09 outubro 2023

Interesse nacional, inteligência artificial e a coisa pública

Os professores Francisco Gaetani e Virgílio Almeida escrevem sobre as opiniões em torno do uso da Inteligência Artificial, que estão divididas, com alguns enfatizando seu potencial para ampliar as capacidades humanas, enquanto outros expressam preocupações sobre potenciais ameaças que o uso dessa tecnologia pode trazer. Para a dupla, tornou-se fundamental encontrar solução para essa polarização muito além da questão tecnológica com um amplo debate nacional, com participação multissetorial nas discussões sobre o avanço da IA e seus impactos. No âmbito global, discute-se a criação de um instituto internacional

Os professores Francisco Gaetani e Virgílio Almeida escrevem sobre as opiniões em torno do uso da Inteligência Artificial, que estão divididas, com alguns enfatizando seu potencial para ampliar as capacidades humanas, enquanto outros expressam preocupações sobre potenciais ameaças que o uso dessa tecnologia pode trazer. Para a dupla, tornou-se fundamental encontrar solução para essa polarização muito além da questão tecnológica com um amplo debate nacional, com participação multissetorial nas discussões sobre o avanço da IA e seus impactos. No âmbito global, discute-se a criação de um instituto internacional

Por Francisco Gaetani e Virgílio Almeida

A ampla adoção da inteligência artificial (IA) na sociedade e na política está em seus estágios iniciais. O que o futuro reserva ainda é incerto, e, portanto, é crucial manter uma vigilância constante e um controle contínuo sobre como a tecnologia de IA evoluirá, como será implementada na sociedade e quais serão seus impactos subsequentes na democracia. As opiniões sobre a Inteligência Artificial estão divididas, com alguns enfatizando seu potencial para ampliar as capacidades humanas, enquanto outros expressam preocupações sobre potenciais ameaças que o uso dessa tecnologia pode trazer. É fundamental encontrar uma solução para essa polarização, que vai muito além da questão tecnológica. 

Este texto foi publicado na edição 63 da revista Interesse Nacional. Clique aqui para ver a edição completa

Um amplo debate nacional, com participação multissetorial nas discussões sobre o avanço da IA e seus impactos, parece ser a abordagem mais apropriada. No âmbito global, discute-se abertamente a criação de um instituto internacional, nos moldes do Painel Internacional de acompanhamento das Mudanças Climáticas (International Panel of Climate Change – IPCC). Talvez o caminho brasileiro seja combinar a realidade do país com o debate mundial, até porque a conversa é a mesma aqui, na Europa, no Oriente e na América do Norte. O ponto chave do argumento é a necessidade de se compreender as possibilidades ainda incipientes da inteligência artificial.

Este artigo está organizado em duas partes. A primeira analisa as relações entre IA e política, enfatizando a importância de evitar tanto a demonização quanto a idolatria dessa tecnologia emergente, buscando um equilíbrio informado e democrático. A segunda parte focaliza a questão da IA no contexto nacional. Há várias áreas de interseção entre a IA e a democracia brasileira que devem ser compreendidas, acompanhadas e debatidas pela sociedade para aproveitar oportunidades que são criadas pela inteligência artificial – e para assegurar a proteção de nossa frágil democracia, como os últimos anos revelaram.

Parte I: Inteligência artificial e política

A inteligência artificial nos acompanhará em direção ao futuro, independentemente de nossa preferência. Seu impacto na política e na democracia será significativo, trazendo tanto benefícios quanto desafios.

A Inteligência Artificial pode contribuir para política.

Em uma conferência organizada em março último pelo presidente americano Joe Biden sobre desafios emergentes à democracia, Audrey Tang, ministra de assuntos digitais de Taiwan, trouxe uma experiência a ser observada sobre o impacto positivo da inteligência artificial na política em Taiwan. A ministra revelou o plano de lançar uma série de assembleias de cidadãos com o objetivo de assegurar que a inteligência artificial esteja em sintonia com as necessidades humanas e valores da sociedade. Na perspectiva da experiência de Taiwan, as tecnologias de IA podem contribuir para identificar surpreendentes consensos entre adversários políticos, e é capaz de sintetizar a opinião pública de modo valioso para as equipes do governo. É como se as preferências expressas pela participação popular fossem, ao mesmo tempo, captadas e potencializadas pela IA.

As tecnologias de inteligência artificial podem também trazer eficiência e benefícios significativos para as campanhas eleitorais, a começar pelas possibilidades de redução de custos operacionais e do tempo de produção de conteúdo. A IA tem a capacidade de automatizar várias tarefas de um comitê político, como a criação de conteúdo para as comunicações com o público, usando tecnologias de IA generativa. Ferramentas como ChatGPT, Bard e Dall-E podem gerar em poucos instantes correspondências personalizadas para eleitores, declarações bem elaboradas para mídia, vídeos de publicidade, programas de governo, pautas de reunião e outras tarefas típicas de um comitê eleitoral. Ao automatizar parte significativa do trabalho operacional, a tecnologia de IA permite que as equipes de campanhas possam dedicar mais tempo para formulação e implantação de tarefas estratégicas, além de reduzir as barreiras à entrada para a política, democratizando o acesso a cargos públicos.

