Pensamento de grupo e desafios políticos – O impacto nas deliberações de Netanyahu perante a corte de Haia
Posição do governo de Israel sobre a guerra e acusações de genocídio é marcada pelo ‘groupthink’, que anula divergências e cria aparência de consenso. Para pesquisadora, a capacidade de reconhecer a complexidade da guerra pode pavimentar o caminho para uma paz mais duradoura
Posição do governo de Israel sobre a guerra e acusações de genocídio é marcada pelo ‘groupthink’, que anula divergências e cria aparência de consenso. Para pesquisadora, a capacidade de reconhecer a complexidade da guerra pode pavimentar o caminho para uma paz mais duradoura
Por Karina Stange Calandrin*
Diante do cenário imponente da leitura da decisão da Corte Internacional de Justiça (CIJ), em Haia, acerca do aceite da denúncia de genocídio feita pela África do Sul, a apresentação de Israel foi uma narrativa cuidadosamente orquestrada, que paradoxalmente se distanciou da realidade em solo. Em um salão adornado por madeira e cristal, a delegação israelense, liderada pelo respeitado Aharon Barak, ex-presidente da Suprema Corte de Israel, buscou enfatizar a independência do Judiciário no país, sua adesão à Convenção sobre o Genocídio e os esforços humanitários em Gaza. Contudo, essa narrativa parecia flutuar distante das ações do governo, que no passado tentou minar essa mesma independência do Judiciário e menosprezou os esforços humanitários como sinais de fraqueza.
As discussões da corte de Haia trouxeram à tona as complexidades e as contradições internas de Israel. As tentativas de desassociar as ações e políticas governamentais das declarações extremistas de seus representantes refletem um dilema profundo, no qual o peso dos traumas históricos e o medo da perda de identidade e segurança parecem influenciar profundamente a tomada de decisões.
Neste contexto, o conceito de groupthink (pensamento de grupo) surge como um elemento explicativo crucial. A tendência de buscar consenso dentro de um grupo, evitando conflitos e suprimindo opiniões divergentes, pode levar a decisões desastrosas e a uma desconexão da realidade.
A pressão por unanimidade dentro do governo de Israel e entre seus aliados pode ter conduzido a uma postura defensiva em Haia, em que a narrativa apresentada buscava mais a harmonia interna e a satisfação de uma base ideológica do que um engajamento genuíno com as complexidades e as críticas das ações do país.
O groupthink se revela não apenas como um fenômeno psicológico, mas como um catalisador de políticas e decisões que podem ter consequências profundas e duradouras. Esta tendência de harmonização e busca por consenso dentro de um grupo, comum em diversas esferas de decisão, apresenta características distintas e consequências que podem comprometer severamente a qualidade das decisões tomadas.
Uma das características marcantes do groupthink é a ilusão de invulnerabilidade, no qual o grupo superestima sua competência e moralidade, minimizando os riscos associados às suas decisões. Isso pode levar a um excesso de otimismo e a uma maior propensão a assumir riscos, ignorando alertas e conselhos contrários. No caso de Israel, isso pode manifestar-se na forma de uma confiança infundada na retórica e nas ações do governo, desconsiderando as implicações legais e humanitárias de suas políticas.
Ainda, outra característica é a pressão direta sobre os dissidentes. Membros do grupo que expressam opiniões contrárias ou dúvidas são pressionados a conformar-se com a visão predominante. Isso leva à autocensura, em que o medo de se isolar ou de ser rejeitado pelo grupo leva indivíduos a reprimir suas objeções pessoais, diminuindo a diversidade de opiniões e a qualidade do debate. No cenário político, isso pode resultar em uma uniformidade de pensamento e ação que ignora alternativas válidas e necessárias para uma tomada de decisão equilibrada.
A percepção de que todos estão de acordo cria uma falsa sensação de consenso, quando na verdade pode não existir um verdadeiro acordo. Isso é reforçado pelo silêncio dos membros do grupo que discordam, mas que optam por não expressar sua discordância. No ambiente político, isso pode criar uma percepção distorcida de apoio e consenso em torno de políticas que, na verdade, podem ser controversas e amplamente contestadas.
Além disso, a presença de mindguards – membros que protegem o grupo de informações adversas ou contraditórias – limita o acesso a informações vitais e impede uma avaliação realista das circunstâncias. Isso pode levar a uma compreensão distorcida da realidade, em que somente as informações que reforçam a visão do grupo são consideradas, enquanto dados cruciais e perspectivas contrárias são ignorados.
