imposição de interesses.
Os EUA continuam em posição de primazia como potência militar, ainda que a Rússia possua mais ogivas em seu arsenal de armas nucleares, tenha desenvolvido vetores hipersônicos, assim como a China, e seja identificada na nova estratégia da Otan como a maior ameaça direta à paz e à estabilidade Euro-Atlântica. Mas é a China que apresenta os meios de acirrar a competição estratégica global e a capacidade de preencher as condições indicadas pelo referido ex-assessor de Segurança e ex-secretário de Estado norte-americano. Em sua percepção, desde os anos 1970, quando acompanhou o presidente Nixon na histórica visita a Pequim, uma aliança entre Rússia e China não atende aos interesses norte-americanos.
Às vésperas de invadir a Ucrânia, o presidente Vladimir Putin logrou compromisso público de Xi Jinping de uma parceria “sem limites” com o vizinho russo. Em 17 de agosto, o Ministério de Defesa da China anunciou a participação de suas Forças Armadas no comando estratégico e nos exercícios Vostok-2022, organizados pela Rússia, de 30 de agosto a 5 de setembro. Observou que essa participação já estava prevista no planejamento da cooperação anual e nada tem a ver com a situação regional e internacional corrente. Os dois países já realizaram mais de 30 exercícios militares conjuntos desde que a cooperação começou em 2003. Segundo o Instituto Naval dos EUA, a partir de 2012, as Marinhas chinesa e russa têm conduzido exercícios conjuntos anuais para intercâmbio de informações, aperfeiçoamento da capacidade tática e operacional de suas forças navais. Essas operações incluem todas a forças, inclusive exercícios aeronáuticos de patrulhamento e vêm se expandindo e intensificando. Na avaliação do CSIS, essas práticas se tornaram um instrumento para institucionalizar os laços de defesa entre a Rússia e a China sem, no entanto, formalizar uma aliança militar[2]. Os dois países estariam preparados para estender essa cooperação a outros domínios, como o cibernético e o espaço sideral.
O futuro da cooperação depende, segundo a mesma fonte, do estado geral das relações Moscou, Pequim e Washington. A deterioração do diálogo com o último promove a convergência dos interesses sino-russos. De todo modo, a expectativa do governo americano no tocante ao conflito ucraniano é que a China não entre numa posição contenciosa com a União Europeia, em razão dos interesses comerciais em questão. Todavia, tem crescido, nos últimos seis meses, de forma expressiva, o comércio entre Moscou e Pequim, especialmente as exportações russas (48%) em consequência das sanções dos países da Otan.
A dinâmica no relacionamento entre China, Rússia e os EUA é frágil e imprevisível tanto no contexto da guerra na Ucrânia como na disputa com Taiwan. A decisão recente de Pequim de suspender a cooperação com Washington em áreas de interesse global agrava ainda mais a ausência de mecanismos de diálogo, o risco de acidentes e a probabilidade de erros de avaliação.
O secretário geral das Nações Unidas traduziu de forma eloquente a atual circunstância: “A humanidade está apenas a um mal-entendido, a um erro de cálculo, da aniquilação nuclear”[3]. Advertiu Guterres que as “tensões geopolíticas alcançam novos limites e que os Estados estão buscando um falso sentido de segurança ao estocar e gastar bilhões de dólares em armas apocalípticas”. Acrescentou que “a desconfiança substituiu o diálogo e a desunião substituiu o desarmamento”.
A concertação diplomática, inclusive de segurança, entre as grandes potências nucleares é crucial para evitar conflito e desenvolver relação estratégica no futuro. Nas últimas semanas, em razão de ataques de mísseis e explosões na região e no perímetro da própria usina, aumentou o risco de uma catástrofe nuclear em Zaporizhzhia, maior usina de energia elétrica na Europa, no leste da Ucrânia, ocupada em março por militares russos. A gravidade dos ataques motivou outro esforço de mediação por parte do secretário geral da ONU e do presidente da Turquia no sentido da desmilitarização da usina e inspeção por técnicos da AIEA.
Disputas e preparativos voltam a assombrar antigos teatros da Segunda Guerra Mundial, no Leste Europeu e no Pacífico. Em 2017, os EUA, juntamente com Austrália, Japão e Índia, reinstituíram o Diálogo de Segurança Quadrilateral-QUAD, mecanismo para coordenar posição em questões de interesse estratégico, inclusive de segurança (Exercícios Malabar), no Indo-Pacífico. Além disso, Washington, Londres e Camberra anunciaram em 2021 o estabelecimento do AUKUS, uma aliança militar com o propósito de contenção da China. No campo da espionagem, os “Cinco Olhos”, aliança criada em 1941 pelos EUA, Reino Unido, Austrália, Canadá e Nova Zelândia, têm expandido o alcance de sua ação. Ademais, pela primeira vez, Austrália, Japão, Coreia do Sul e Nova Zelândia participaram, como convidados, do histórico encontro de cúpula da OTAN em Madri, de 28 a 30 de junho. Em razão dessa presença, especulou-se sobre a extensão da Otan ao Indo-Pacífico. Na Europa Oriental, a invasão da Ucrânia levou Suécia e Finlândia a formalizar o pedido de adesão à organização, apesar das reiteradas ameaças da Rússia, e à expansão inusitada dos investimentos em segurança por parte dos Estados membros.
