07 agosto 2025

Fabrício H. Chagas-Bastos – O grande dia

A realidade é que a discussão sobre o tarifaço nunca foi um tema comercial, mas de defesa da soberania. É preciso deixar claro que agressões unilaterais terão custo, e que a soberania nacional ainda importa

Foto: Casa Branca

Depois de muito ranger de dentes, as tarifas de até 50% que Washington decidiu impor sobre produtos brasileiros, são finalmente realidade — até que Donald Trump mude de ideia novamente. 

A definição dos setores isentos apenas confirmou o viés abertamente político da medida. É seguro que as reações em cadeia — inquietação nos mercados, indignação editorial, articulações políticas apressadas e acusações cruzadas sobre responsabilidade — continuarão por mais algum tempo. 

‘O que havia de concreto a ser feito, até aqui, foi feito’

O que havia de concreto a ser feito, até aqui, foi feito. O Executivo acionou políticas emergenciais para mitigar impactos diretos das tarifas. Os limitados canais diplomáticos e setoriais foram acionados para mitigar danos e reduzir futuras perdas. Uma opção que está sobre a mesa é a previsão de aplicação de medidas de reciprocidade aos setores nos quais os EUA são estruturalmente mais vulneráveis no mercado brasileiro: big techs e farmacêuticos. Para além disso, o que há é performance. 

A ansiedade é compreensível — afinal, trata-se do segundo maior parceiro comercial do país e da maior potência global —, e todos os envolvidos vão tentar extrair o máximo de dividendos políticos (e econômicos) da situação. Nada novo no front. O que causa perplexidade é a maneira como parte do debate público tem abordado o problema: confundindo termos, superestimando causas e implicações, e subestimando oportunidades para mudanças estruturais no Brasil.

‘O problema começa quando se leva ao debate público ilusões de que “negociar” em uma situação na qual há uma agressão unilateral é possível’

De fato, em política, tal como a mulher de César, além de agir, é também preciso parecer que se está agindo. O problema começa quando se leva ao debate público ilusões de que “negociar” em uma situação na qual há uma agressão unilateral é possível. Por exemplo, acreditar que uma comitiva de senadores poderia “negociar” com Trump, ou que governadores poderiam “negociar” com o representante norte-americano — um funcionário diplomático de quarto escalão — no Brasil.

Não se compreende bem o que estaria sendo “negociado”. Para o governo de Donald Trump, a ação responde à supostas “caça às bruxas” e “censura ilegal e secreta” contra atores políticos de oposição ao governo de Lula. Não há uma linha sobre justificativas técnicas, como práticas desleais de comércio, subsídios ou dumping. Portanto, ainda que sem nenhuma garantia de que a ameaça de tarifas seria retirada, o que tem sido sugerido por governadores que não sabem seu lugar constitucional, senadores que desperdiçaram dinheiro público, e pelo governo Lula é que havia algo a ser negociado.

‘O Brasil, como frequentemente acontece, é alvo diplomático fácil e de baixo custo — ainda que pense que é um ator central da geopolítica global’

Nunca houve; o que há é uma medida unilateral dos EUA para atender aos seus interesses imediatos. O Brasil, como frequentemente acontece, é alvo diplomático fácil e de baixo custo — ainda que pense que é um ator central da geopolítica global. Os expressivos 1,25% da participação brasileira no comércio global falam por si só.

Confundir “conversar” com “negociar” é, no mínimo, um erro grave de análise. Sim, é desejável manter canais abertos. Conversar é parte do trabalho diplomático. Negociar, nesse caso, implicaria atribuir legitimidade a uma chantagem que afronta diretamente a soberania nacional.

‘É um roteiro típico das ‘repúblicas de banana’ — com a diferença de que, desta vez, a caricatura vem embalada por hashtags em inglês e discursos sobre “liberdade”’

Não se trata de inação. Trata-se de entender que não é todo dia que o principal aliado do Brasil desde o início do século XX decide voltar-se contra nós com o objetivo explícito de recolocar no poder um ex-presidente deslegitimado pelas urnas e pelo Judiciário. E tampouco é trivial que este ex-presidente e seu grupo político tenham se empenhado em obter sanções estrangeiras contra seu próprio país. É um roteiro típico das ‘repúblicas de banana’ — com a diferença de que, desta vez, a caricatura vem embalada por hashtags em inglês e discursos sobre “liberdade”. 

Não é preciso ir muito longe para compreender que estamos diante de uma tentativa explícita de interferência nas instituições nacionais. Há um movimento mais profundo em curso. A aplicação da Lei Magnitsky — historicamente usada contra regimes acusados de corrupção sistêmica ou violações graves de direitos humanos — contra autoridades brasileiras tem objetivo é claro: pintar o Brasil como uma democracia em colapso institucional, justificar retaliações unilaterais e, no limite, reabilitar a extrema direita como vítima e alternativa legítima de poder. A parte cômica é que o alvo principal da medida, o ministro Alexandre de Moraes, não tem bens ou contas nos EUA.