A análise do atual governo de Benjamin Netanyahu, sob a lente do groupthink, revela como esse fenômeno pode se manifestar e influenciar a tomada de decisões em um contexto político altamente polarizado e sob constante escrutínio. O governo de Netanyahu, conhecido por suas posições frequentemente controversas, para se dizer o mínimo, particularmente em relação aos Territórios Palestinos, fornece um terreno fértil para a ocorrência do groupthink devido a várias dinâmicas internas e externas.
Primeiramente, o governo de Netanyahu tem demonstrado uma forte tendência para a ilusão de invulnerabilidade, um traço clássico do groupthink. Esta postura é evidenciada pela adoção de políticas agressivas e pela confiança na capacidade de Israel de manejar as repercussões internacionais, muitas vezes desconsiderando as advertências de especialistas e da comunidade internacional. Essa percepção de invencibilidade pode levar a uma subestimação dos riscos associados a ações consideradas extremas ou unilaterais.
Além disso, a pressão para a conformidade dentro do partido e entre os aliados de Netanyahu é intensa. Membros do governo ou do partido que discordam ou questionam a linha oficial podem enfrentar consequências políticas, levando a uma cultura de autocensura e repressão de opiniões divergentes. Esse ambiente não apenas desencoraja o debate crítico, mas também promove uma ilusão de unanimidade, dando a impressão de que há um apoio inabalável às políticas do governo, mesmo quando existem reservas significativas entre os membros.
Outra consequência do groupthink no governo de Netanyahu é a adoção de políticas extremas ou unilaterais, que podem ser vistas como respostas a uma percepção distorcida de consenso e apoio. A falta de diversidade de perspectivas e o desprezo pelas vozes dissidentes podem levar a decisões que não apenas exacerbam as tensões com os palestinos, mas também alienam aliados internacionais e membros da comunidade global.
No caso específico das deliberações em Haia, o groupthink pode ter conduzido a uma apresentação unilateral dos fatos e a uma resistência a reconhecer a complexidade e a gravidade das acusações enfrentadas. Isso resulta em uma defesa que, embora coesa internamente, pode falhar em abordar as preocupações e críticas substanciais da comunidade internacional, enfraquecendo a posição do grupo e potencialmente levando a consequências desastrosas.
A distorção da realidade se torna evidente quando se considera a descrição dos eventos em Gaza como uma “operação humanitária”, em contraste direto com as condições de vida desumanas, a opressão e a violência cotidiana enfrentada pela população palestina. A tentativa de reduzir a complexidade e a gravidade da situação a uma narrativa simplificada e palatável é um indicativo claro de groupthink, cuja realidade é moldada para se ajustar à visão do grupo, ignorando fatos, perspectivas alternativas e as consequências morais de suas ações.
Esse fenômeno não só obscurece a verdade, mas também impede o avanço de soluções justas e sustentáveis. A postura adotada pela África do Sul, focando quase exclusivamente em Gaza, embora limitada, levantou questões cruciais sobre a ocupação, a negação de direitos fundamentais e a violência sistemática. Estes são pontos que, se devidamente considerados e confrontados, poderiam conduzir a um entendimento mais profundo e a uma possível reconciliação.
Com a continuidade da discussão sobre a guerra em Haia, a necessidade de reflexão e de superação do groupthink torna-se mais premente. As “Consequências Jurídicas das Políticas e Práticas de Israel nos Territórios Palestinos Ocupados, incluindo Jerusalém Oriental” não são apenas questões legais; são reflexos de uma luta interna por identidade, segurança e moralidade. A capacidade de reconhecer a complexidade dessa realidade, de questionar o consenso interno e de abrir espaço para vozes divergentes pode não apenas mudar o rumo das deliberações em Haia, mas também pavimentar o caminho para uma paz mais duradoura e significativa.
*Karina Stange Calandrin é colunista da Interesse Nacional, professora de relações internacionais no no Insper e na Uniso, pesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP, doutora em relações internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP) e assessora acadêmica do Instituto Brasil-Israel
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Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Karina Stange Calandrin é colunista da Interesse Nacional, professora de relações internacionais no Ibmec-SP e na Uniso, pesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP e doutora em relações internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP).
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