Em 18 de agosto, o Ministério de Defesa da Rússia informou o deslocamento para Kaliningrado, no Mar Báltico, de uma frota de caças MIG-31E equipados com mísseis hipersônicos, em resposta à decisão da OTAN de reforçar seu flanco oriental. Do lado do Ocidente, paralelamente às sanções de dimensão sem precedentes contra Moscou, a UE assumiu compromisso de reduzir a dependência do gás e petróleo daquele país, o que acarreta consequências econômicas e geopolíticas amplas. Em primeiro lugar, acelera a mudança da matriz energética para fontes alternativas e, em segundo, tenderá a reduzir a importância estratégica da Rússia, enfraquecendo sua relação com a Europa, mas a aproxima dos países de sua vertente asiática. Em meio à escalada de tensão regional, EUA e Coreia do Sul iniciaram em 22 de agosto o maior exercício militar conjunto em quatro anos, que deverá estender-se a 1o de setembro.
Ao demonstrar a vulnerabilidade do mundo em relação às cadeias de suprimento da China e do Indo-Pacífico, a pandemia do Covid-19 acelerou o compromisso de países e blocos em reverter essa situação de dependência e estimular a produção doméstica e regional. A Austrália, por exemplo, país de dimensão territorial e econômica próxima a do Brasil, atraiu grandes laboratórios internacionais para complementar a capacidade doméstica de pesquisa e produção de vacinas. Estabeleceu “Estratégia de Industrialização” para produzir internamente bens e serviços críticos, além de terras raras e outros minerais essenciais, como lítio, cobalto e vanádio, para as novas indústrias do século XXI. Esse processo compreende a atração de investimentos e tecnologias para manufatura doméstica, produção de energia alternativa (solar, eólica e hidrogênio verde). Estão sendo desenvolvidas indústrias em segurança e defesa, inclusive ligadas à produção e manutenção de submarinos de propulsão nuclear negociados com os EUA, no âmbito do AUKUS, bem como ao programa espacial australiano. O propósito é adequar a globalização e a interdependência a uma avaliação crítica das necessidades e imperativos da soberania e do interesse nacional daquele país.
A complexidade dos desafios externos demanda também do Brasil visão e planejamento estratégico de longo prazo. Além do escrutínio do Congresso Nacional, é importante que as políticas e decisões governamentais sejam objeto de debate pela sociedade civil e entidades representativas dos setores econômicos a fim de promover o necessário respaldo.
De imediato, cabe ao Brasil tornar claras suas prioridades de política externa e buscar consenso junto à comunidade internacional. Em primeiro lugar, é importante preservar e fortalecer a autoridade da ONU, especialmente quanto à manutenção da paz e da segurança internacional. Fatores geopolíticos não devem por em risco a segurança da humanidade, tampouco a solução dos graves problemas globais, que demandam compromisso, solidariedade e cooperação internacional.
A mediação da Turquia, com apoio da ONU, na liberação dos cargueiros de grãos ucranianos no Mar Negro, demonstra que a solução negociada do conflito na Ucrânia é possível e desejável. É necessário renovar a prioridade e urgência do enfrentamento dos desafios globais, como o da segurança alimentar, energética, meio ambiente e mudança climática. A 17a Reunião de Cúpula do G20, a realizar-se em Bali, Indonésia, em 15 de novembro de 2022, representa oportunidade para debater o impacto da guerra nas prioridades da comunidade internacional da perspectiva das grandes economias.
Em segundo lugar, internamente, o Brasil deve aproveitar as circunstâncias para mobilizar os setores público e privado em torno da agenda de reindustrialização com vistas à redução da dependência externa em setores críticos e de importância estratégica. Esse processo pressupõe articulação com parceiros externos detentores de tecnologia e interessados em investir no mercado brasileiro. O Brasil deve dissipar dúvidas quanto ao seu compromisso, no mais alto nível, com relação ao desenvolvimento sustentável. A 27a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 27), no Egito, em novembro, poderá ser uma oportunidade para tanto.
Independentemente do processo eleitoral, a comunidade internacional espera que o Brasil assuma a liderança internacional que lhe cabe na agenda de meio ambiente e energias alternativas, com a reversão do desmatamento, redução de emissões e valorização de seus biomas. Como quarta democracia, décima economia e território continental com a maior floresta tropical do planeta, o Brasil deve elevar seu perfil internacional para ajudar na superação dos problemas domésticos e contribuir com suas ideias no enfrentamento das grandes questões globais.
Sem paz não há desenvolvimento, tampouco esperança. A lógica do conflito deve ser substituída por outro paradigma, especialmente num mundo sob a ameaça de mudanças climáticas e com graves problemas econômicos, sociais e humanitários. A prioridade deve incidir sobre a sobrevivência, o desenvolvimento e o bem-estar da humanidade, o respeito aos direitos humanos e o restabelecimento do diálogo e da confiança mútua. A competição entre grandes potências não deve ser necessariamente negativa, mas é preciso evitar que seja geradora de conflito. O Brasil possui historicamente as credenciais para ajudar a articular a convivência pacífica como imperativo moral para a defesa da vida e da dignidade humana.
*Sérgio E. Moreira Lima é conselheiro do IRICE, advogado e consultor. Como diplomata, serviu em Washington, Lisboa, Londres e nas Nações Unidas. Foi Embaixador em Israel, Noruega, Hungria e Austrália.
[1] KISSINGER, Henry, Diplomacy, Simon & Schuster, New York, 1994, p.17.
[2] Center for Strategic and International Studies (CSIS), Assessing Chinese-Russian Military Exercises: Past Progress and Future Trends, Washington, July 9, 2021.
[3] Em seu discurso por ocasião da 10a Conferência de Revisão das Partes do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares, na sede da ONU, em Nova York, em 1 de agosto de 2022, o Secretário Geral Antonio Guterres declarou: “Today, humanity is just one misunderstanding, one miscalculation away from nuclear annihilation”.
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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