14 novembro 2024

Lucratividade do mercado global de cocaína amplia riscos do narcopoder pelo mundo

Lucratividade do comércio de cocaína torna mercado cada vez mais global, e ameaças ligadas à tomada de poder pelo narcotráfico avançam. Além do Equador, países como Holanda e Alemanha lidam com os riscos de grupos organizados com amplos recursos e capacidade de corrupção

A prefeita de Amsterdã, Femke Halsema, alertou sobre risco de a Holanda se tornar um narcoestado (Foto: Wikimedia Commons)

Assumir o fracasso e admitir em público que um país pode ser governado por narcotraficantes não é tarefa fácil, mas, às vezes, é necessária. Foi o que fez neste ano a prefeita de Amsterdã, Femke Halsema, que escreveu um artigo no Guardian alertando sobre os crescentes riscos de a Holanda se tornar um narcoestado. 

“Estimulado pela globalização e pela criminalização internacional, o comércio ilegal de drogas tornou-se mais lucrativo, profissional e implacavelmente violento. Os efeitos foram desastrosos. Na última década, o porto de Roterdã, o maior da Europa, tornou-se um centro de trânsito global para a cocaína. As autoridades holandesas intensificaram os seus esforços para combater o tráfico de droga, mas não inverteram a situação”, escreveu a prefeita.

A pequena fração de drogas apreendida, levando em conta o universo da circulação total, apresenta alguma dimensão da lucratividade do tráfico de cocaína, que sustenta grupos dedicados à atividade, e é suficiente para corromper um dos países mais desenvolvidos da Europa. Na maior apreensão no continente em 2023, realizada no porto de Hamburgo, a carga foi estimada em US$ 3,5 bilhões nos preços do varejo. 

‘Enquanto a maioria das indústrias globais avalia temas como “nearshoring” e os riscos de uma cadeia de produção global, a cocaína não sofreu com nenhum retrocesso da globalização’

Enquanto a maioria das indústrias globais avalia temas como “nearshoring” e os riscos de uma cadeia de produção global, a cocaína não sofreu com nenhum retrocesso da globalização, muito pelo contrário. O tradicional cultivo dominado por Colômbia e Peru se expandiu nos últimos anos, chegando à América Central e se aproveitando da desordem política na Venezuela. 

“Um novo recorde de 2.757 toneladas de cocaína foi produzido em 2022, um aumento de 20% em relação a 2021. O cultivo global de coca aumentou 12% entre 2021 e 2022, para 355.000 hectares. O aumento prolongado da oferta e da procura de cocaína coincidiu com um aumento da violência nos Estados ao longo da cadeia de abastecimento, nomeadamente no Equador e nos países do Caribe”, apontou o último relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC) sobre o tema.

Entre os grupos criminosos, os carteis colombianos perderam espaço para os mexicanos, mas não apenas. Máfias da Itália e da Albânia passaram a atuar fortemente na América do Sul, aumentando ainda o intercâmbio do tráfico de drogas com o de armas. Na África, países como Senegal, Cabo Verde e Guiné-Bissau passaram a compor cada vez mais um cenário em que o oeste do continente é utilizado como um intermediário para o envio da droga que tem a Europa como destino.

‘Os Estados Unidos seguem como líderes mundiais na demanda, enquanto outros mercados tradicionais tiveram expansão, com destaque para o europeu’

Os Estados Unidos seguem como líderes mundiais na demanda, enquanto outros mercados tradicionais tiveram expansão, com destaque para o europeu. A Ásia também observou forte avanço, e até países como Arábia Saudita e Paquistão registraram grandes apreensões no último ano. No mercado superlucrativo da Austrália, um episódio envolvendo vários quilos de cocaína perdidos no mar foi registrado no começo deste ano. 

Neste cenário, de Rosário e Guayaquil a Antuérpia e Roterdã, cidades portuárias foram tomadas pela violência decorrida das disputas, incluindo ainda a Baixada Santista no Brasil. 

“Enquanto um quilo de cocaína na Colômbia for vendido por US$ 2.000, e chegar a US$ 25.000 nos Estados Unidos, US$ 35.000 na Europa, US$ 50.000 na Ásia e até US$ 100.000 na Austrália, o comércio de drogas permanecerá vibrante e se adaptará às mudanças no mundo. incluindo condições de oferta, transporte e demanda. E vai se adaptar rapidamente”, resumiu a organização especializada InSight Crime em seu relatório de perspectivas para a droga em 2024.