‘O ex-presidente Jair Bolsonaro e seus filhos têm articulado, junto à comunidade cubano-americana de Miami, uma campanha de lobby para pressionar por sanções contra o próprio país — um gesto que, em qualquer outra nação, seria tratado como traição’

Tal qual se opera nos EUA, é um projeto de mudança no perfil da elite política. Como toda operação desse tipo, ele precisa de operadores internos. O ex-presidente Jair Bolsonaro e seus filhos têm articulado, junto à comunidade cubano-americana de Miami, uma campanha de lobby para pressionar por sanções contra o próprio país — um gesto que, em qualquer outra nação, seria tratado como traição. 

No Brasil, tem sido normalizado como parte do “jogo democrático” — como estímulo às “negociações”. Apesar disso, proliferaram propostas para “negociar”, como se houvesse algo legítimo a discutir. 

‘Setores ligados à campanha de Trump esperaram que o Brasil “se humilhasse mais”, para que o ex-presidente americano pudesse “sentir-se vitorioso” nas negociações’

Houve quem sugerisse que Lula telefonasse diretamente para Trump. A proposta já seria absurda por si só, mas torna-se ainda mais grave diante da informação publicada pelo Valor: setores ligados à campanha de Trump esperaram que o Brasil “se humilhasse mais”, para que o ex-presidente americano pudesse “sentir-se vitorioso” nas negociações. Houve quem acreditasse que a situação poderia ser revertida em visitas de cortesia ou reuniões “secretas”. Outros cogitaram concessões — inclusive em temas que extrapolam a competência do Executivo — como moeda de troca para suspender as tarifas.

Enquanto isso, o Itamaraty — a instituição que, por definição, deveria estar à frente da resposta — parece ausente. O governo tem sido, de fato, moderado. Lula optou por não explorar o antiamericanismo fácil. Não se gabou da decisão, em 2003, de enterrar a Alca. Não lembrou que o país tem reservas cambiais suficientes para sustentar o déficit comercial. Não ironizou o colapso ético e estético da política externa trumpista, rejeitada até por setores do próprio establishment americano. Escolheu o silêncio estratégico — e está sendo criticado justamente por não tomar para si uma responsabilidade que não é e nem nunca foi sua.

‘Quando um europeu promete o que não pode entregar, é visto como um negociador experiente. Quando um brasileiro tenta o mesmo, é tratado como charlatão’

O paralelo com a recente diplomacia europeia — promessas grandiosas de investimentos e compras militares para agradar a Casa Branca — é inevitável. Há uma diferença importante: quando um europeu promete o que não pode entregar, é visto como um negociador experiente. Quando um brasileiro tenta o mesmo, é tratado como charlatão.

Mais espantoso ainda é o contraste. Toda essa comoção — reuniões emergenciais, manchetes inflamadas, peregrinações políticas a Washington — produziu pouco mais que ruído marginal na imprensa americana. Fora uma ou outra nota em publicações especializadas, ninguém presta atenção no drama tarifário brasileiro — um contrassenso, dada a dependência do mercado norte-americano do café e do suco de laranja brasileiros. A diplomacia foi substituída por comentaristas improvisados e colunistas ansiosos por “moderação”. Onde estão os “amigos” do Brasil em Washington? A ampla rede de burocratas, parlamentares e lobistas que durante anos auxiliaram diplomatas brasileiros na batalha pela atenção da Casa Branca.

‘Parte da elite nacional esperava que o Brasil pedisse desculpas por ter um Judiciário independente. Pode ser que ache mesmo que manter boas relações com os Estados Unidos exige humilhação’

Talvez, no fundo, parte da elite nacional esperasse que o Brasil pedisse desculpas por ter um Judiciário independente. Pode ser que ache mesmo que manter boas relações com os Estados Unidos exige humilhação. 

A realidade, incômoda e sem infantilizações, como sempre, é outra: nunca foi um tema comercial, mas de defesa da soberania. E quando a soberania está em jogo, conversar é essencial, ajoelhar-se nunca será. É preciso deixar claro que agressões unilaterais terão custo—e que a soberania nacional, ao menos em teoria, ainda importa. No fim do (grande) dia, o Colosso laranja pariu um rato; um camundongo.

O portal Interesse Nacional é uma publicação que busca juntar o aprofundamento acadêmico com uma linguagem acessível mais próxima do jornalismo. Ele tem direção editorial do embaixador Rubens Barbosa e coordenação acadêmica do jornalista e pesquisador Daniel Buarque. Um dos focos da publicação é levantar discussões sobre as relações do Brasil com o resto do mundo e o posicionamento do país nas relações internacionais.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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