A saga da Índia 6 – Superpotência
País se esforçou tanto para mostrar uma nova face, mais desenvolvida, ao mundo durante a recente reunião do G-20, que chega a mudar seu nome para Bharat. Para embaixador, país ganha importância e busca ocupar um lugar próprio nas disputas globais entre a China e os EUA
País se esforçou tanto para mostrar uma nova face, mais desenvolvida, ao mundo durante a recente reunião do G-20, que chega a mudar seu nome para Bharat. Para embaixador, país ganha importância e busca ocupar um lugar próprio nas disputas globais entre a China e os EUA
Por Fausto Godoy*
O primeiro-ministro da índia, Narendra Modi, não mediu esforços para transformar a Reunião do G-20, que Delhi acaba de sediar num grande espetáculo: modificou o traçado urbanístico, construiu sede nova para o Parlamento, camuflou a miséria, embelezou a capital e vestiu as avenidas e as ruas com cartazes com sua imagem onipresente. Foi mais além: empenhou-se para que se modificasse o próprio nome do país: de ora em diante, não mais “Índia”, mas “Bharat”, que foi como se pôde ler nas plaquetas de identificação do país nas sessões do evento.
A mensagem era explícita: apagar o passado, tanto o muçulmano da dinastia mogol/mogul, que governou o país desde que Babur fundou o império em 1580, quanto o colonial, do British Raj que os britânicos instauraram em 1858 sucedendo a Companhia das Índias Orientais, fundada em 1600 pela Rainha Elizabeth I, da Inglaterra. Em suma, revelar ao mundo a Índia de 2023 e mostrar o seu crescente protagonismo no cenário internacional.
Este processo de “apagamento” e revisão da história vem ocorrendo desde que o Bharatiya Janata Party (BJP) chegou ao poder, em 2014, após vencer o seu rival, o Congresso Nacional Indiano (Indian Congress Party), que dominou a vida politica do país desde a sua fundação, em 1885, liderado pelos próceres que fizeram não somente a independência senão também criaram os alicerces da Índia contemporânea.
Como recordamos, este processo teve à frente o Mahatma Gandhi e Jawaharlal Nehru, o líder político e o primeiro primeiro-ministro, fundador de uma verdadeira “dinastia familiar”, ao ser sucedido por sua filha Indira Gandhi, e seu neto, Rajiv. Aliás, os críticos creditam à “longevidade” da família Gandhi no poder a responsabilidade de ter tornado, durante décadas, a vida política nacional “refém” de uma casta política.
Estes alicerces estão lapidarmente inscritos no Prêambulo da Constituição do país: a Índia é uma “república democrática, socialista, secular, que sufraga as liberdades de pensamento, de expressão, de religião, de crença, de fé, e de culto”. Eles não são mandamentos abstratos, senão a única maneira de uma sociedade de 1,4 bilhão de pessoas que falam 22 línguas oficiais declaradas (com suas respectivas escritas diferenciadas), 122 idiomas principais e 1.599 outras línguas, segundo o censo de 200; que professam ao menos seis credos religiosos principais, muitos dos quais tiveram seu berço na região, como o budismo, por exemplo, e que tem mais da metade da população com menos de 35 anos de idade.
Atualmente maior partido político do país em termos de representação no parlamento e nas assembleias estaduais, a ideologia oficial do BJP, do premiê Narendra Modi, é a que seus membros qualificam de “humanismo integral”, conceito formulado pela primeira vez por Deendayal Upadhyaya, que era membro e líder da organização Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS). O impulso principal desta entidade, de extrema-direita, fundada em 1925 para fornecer treinamento de caráter e incutir disciplina à comunidade hindu era estabelecer uma nação – Rashtra – hindu.
Neste espírito, a organização visa difundir a ideologia do Hindutva e promover os ideais e valores civilizacionais da comunidade hinduísta – de 1,094 bilhão de indivíduos, ou seja, 78,9% da população – o que se traduz, em termos políticos, na premissa de uma “supremacia hindu”.
Este conceito tem como corolário a crescente intolerância com relação às minorias, em particular a cristã e, sobretudo, a muçulmana. Não devemos nos esquecer de que segundo o censo de 2011, esta última constitui a segunda maior religião da Índia, representando 14,2% da população, ou aproximadamente 172,2 milhões de pessoas, e a terceira em termos mundiais. Ou seja, um desvio dos mandamentos constitucionais, e uma potencial ameaça de conflito.
Entretanto, em termos econômicos a gestão do BJP de Modi tem sido exitosa, segundo grande parte dos analistas. Nos contatos que tenho mantido com meus amigos indianos, a maioria se manifesta de maneira muito elogiosa a ela, embora os mais politicamente atilados antecipem uma possível desagregação da malha social em consequência da crescente intolerância da população hindu com relação aos muçulmanos, estimulada, alíás, pelo poder em Delhi.
Para os entusiastas, dados expressivos demonstram que nestes últimos anos o crescimento da Índia chegou a 7,5%, o que poderá dobrar a renda média da população em uma década. O FMI diz que se a Índia promovesse reformas de mercado mais fundamentais poderia sustentar taxas ainda mais altas. Este crescimento econômico tem sido impulsionado pela expansão do setor de serviços, que vem crescendo consistentemente. Alguns especialistas afirmam até que este padrão de desenvolvimento poderá fazer com que o país seja capaz de saltar a etapa intermediária da industrialização na transformação da sua estrutura econômica. Prevê-se que até meados deste século a Índia se transfore na 3ª maior economia do planeta. Na contraleitura, este desempenho macroeconômico, ainda que favorável, não tem sido suficiente para a melhoria significativa dos indicadores de desenvolvimento humano, ainda que a taxa de pobreza tenha diminuído nestes últimos anos.
No campo externo, o seu grande “espelho” – e desafio (?) – é a China, parceira no G-20 e no Brics, mas competidora na região. Ambas visam expandir seus espaços comerciais pela Ásia afora. A China criou a Iniciativa do Cinturão e Rota, pela qual tenciona recriar o traçado que fez a glória e a pujança da sua civilização ao longo dos tempos, até que o colonialismo ocidental transformasse o século XIX no das “humilhações”.
A Índia segue traçado paralelo: formulou em 1991 a política Look East, que transformou em Act East, em 2015, pelo atual governo do BJP. Esta política destina-se a fortalecer e ampliar os laços comerciais com o Sudeste Asiático e outros países do Indo-Pacífico, a região que mais cresce no planeta. Ou seja, este universo tornou-se o “objeto não tão obscuro do desejo”, de ambas. Com razão, a meu ver, pelas similaridades que têm com a vizinhança regional: religiosas, culturais (ainda que diversas), geográficas, etc., e acima de tudo, pelos dois líderes – Xi Jinping e Modi – que, com real apetite pelo poder, têm ambições da dimensão das suas populações.
Estaríamos diante de um “novo mundo”, no qual à hegemonia econômica/política entre China e EUA teríamos que acrescentar um terceiro fator, a Índia? A julgar pelos sinais transmitidos por Modi na reunião do G-20, a pergunta tem cabimento.
To be continued…
*Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.
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