28 agosto 2025

Enquanto tantas pessoas passam fome, o Sudão continua esquecido

Por ser em uma zona que não atinge diretamente o Norte Global, há o desinteresse de frear o conflito porque há quem saia lucrando com a continuidade dele 

População passa fome no Sudão (Foto: ONU)

Desde abril de 2023, o Sudão é palco de disputas internas pelo controle do país. De um lado, as Forças Armadas do Sudão (SAF), exército nacional liderado pelo General Abdel Fattah al-Burhan; do outro, as Forças de Apoio Rápido (RSF), milícia paramilitar liderada pelo General Mohamed Hamdan Dagalo (“Hemedti”). Com mais de dois anos de guerra, a comunidade internacional pouco se posiciona diante da situação.

As disputas pelo controle do terceiro maior país do continente africano começaram em Cartum, capital do país, se espalhando para outras regiões. 

Cerca de 8 milhões de pessoas se deslocaram internamente e outras 3 milhões buscaram segurança fora do Sudão. Atualmente, o país enfrenta surtos de doenças, incluindo cólera, malária e sarampo. O Médicos sem Fronteiras (MSF) reportou que, com o surto de cólera, 2300 pacientes foram atendidos e 40 pessoas morreram em apenas uma semana.

‘Além da violência e dos surtos de doenças, inúmeras pessoas estão passando fome em el-Fasher, capital de Darfur Norte’

Além da violência e dos surtos de doenças, inúmeras pessoas estão passando fome em el-Fasher, capital de Darfur Norte e cidade estratégica para o controle da região. Por conta do apoio local ao SAF, as RFS bloquearam as saídas e entradas da cidade gradualmente, se intensificando nos últimos meses. 

O bloqueio das rotas desencadeou a alta dos preços da comida, custando quatro vezes mais em el-Fasher do que no resto do país. Com a falta de alimentos, a população recorre à forragem animal para se alimentar, evidenciando o uso da fome como arma de guerra.

Segundo o relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS), “o Sudão enfrenta uma crise humanitária de saúde sem precedentes, com 30,4 milhões de pessoas — mais da metade da população — precisando de assistência em 2025, incluindo 16 milhões de crianças. O conflito causou a maior e mais crescente crise de deslocamento do mundo, com 12,8 milhões de pessoas deslocadas à força”.

‘A Líbia, os Emirados Árabes Unidos (EAU), Chade, Quênia e o Egito são alguns países que têm motivações para se envolverem na guerra’

Como tentativa de obter um cessar-fogo, o presidente de Angola e atual líder da União Africana (UA), José Lourenço, disse que a UA está em contato com a SAF e as RFS. Além das disputas entre os atores locais, é importante ressaltar a presença estrangeira na guerra do Sudão. A Líbia, os Emirados Árabes Unidos (EAU), Chade, Quênia e o Egito são alguns países que têm motivações para se envolverem na guerra. 

Apesar de não ser uma das dez crises humanitárias que não chegaram às manchetes em 2024, a situação no Sudão vem perdendo cada vez mais o espaço de discussão e proatividade. 

Mesmo com números alarmantes, por que até agora não houve um cessar-fogo? Na mesma situação de outros conflitos em África, como na República Democrática do Congo (RDC), os recursos minerais têm um grande peso nas tensões internas, bem como para influências de outros países africanos e extracontinentais nas dinâmicas da guerra.

‘O Sudão é um dos maiores produtores de ouro do continente, com reservas espalhadas em diferentes regiões’

O Sudão é um dos maiores produtores de ouro do continente, com reservas espalhadas em diferentes regiões, como Darfur. O petróleo era a sua principal fonte de receita nacional (86%), mas com a independência do Sudão do Sul, em 2011, o país perdeu 75% das suas receitas

Mesmo menos explorados, ainda há cobre, manganês, ferro, zinco, níquel e urânio no território sudanês. Diante deste cenário, o controle dos recursos naturais tornou-se estratégico para ambos os grupos em disputa. 

Por ser em uma zona que não atinge diretamente o Norte Global, há o desinteresse de frear o conflito porque há quem saia lucrando com a continuidade dele. 

Não devemos esquecer como foi o posicionamento internacional diante da guerra em Ruanda, que culminou no genocídio em 1994: um país africano, não estratégico para os Estados Unidos na época (os quais empreendiam uma política de desengajamento para o continente), que foi deixado à sua própria sorte pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU).

‘Mais uma vez, vemos o descaso acontecer’

Mais uma vez, vemos o descaso acontecer. No texto de março deste ano, escrevi que era importante nós, como opinião pública, fazermos pressão em relação aos diversos embates que estamos vendo atualmente, como a RDC, Palestina e Sudão. 

Precisamos falar sobre eles, criar debates, escrever e construir perspectivas críticas, saindo de uma visão simplista de ‘conflito étnico’ ou qualquer categoria racista que diminua a importância de diferentes dimensões que contribuem para o desdobramento destes conflitos.

A partir destes movimentos individuais e coletivos, contribuímos para a desmistificação do continente africano.

Camila Andrade é colunista da Interesse Nacional, pesquisadora do Pan-African Thought and Conversation (IPATC), na Universidade de Joanesburgo, e do pós-doutorado na UFPB. Doutora em Ciência Política pela UFRGS e pesquisadora do Grupo Áfricas: sociedade, política e cultura. É também mestre em Relações Internacionais pela UFSC. Suas principais linhas de pesquisa são Estudos Africanos e do Sul Global, Ruanda e feminismos negros. É criadora do @camilaafrika, uma comunidade de democratização dos Estudos Africanos.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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