‘Na América Latina, o poderio financeiro se reflete em forte armamento e grande capacidade de corrupção das instituições’

Na América Latina, o poderio financeiro se reflete em forte armamento e grande capacidade de corrupção das instituições. A Colômbia dos anos 80 e 90 mostrou como um crime organizado com poder acima do Estado pode agir e subverter a ordem, deixando pouca capacidade de reação do governo. 

Candidatos presidenciais foram mortos em meio às campanhas, sequestros eram realizados à luz do dia, e atos terroristas ocorriam como medida para ameaçar constantemente a ordem pública. Todos estes elementos foram registrados também no Equador nos últimos meses. 

Em um dos episódios mais graves e afrontosos, o Cartel de Medellín ordenou a tomada que gerou o incêndio do Palácio de Justiça da Colômbia, no centro de Bogotá. 

Os atos do começo do ano no Equador, como a invasão de uma estação de TV em Guayaquil, ressoam a falta de apreço pelas instituições que tomou o país, assim como ocorreu na Colômbia há algumas décadas. Além disso, há a percepção generalizada entre os grupos criminosos de que detém mais poder que o Estado, ocasionando na guerra civil na prática conclamada pelo presidente Daniel Noboa. 

‘Roberto Saviano notou que o objetivo do narcogolpe não é tomar o poder, mas aterrorizar o país’ 

Roberto Saviano, que se tornou uma das grandes referências globais no tema, notou que o objetivo do narcogolpe não é tomar o poder, nem controlar o Estado. Longe disso. “O narcogolpe quer aterrorizar o país, restabelecer a sua supremacia sobre o governo e forçá-lo a negociar”, afirmou.

Neste cenário, o exemplo de El Salvador nos últimos anos é apontado por muitos como um possível paralelo. O presidente Nayib Bukele adotou uma controvertida política mantendo um estado de exceção diante dos grupos criminosos no país, que teve como resultado um encarceramento massivo e queda nos índices de criminalidade. No entanto, uma diferença fundamental é a origem dos recursos dos grupos centro-americanos que Bukele combateu.

As maras salvadorenhas tiveram força suficiente para impor terror em El Salvador, mas nunca chegaram ao mesmo poder e recursos dos grupos que operam no narcotráfico global. Sua principal fonte de renda são extorsões e os envios que recebiam pelos integrantes em solo norte-americano. Nada comparado aos recursos bilionários gerados pelo tráfico do “petróleo branco”.

Um conflito contra os 22 grupos decretado por Noboa guarda mais semelhanças com os anos de confrontos na Colômbia, que tiveram na presidência de Álvaro Uribe seu momento mais emblemático. Inocentes mortos, os chamados “falsos positivos”, sequestro como meio de obter recursos para os criminosos, ameaças e ataques contra autoridades.

‘O problema é global, mas quem sempre arcou mais com os custos foram os países latino-americanos’

O problema é global, mas quem sempre arcou mais com os custos foram os países latino-americanos, com destaque para a Colômbia. Em 2024, enquanto o vizinho era esfacelado por um narcogolpe, mais uma narconovela sobre o país foi lançada, desta vez apresentando Griselda, uma das grandes traficantes da época do auge do Cartel de Medellín. 

No entanto, como a prefeita de Amsterdã lembrou, a expansão da força do tráfico coloca cada vez mais em risco até mesmo alguns dos países mais desenvolvidos do mundo. 

Na Alemanha, a cidade de Colônia sofreu nas últimas semanas uma série de explosões atribuídas a disputas de grupos criminosos local e holandeses envolvidos no tráfico de cocaína. Se a comunidade internacional e os governos locais não tomarem ações efetivas, as próximas narconovelas podem ter neve ao invés de latinas seminuas como pano de fundo.

Matheus Gouvea de Andrade é jornalista focado em temas internacionais baseado na América Latina. Trabalhou no Grupo Estado e publicou em veículos como BBC, Rest of World, Climate Change News, DW Brasil, Folha de S. Paulo, Piauí e Público, escrevendo a partir de Lisboa, Medellín, Lima, Buenos Aires e São Paulo

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Tags:

Drogas 🞌 Geopolítica 🞌 Governança global 🞌 Segurança 🞌

Cadastre-se para receber nossa Newsletter