Impactos negativos na política

A combinação explosiva das redes sociais com as tecnologias de inteligência artificial tem o potencial de usar as táticas de desinformação do passado, dar-lhes nova vida e mais poder de ação. A desinformação gerada por IA não apenas ameaça enganar as audiências, mas também pode corroer ainda mais um ecossistema de informações já combalido, inundando-o com imprecisões e enganos. As sofisticadas ferramentas de IA generativa agora podem criar vozes humanas clonadas e imagens, vídeos e áudios hiper-realistas em questão de segundos e com custos mínimos. Quando vinculadas a opacos algoritmos de redes sociais, esse conteúdo falso e digitalmente criado pode se espalhar rapidamente e atingir públicos altamente específicos, potencialmente levando falsidade e dúvida a um novo patamar. A verdade colapsou porque gasta-se muito tempo para checá-la e isso é caro – em termos de tempo e dinheiro. Em consequência dissemina-se um clima de desconfiança e confusão com profundos impactos sobre o capital social de uma sociedade. A desalavancagem do capital social tornou-se uma realidade: consequência e causa da polarização política.

As tecnologias de IA podem ser usadas negativamente como uma espécie de arma, em temporadas eleitorais, criando um caos informacional, que ameaça processos democráticos. Várias amostras do poder negativo da combinação de redes sociais e inteligência artificial já circulam em contextos eleitorais. Por exemplo, as tecnologias podem gerar mensagens automáticas, distribuídas por robôs, com a voz de um candidato, instruindo eleitores a votarem na data errada. Gravações de áudio de um candidato supostamente confessando um crime ou expressando visões racistas podem rapidamente circular nas redes. Imagens falsas simulando com aparência de autenticidade fontes de notícias locais podem ser espalhadas com a alegação de que o candidato desistiu da disputa eleitoral. Os limites da realidade e ficção irão ficar extremamente tênues.

Numa perspectiva mais ampla, as tecnologias de inteligência artificial generativa afetam o ecossistema comunicacional, promovendo mudanças que alimentam desafios colocados às democracias. Há, por exemplo, o risco de enfraquecimento de instituições tradicionalmente vinculadas à produção de informações e conteúdos. Jornais, institutos de pesquisa de opinião, universidades e outros meios de comunicação podem sofrer grandes abalos não apenas de receitas, mas de legitimidade pública, quando pensamos nas consequências de longo prazo dessas tecnologias, a não ser que abracem a IA e se reinventem para participar de um futuro de difícil antecipação, à luz dos parâmetros do presente.

Parte II: o contexto brasileiro

A Inteligência Artificial (IA) é – ou deveria ser – assunto de alto interesse nacional. As elites do país ainda não se deram conta de seu potencial pervasivo e revolucionário na medida em que a IA vai impactar praticamente todas as atividades sociais e econômicas de nossa vida em sociedade. O Brasil não se deu conta das razões para o senso de urgência demonstrado pelos países mais desenvolvidos do mundo, pela vanguarda da comunidade científica planetária e pelas lideranças empresariais mais destacadas globalmente.

O bouquet que representa o grupo de prioridades afetas ao interesse público nacional inclui também um vasto conjunto de atividades particulares associadas ao movimento coletivo, por assim dizer. A dinâmica da combinação dos dois portfólios de interesses – públicos e privados – são a resultante em tela que o país precisa mapear e perseguir. A Inteligência Artificial afeta assuntos públicos e privados por meio de processos distintos e entrelaçados. Uma eventual omissão do poder público – incluídos neste arco os vários poderes e níveis de governo – resultará na modelagem da expansão da IA no país condicionada apenas aos vetores do setor privado.

Interesse nacional

No mundo interconectado e em processos contraditórios de globalização e decoupling em função dos acontecimentos da última década, a Inteligência Artificial é um game changer. Discernir qual o interesse nacional neste contexto volátil, marcado por turbulências e instabilidade é um desafio para o Brasil, em especial no momento em que o país assume a presidência do G-20. O país vive o desafio de uma difícil reconciliação nacional onde a polarização dos últimos anos resiste resiliente a despeito do gradual distensionamento do clima político, sem que necessariamente esteja ocorrendo o surgimento de grandes novidades em termos de projetos nacionais. O Brasil segue prisioneiro de seu passado e de seus constrangimentos históricos, incapaz de envision a si próprio no futuro próximo.

