Mariana Kalil: Democracia e o novo governo Lula – o desafio do controle civil
A democracia é fundamental para o exercício de uma política externa bem-sucedida, mas desde 2016 vê-se o aprofundamento da erosão do controle civil sobre os militares no Brasil. Para professora de relações internacionais, é imperativo que o novo governo atente para este fenômeno em defesa da reputação brasileira no exterior e da qualidade de vida da população
A democracia é fundamental para o exercício de uma política externa bem-sucedida, mas desde 2016 vê-se o aprofundamento da erosão do controle civil sobre os militares no Brasil. Para professora de relações internacionais, é imperativo que o novo governo atente para este fenômeno em defesa da reputação brasileira no exterior e da qualidade de vida da população
Por Mariana Kalil*
Parte do conhecimento nacional sobre a política externa brasileira tende a amenizar o impacto das condicionantes domésticas sobre a projeção do Brasil no exterior. Isso decorre, sobretudo, da experiência do regime militar que, majoritariamente, tendeu a exercer uma política exterior alinhada aos traços ensaiados pela Política Externa Independente. O pragmatismo da política exterior de grande parte do regime militar que, inclusive, reivindicava pautas que feriam o interesse nacional dos Estados Unidos, confunde o analista das relações internacionais do Brasil.
Outra vertente da literatura contemporânea, por sua vez, ao debater enquadramentos da Análise da Política Externa, produzidos principalmente nos Estados Unidos, não escapa ao debate a respeito do que a literatura mais tradicional chamou de hipotecas deixadas para a política externa brasileira pelo regime militar. Seriam elas: a democracia, os direitos humanos e o meio ambiente.
Se, neste novo governo Lula, o meio ambiente ganha status de condicionante fundamental para a inserção do Brasil na política internacional, estando os direitos humanos em excelentes mãos com Silvio Almeida, Anielle Franco, entre outros e outras, é imperativo não esquecer-se da democracia, elemento central para a confiabilidade do Brasil no exterior.
Polina Beliakova, pós-doutoranda pela Universidade de Dartmouth, explica como se dá a erosão da democracia por meio da militarização da política no século XXI. Ciente de que o controle civil sobre os militares é fundamental para a sustentabilidade da democracia, ela apresenta atributos e indicadores para o exercício desse controle.
O primeiro atributo seria a subordinação dos militares a autoridades civis, o que seria medido por (a) obediência a ordens despachadas pela autoridade civil; (b) implementação célere e precisa das ordens; (c) os militares reportam-se a autoridades civis a respeito dos principais fenômenos relacionados à segurança.
O segundo atributo seria o domínio por autoridades civis do processo político de tomada de decisões, o que seria medido por (a) composição civil do governo, especialmente em posições ministeriais; (b) expertise civil em temas segurança informando a tomada de decisões; (c) a tomada final de decisões pertence a autoridades civis.
O terceiro atributo seria a ausência de competição entre civis e militares por poder político no governo e ele seria medido por (a) membros das Forças Armadas não se candidatam para cargos públicos; (b) membros das Forças Armadas não tentam influenciar a política por meio de chantagem ou desafiando o governo e influenciando a opinião pública a partir de aparições na mídia, de postagens em mídias sociais, de notas à imprensa, etc; (c) membros das Forças Armadas não conspiram para golpes, não tentam dar golpes nem tentam apoiar golpes.
Beliakova deriva essa sistematização de farta literatura, que inclui: Desch (1999), Feaver (2003), Huntington (1957), Pion-Berlin (1992), Pion-Berlin and Martinez (2017), Cohen (2002), Cohn (2011), Cottey et al. (2002), Feaver (1996, 2003), Kuehn et al. (2017), Perlmutter (1969), Trinkunas (2005), Barany (2012), Brooks (2008, 2009), Croissant et al. (2010), Feaver (2003), Huntington (1957) e Kohn (2002).
