O tabu do sionismo para a esquerda brasileira
Guerra em Gaza ampliou o debate acerca do apoio à autodeterminação e à criação de um Estado soberano para o povo judeu. Para professora, ser de esquerda em Israel é como em qualquer lugar: implica apoiar direitos trabalhistas, igualdade étnica e de gênero, justiça social, estado de direito e participação política democrática para todos e também o apoio à existência de um Estado palestino coexistindo com Israel
Guerra em Gaza ampliou o debate acerca do apoio à autodeterminação e à criação de um Estado soberano para o povo judeu. Para professora, ser de esquerda em Israel é como em qualquer lugar: implica apoiar direitos trabalhistas, igualdade étnica e de gênero, justiça social, estado de direito e participação política democrática para todos e também o apoio à existência de um Estado palestino coexistindo com Israel
Por Karina Stange Calandrin*
Pode existir sionismo de esquerda?
Essa é discussão que tem tomado as redes sociais no Brasil desde o início da atual guerra entre Israel e o Hamas. Ela reflete a complicada situação política de Israel nos dias de hoje, mostrando não só o agravamento extremo do conflito entre israelenses e palestinos, mas também o quanto a esquerda brasileira, atualmente, demonstra uma falta de conhecimento histórico e uma postura cegamente contrária a Israel.
Respondendo de forma direta: sim, existe sionismo de esquerda.
O sionismo já adotou diversas formas, desde o leninismo até o pacifismo, passando pelo liberalismo e até mesmo por uma abordagem binacional. Mas também se manifestou de formas mais problemáticas, como o militarismo, autoritarismo e outras vertentes mais extremas. Edward Said estava equivocado ao caracterizar o sionismo, e os israelenses, como monolíticos. Na realidade, o sionismo foi um dos movimentos mais ideologicamente debatidos da história moderna, e isso ainda é verdade hoje. O parlamento israelense (Knesset) pode ser muitas coisas, mas definitivamente não é monolítico.
Então, o que é o sionismo, essa palavra tão criticada?
Trata-se do apoio à autodeterminação e à criação de um Estado soberano para o povo judeu.
E o sionismo de esquerda?
Ser de esquerda em Israel é quase como ser de esquerda em qualquer lugar: implica apoiar direitos trabalhistas, igualdade étnica e de gênero, justiça social, estado de direito e participação política democrática para todos.
Contudo, a política externa também é crucial. O sionismo de esquerda no que tange a política externa apoia a existência de um Estado palestino economicamente viável e independente, coexistindo com Israel. A grande diferença entre os sionistas de esquerda e de direita reside na visão sobre a ocupação da Cisjordânia: enquanto os primeiros a veem como uma tragédia e uma negação do sionismo, os segundos a consideram um triunfo.
Nos seus primeiros anos, Israel mesclou políticas socialistas e liberdades democráticas. Era um país mais pobre, mas fortemente igualitário, vivendo a prática do sionismo socialista. Como apontado por Fred Halliday, até 1967, Israel não era visto como aliado dos Estados Unidos e do “primeiro mundo”, mas como um experimento de economia socialista, inicialmente aliado da União Soviética até os anos 1950 e posteriormente buscando seu lugar no sistema internacional, tentando se aproximar dos países não-alinhados, como países recém-independentes da África e da Ásia.
Contudo, Israel mudou. Assim como muitos outros países, incluindo o Brasil, sua economia se inclinou para o neoliberalismo, gerando uma disparidade social crescente, apesar de algumas conquistas da era social-democrata ainda persistirem. Politicamente, o país assistiu a um aumento preocupante no racismo e atos de violência, uma diminuição do secularismo e uma série de leis repressivas. Internacionalmente, os desafios são imensos, incluindo a expansão de assentamentos na Cisjordânia, conflitos violentos e a desintegração do diálogo para a paz. Para muitos israelenses, a ocupação tornou-se uma realidade “normal”, principalmente para os nascidos no início dos anos 2000.
Bem, é possível então pensar em um futuro pacífico e com dois Estados? Como nós, brasileiros, bem sabemos, restaurar uma rede de proteção social enfraquecida é um desafio enorme; ainda mais desafiador é inverter a tendência do capitalismo para a polarização política e econômica. Internacionalmente, a situação é igualmente alarmante, com a região ao redor de Israel enfrentando instabilidades e conflitos severos.
Isso, no entanto, não diminui a necessidade de se buscar um fim para a ocupação. Muitos liberais, humanistas e progressistas em Israel argumentam que, sem o fim da ocupação, o país está caminhando para a autodestruição, traindo seus valores democráticos e condenando as futuras gerações a um ciclo eterno de conflitos. O problema maior não é o número de colonos, mas a falta de vontade política para mudar.
Em relação a Gaza, a situação é ainda mais complexa, com nenhuma das partes interessadas – sejam israelenses, a Autoridade Palestina, Egito, outros Estados árabes ou a comunidade internacional – querendo assumir a responsabilidade pela região. Grupos extremistas como o Hamas e a Jihad Islâmica Palestina estão ganhando cada vez mais força, o que torna a situação ainda mais complicada, vide a atual guerra.
E qual deve ser o papel da esquerda brasileira nesse contexto? As estratégias adotadas até agora, incluindo movimentos de boicote e discussões acerca do antissionismo, não parecem capazes de resolver a ocupação ou a situação em Gaza. O boicote, embora carregue um forte discurso anti-imperialista, não mostrou resultados práticos significativos, e a ideia de um Estado único antissionista ou pós-sionista enfrenta desafios enormes, tanto práticos quanto ideológicos.
A tentativa de estabelecer um Estado binacional nesse contexto provavelmente levaria a uma violência extrema, familiares aos conflitos civis vividos no Líbano e na Bósnia. A história mostra que, em situações assim, a reconciliação entre os povos se torna ainda mais difícil, como evidenciado pelo exemplo da Iugoslávia. A concepção de um Estado binacional, funcional e ao menos parcialmente democrático, surgindo da união de dois povos que guardam profunda desconfiança e ressentimento mútuos, não encontra respaldo na história nem na prática. É surpreendente que parte da esquerda brasileira apoie essa ideia.
A imprevisibilidade do Oriente Médio contemporâneo, apesar de caótica, traz a possibilidade de acontecimentos surpreendentes. O espírito do sionismo de esquerda, que já foi forte o suficiente para construir um país, ainda existe, negá-lo não ajuda em nada um processo de paz. Mas devemos crer em lideranças diferentes que estejam realmente motivadas em construir pontes. Em tempos de incerteza, tudo é possível.
*Karina Stange Calandrin é professora de relações internacionais no no Insper e na Uniso, pesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP, doutora em relações internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP) e assessora acadêmica do Instituto Brasil-Israel
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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Karina Stange Calandrin é colunista da Interesse Nacional, professora de relações internacionais no Ibmec-SP e na Uniso, pesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP e doutora em relações internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP).
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