A geopolítica planetária encontra-se em mutação. O agravamento da crise climática prossegue à revelia dos conflitos internacionais. O conflagrado multilateralismo do início do século XXI não se recuperou da passagem de Trump pela Presidência dos EUA – e de seus desdobramentos que prosseguem. Os aprendizados da pandemia do COVID-19 ainda se encontram em processo de sistematização. A guerra na Ucrânia desorganizou as cadeias produtivas globais em função do papel estratégico que Rússia e Ucrânia desempenhavam no fornecimento de matérias-primas chave para vários países. O esgotamento dos arranjos institucionais pós 1945 tornaram-se evidentes e novas configurações como o BRICS expandido e o novo papel do G-20 desafiam o Brasil a pensar-se e a projetar-se no futuro.

A coisa pública

O devido tratamento do interesse público – a coisa pública ou res publica – pede que dirigentes oficiais, classes dirigentes, lideranças empresariais, acadêmicos, ativistas e think tanks engajem-se no limite de suas possibilidades na discussão dos potenciais impactos da IA sobre suas atividades. Atualmente, discutem-se os desdobramentos relacionados com os rumos da direção do desenvolvimento nacional e dos mercados derivados dos quais o Brasil se inserirá em condições mais ou menos subalternas, a depender de suas escolhas e prioridades no presente e futuro imediato.

A IA pode servir ao interesse público, republicano, de uma democracia resiliente e promissora como a brasileira. Mas isto só ocorrerá se for decidido e implementado pelas autoridades competentes, eventualmente em parceria e sintonia com outros agentes políticos e econômicos da sociedade brasileira. A IA pode contribuir para revolucionar o desafio das desigualdades sociais nacionais, o salto de produtividade buscado pela competividade do setor produtivo nacional, a viabilização da sustentabilidade requerida para a potencialização de um crescimento verde, a transformação da saúde no motor de uma missão portadora de futuro, a aceleração da revolução na educação de que o país tanto necessita e várias outras coisas.

Nenhuma ruptura transformadora acontecerá espontaneamente, salvo nos avanços autônomos do setor privado, limitados por sua escala, capacidade de financiamento e riscos inerentes ao mercado. O papel do Estado é claro e conhecido: a) investir em externalidades – como a formação massiva de mão de obra portadora de digital skills; b) assegurar a expansão de capacidades físicas nos centros de pesquisa existentes nas universidades públicas – o Brasil possui mais de dez departamentos de vanguarda de nível internacional na área de computação; c) assegurar fluxos de recursos subsidiados através dos diversos mecanismos de financiamento das políticas industrial e de inovação existentes – BNDES, FINEP, MCTI, BB etc.; d) investir na criação de uma infraestrutura nacional de IA, com alta capacidade de processamento e armazenamento de dados públicos; e) alavancar a participação do país em parcerias internacionais e nas redes internacionais de pesquisa, desenvolvimento e inovação.

Há a necessidade de acelerar as discussões da regulamentação da inteligência artificial no Brasil, pois isso tem importância chave para o estabelecimento de parcerias e colaborações internacionais para IA.  O principal desafio da construção de uma regulação para a IA é que as regras e leis sejam justas, inclusivas e protejam a sociedade e a democracia, buscando reduzir o nível de desigualdade no país. Ao mesmo tempo, não devem atrasar ou paralisar o desenvolvimento das tecnologias emergentes. Trata-se de um desafio sensível, dinâmico e que deve ser discutido por vários setores da sociedade. 

O maior gargalo para que o assunto ocupe o centro das prioridades nacionais é de outra natureza, no entanto: capital de coordenação, o mais escasso dos governos contemporâneos. Um mutirão – como o que a Índia promoveu ao longo de sua Presidência do G-20, quando pivotou a transformação digital para dar um impulso extraordinário internamente – não acontece espontaneamente. Demanda estratégia, para além da idade das elites dirigentes nacionais.

O Brasil possui todas as condições de incorporar a inteligência artificial na reconfiguração de sua estratégia de desenvolvimento, com fortalecimento da democracia. Mas, precisa de compreensão, clareza, determinação e meios para fazê-lo. Nada que esteja fora do alcance do país. Mas nada que vá acontecer espontaneamente sem desenho e estratégia nesta direção.   


* Francisco Gaetani é professor da EBAPE/FGV e secretário Extraordinário para a Transformação do Estado, do Ministério de Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. Foi secretário Nacional de Gestão Pública nos Ministérios do Planejamento e do Meio Ambiente e presidente da Escola Nacional de Administração Pública

Virgílio Almeida é professor associado ao Berkman Klein Center da Universidade de Harvard e professor emérito da UFMG. Foi secretário de Política de Informática do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, e coordenador do Comitê Gestor da Internet. Foi comissário da Global Commission on the Stability of Cyberspace

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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