Nos últimos anos, assistimos à erosão da democracia no Brasil no que diz respeito às relações civis-militares. Os três atributos do controle civil foram relativizados, tendo havido o que Beliakova chama de erosão por insubordinação, erosão por competição e erosão por deferência. A erosão por insubordinação, no Brasil, representaria um dos maiores desafios à democracia brasileira no que diz respeito ao controle civil, já que há um alto índice de militarização do Ministério da Defesa, cujos tomadores de decisão em temas relacionados à segurança são majoritariamente militares.
Um exemplo de erosão por competição é a participação de militares em eleições, como candidatos, sobretudo se utilizam de suas patentes e de seu passado militar como credenciais para concorrer. De acordo com pesquisa do Instituto Sou da Paz, entre 2010 e 2018, houve um aumento de 950% na participação de militares e de policiais militares em processos eleitorais como candidatos no Brasil. Isso representa fortemente uma erosão de controle civil por competição. Outro exemplo de erosão por competição é o famigerado tuíte do general Villas Bôas, que, no mínimo, representa uma tentativa de influenciar a política por meio da opinião pública.
A erosão por deferência – ou a erosão do controle civil sobre os militares a partir de convites de civis para que militares participem do processo de formulação de política pública e de tomada de decisão – aconteceu no Brasil de forma mais acentuada desde pelo menos o segundo semestre de 2016, ao ponto de em 2020 enxergarmos um aumento de 57% do número de militares em cargos civis na administração pública federal em relação a 2018. Isso representaria por volta de 60% de todos os cargos comissionados na administração pública federal. Esses números são tanto do TCU, quanto da ENAP.
A erosão por deferência não começou na administração Bolsonaro. Sem dúvidas, como mostram os números, ela se deu mais fortemente no governo Bolsonaro, e, durante o governo Bolsonaro, por exemplo, a interpretação do TSE de que os militares seriam stakeholders do processo eleitoral gerou o convite para que eles participassem da Comissão de Transparência Eleitoral, sinalizando uma ausência de conhecimento a respeito dos efeitos do que a gente está chamando aqui de erosão por deferência. Essa ausência de conhecimento não está de forma alguma restrita aos que tomaram a decisão de convidar os militares para a Comissão.
No Brasil, a erosão do controle civil sobre os militares é tão intrínseca à nossa democracia que seria possível reconhecer a participação militar na Assembleia Constituinte como o início dessa prática de deferência na Nova República. Mais recentemente, podemos rastrear essa erosão por deferência, por exemplo, a Operações de Garantia da Lei e da Ordem no contexto de grandes eventos, um prelúdio para à deferência do governo Temer por meio da coordenação militar da intervenção federal no Rio de Janeiro em 2018.
Durante o governo Temer, também houve contribuições para a erosão por deferência por meio da indicação de um general do Exército para assessorar o Presidente do STF, o que foi feito não em decorrência estritamente das características profissionais àquela altura do general Fernando Azevedo, mas criando um cargo a ser ocupado por militares naquele gabinete.
O fortalecimento da democracia brasileira é desafio fundamental para o exercício de uma política externa bem-sucedida. Como credencial para a inserção do Brasil no exterior, a democracia foi, desde 2016, relativizada, o que tem como sintoma o aprofundamento da erosão do controle civil sobre os militares. É imperativo que o novo governo Lula, o governo da Frente Ampla, atente para este fenômeno não somente em prol da reputação brasileira no exterior, mas também da qualidade de vida dos brasileiros e das brasileiras.
*Mariana Kalil é colunista da Interesse Nacional. Professora de geopolítica e relações internacionais da Escola Superior de Guerra (ESG) do Ministério da Defesa, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa (PPGSID) da ESG, senior fellow do Instituto Sul-Americano de Política e Estratégia (ISAPE) e co-coordenadora do Grupo de Pesquisa Segurança e Defesa nas Américas (SeDe Américas). Foi vice-chair/program chair do Global South Caucus da International Studies Association (ISA), representante da América Latina e Diretora de Comunicações do mesmo órgão.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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