Estudo: Mulheres sofrem violência moral e psicológica ao defender a Amazônia
O trabalho Somos Vitórias-Régias retratou a experiência de 287 mulheres que defendem a floresta, os povos originários e os direitos humanos na bacia amazônica do Brasil, Peru e Colômbia. O primeiro dado mais concreto indica que, entre 2021 e 2022, 47% delas sofreram algum tipo de violência.
O trabalho Somos Vitórias-Régias retratou a experiência de 287 mulheres que defendem a floresta, os povos originários e os direitos humanos na bacia amazônica do Brasil, Peru e Colômbia. O primeiro dado mais concreto indica que, entre 2021 e 2022, 47% delas sofreram algum tipo de violência.
Por Flávia Melo e Melina Risso*
Quem mora na Amazônia e defende interesses em prol da floresta corre riscos – e, ainda mais, quando essa pessoa é uma mulher. No dia-a-dia, as notícias mostram a escalada dos crimes cometidos contra defensores ambientais, como o da líder indígena Estela Verá Guarani-Kaiowá, assassinada em dezembro de 2022, no estado do Mato Grosso do Sul; e o aumento de crimes contra indígenas e seus territórios, principalmente em Roraima, Mato Grosso do Sul e no Amazonas. No entanto, muitas violências não vêm a público.
A ciência desempenha um papel importante nessa investigação de atos criminosos, pois pesquisas qualiquantitativas podem mostrar os números e, ao mesmo tempo, tipificar e relatar os casos. E foi isso o que o trabalho Somos Vitórias-Régias fez: retratou a experiência de 287 mulheres que defendem a floresta, os povos originários e os direitos humanos na bacia amazônica do Brasil, Peru e Colômbia. O primeiro dado mais concreto indica que, entre 2021 e 2022, 47% delas sofreram algum tipo de violência.
Liberado no início de agosto, o estudo foi conduzido pelo Instituto Igarapé, que tem entre as áreas de atuação as seguranças pública e climática. A primeira estratégia foi a contratação de 13 defensoras, para capacitá-las e treiná-las e assim realizar um trabalho de campo a distância. Então, com um formulário pronto em mãos, elas entraram em contato com conhecidas e colherem respostas para a pesquisa – em grande parte, por WhatsApp e telefone.
No total, 131 mulheres no Brasil, 72 na Colômbia e 84 no Peru foram ouvidas. No primeiro grupo, 62% se autodeclararam negras e 34%, indígenas. Na Colômbia, a divisão ficou em 36% de mulheres negras, 32% de mulheres brancas e também de indígenas. No Peru, 99% da amostra se autodeclarou indígena.
O perfil socioeconômico é claro: na maioria dos casos, são mulheres jovens que têm entre 31 e 45 anos, com ensino médio completo e que trabalham como professoras, técnicas agrícolas, articuladoras políticas e cuidadoras. Muitas delas exercem mais de uma profissão, não se identificam como defensoras ambientais e sequer recebem remuneração pelo trabalho de defesa da floresta e de seus povos.
Violência mais comum é a psicológica
A raiz de suas preocupações e lutas varia de país a país. No Brasil, a pauta de atuação mais relatada por 27% das participantes foi a defesa dos interesses de populações rurais, afro-brasileiras, LGBTQIA+, crianças e jovens. Na Colômbia, 32% se empenham na defesa de lideranças comunitárias, políticas e sindicais. E no Peru, a defesa da terra e do território foi a luta predominante para 37% das participantes.
Por atuarem no local onde vivem e lutarem pela proteção territorial, elas estão sujeitas a diversas ameaças. A violência mais comum nos três países foi a psicológica, que pode ser definida como qualquer conduta que cause dano emocional, diminuição da autoestima, prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento da mulher, ou vise degradar e controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões.
Nesse contexto, é preocupante observar que a violência psicológica afetou significativamente as mulheres nos três países analisados, com taxas alarmantes de 28% no Brasil, 30% na Colômbia e 42% no Peru. O segundo tipo mais comum foi a violência moral – 22% no Brasil, 19% no Peru e 12% na Colômbia -, caracterizada por atos de calúnia, difamação e injúria.
Essas estratégias de violência são utilizadas para fragilizá-las, e tudo se agrava quando se considera que metade delas na Colômbia e no Peru, e 36% no Brasil, não receberam qualquer ajuda ou apoio governamental após sofrerem esse tipo de violência. Além disso, a autoria do ato, em muitos casos, não ganha um rosto ou um nome, já que nos três países elas apontaram mais comumente os “desconhecidos” como os responsáveis.
Táticas de intimidação e silenciamento
Uma das hipóteses sugere que são táticas de intimidação e silenciamento, e os meios divergem entre as três localidades. No Brasil, 43% das participantes identificaram os meios eletrônicos, a exemplo das redes sociais, como os principais canais de veiculação das violências. Na Colômbia, os meios eletrônicos e a comunicação escrita compartilharam a mesma porcentagem (27%). No Peru, 57% das entrevistadas receberam a violência de forma verbal.
Como em toda pesquisa que envolve o caráter qualitativo, os achados não podem ser generalizados para toda a população de defensoras ambientais em cada país. Mas os dados são importantes porque essas pessoas já são invisíveis para diversas políticas públicas. No Brasil, em particular, há um déficit de produção de dados sobre os que as mulheres enfrentam no território da Amazônia Legal.
No estado do Amazonas, o último anuário da Secretaria de Segurança Pública é de 2013. Este documento já sinalizava as dificuldades de se obter dados sobre violências de gênero no interior. Ao mesmo tempo, os dados anuais do Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicam a fragilidade das informações produzidas por esta secretaria.
A mesma inconsistência vem sendo observada pelo Observatório da Violência de Gênero no Amazonas, programa da Universidade Federal do Amazonas que já soma dez anos de atuação. Seu mais recente relatório reitera as violências moral e psicológica como alguns dos abusos mais comuns contra as mulheres do município mais indígena do Brasil, São Gabriel da Cachoeira.
Nos três países, os conflitos territoriais relatados pelas respondentes começam, principalmente, por causa do desmatamento, a extração ilegal de madeira, assim como disputas pelo uso da terra e da água. No lado brasileiro dessa questão, com as recentes decisões em torno da tese do Marco temporal que é, em sua essência, um debate territorial, é possível que os conflitos se agravem. Quando há uma legislação que muda o elemento de uma disputa colocada há bastante tempo, existem tensões políticas que trazem novas complexidades para as vidas que estão em jogo.
A identificação das lutas e os perigos decorrentes devem ser mapeados, porque trata-se de uma demarcação de direitos. Historicamente, devido às violências coloniais, o Brasil vivencia o apagamento e o silenciamento das populações negras e indígenas. E são as mulheres dessas etnias que carregam a linha de frente da defesa e do cuidado com a floresta. Se o Brasil quer reassumir o papel de protagonista ambiental, não cabem mais o silenciamento e a impunidade.
*Flávia Melo é professora de Antropologia Social, Universidade Federal do Amazonas (UFAM)
Melina Risso é diretora de pesquisa, Instituto Igarapé
Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
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