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Interesse Nacional
04 setembro 2023

O comércio de bombas cluster e os desafios para política externa brasileira

Rejeição brasileira ao banimento de bombas de fragmentação contrasta com a estratégia de inserção internacional do país, que não tem base nos seus meios militares, mas sim em sua diplomacia. Para pesquisadores, a não vinculação do país à Convenção de Oslo enfraquece sua projeção como potência emergente responsável

Rejeição brasileira ao banimento de bombas de fragmentação contrasta com a estratégia de inserção internacional do país, que não tem base nos seus meios militares, mas sim em sua diplomacia. Para pesquisadores, a não vinculação do país à Convenção de Oslo enfraquece sua projeção como potência emergente responsável

Fragmento não explodido de bomba cluster suspeita de ter sido produzida no Brasil lançada no Iêmen (Foto: Anistia Internacional)

Por Miguel Mikelli Ribeiro e Augusto W. M. Teixeira Júnior*

O embaixador Gelson Fonseca Jr. afirmou que o Brasil redemocratizado entrava no sistema internacional com três “hipotecas” herdadas do regime militar, que se desdobravam na falta de maior compromisso do país em três searas da política internacional: 1) meio ambiente, 2) direitos humanos e 3) desarmamento e não-proliferação nuclear. As hipotecas eram caraterizadas pela não inserção do Brasil nos principais regimes internacionais em cada uma dessas searas.

A terceira hipoteca teve sua “quitação” iniciada ainda no governo Collor, quando o então presidente encerrou o programa nuclear para fins não-pacíficos – com um ato público em que Collor jogava uma pá de cal no túnel construído para testes nucleares.  Mas essa terceira e última hipoteca foi, de fato, simbolicamente quitada com a ratificação do Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares (TNP), em 1998, já no segundo governo Fernando Henrique Cardoso.

‘Em sua busca por status internacional, o Brasil optou por uma estratégia de projeção externa pela construção de uma imagem de “bom cidadão”’

Assim, em sua busca por status internacional, o Brasil optou por uma estratégia de projeção externa pela construção de uma imagem de “bom cidadão” internacional, cumpridor irrestrito do direito internacional contemporâneo. Diferentemente de outras potências emergentes, que passaram a buscar projeção internacional por meio de fatores mais tracionais de poder, como ampliação de capacidades militares – como a Índia, que passou a dispor de armas nucleares ainda na década de 1970.

Em termos de política externa e armamentos, essa imagem construída perante a sociedade internacional foi além dos acordos de não-proliferação nuclear. O país passou a assumir compromissos que pregavam a abolição de armamentos que poderiam ter significativo dano a vida de civis em situações de conflitos. Em 1998, o Brasil aderiu à Convenção sobre Certas Armas Convencionais (1980), que trata de armas com potencial extremamente lesivos, sobretudo para civis, como armas incendiárias – muito conhecidas por seu dano em civis na Guerra do Vietnã. Do mesmo modo, em 1999, o Brasil ratificou a Convenção sobre Armas Químicas (1992), igualmente com alto potencial de danos a não-combatentes.

Um dos exemplos mais expressivos dessa postura de Estado responsável internacionalmente foi a compliance em relação às minas explosivas. Até Convenção sobre Minas Antipessoais de 1997 (conhecida como Convenção de Ottawa), o Brasil era um dos principais produtores e comerciantes internacionais do armamento. Em 1999, o governo Fernando Henrique ratificou a Convenção, o que passou a impactar substancialmente o comércio de minas já nos primeiros anos. Em 2003, seguindo as determinações da Convenção, o país destruiu os últimos estoques dos explosivos.

Mais do que a simples cessação da produção e comércio, o Brasil passou a ser um dos países que mais contribuem para a desativação de minas terrestres em conflitos internos. Peritos brasileiros tiveram papel fundamental na desativação de explosivos terrestres em países como a Colômbia, inclusive proporcionando treinamento de desminagem a peritos colombianos.

‘Não obstante assumir essa postura responsável, o país adota posição ambígua em matéria de comercialização de armamentos que têm grande potencial de dano civil’

Não obstante assumir essa postura responsável, o país adota posição ambígua em matéria de comercialização de armamentos que têm grande potencial de dano civil. Um caso paradigmático dessa ambiguidade brasileira é o das bombas de fragmentação ou munições agregadas – também conhecidas por sua terminologia em inglês de bombas cluster.

Pensadas essencialmente para produzir um efeito tático, no campo de batalha, as bombas de fragmentação são um tipo de explosivo que quando lançadas se abrem e espalham submunições em uma determinada área de um setor da frente de batalha.  Esse tipo de explosivo foi utilizado intensivamente durante o século XX, mantendo-se presente em diversos conflitos armados no século XXI. Não obstante possua uma tecnologia hoje rudimentar, tanto países em desenvolvimento – como o Brasil – e grandes potências – como Estados Unidos e Rússia – possuem e comercializam esse armamento.

Sob uma ótica do emprego militar, as bombas de fragmentação, ou cluster, possuem elevada utilidade e custo-benefício durante ações ofensivas e defensivas. Dada a abrangência da área impactada, as submunições podem produzir efeitos destrutivos contra tropas, meios e infraestrutura inimiga. Inclusive, mesmo quando não estão sob essa configuração, submunições não explodidas podem funcionar como “minas” antipessoal ou anticarro, tornando mais custosa para a mobilidade do inimigo no terreno.

Não obstante exista um sentimento majoritário na comunidade internacional pelo banimento desse tipo de armamento, alguns países sustentam a sua posição como produtores e comerciantes dessas bombas como forma de aumentar a sua flexibilidade no tocante a quais armas empregar em diversos cenários.

‘O fato de os Estados Unidos ainda manterem bombas de fragmentação em seu arsenal é muito ilustrativo de que a ambiguidade entre uma postura moral nas relações internacionais é mediada pela defesa de seus interesses nacionais’

O fato de os Estados Unidos ainda manterem bombas de fragmentação em seu arsenal é muito ilustrativo de que a ambiguidade entre uma postura moral nas relações internacionais é mediada pela defesa de seus interesses nacionais. Mesmo sendo um dos países com o maior arsenal de sofisticados mísseis e foguetes, dotados de elevada precisão e alcance, os EUA, como a Rússia, não se autonegaram o acesso e a possibilidade de emprego das bombas cluster. No cenário de uma real guerra com a China seja pelo Mar do Sul da China ou por Taiwan, bombas de fragmentação são vistas como úteis contra seus inimigos no Oriente.

Essas bombas são recurso útil para saturar e destruir potenciais concentrações blindadas inimigas em conflitos convencionais. Para países como EUA e Rússia, servem como um instrumento de ajuda militar de relativo baixo custo quando comparado aos valores de outros armamentos como mísseis (balísticos e de cruzeiro) e foguetes guiados. Assim, elas representam um ativo potencialmente importante para neutralizar forças militares mais poderosas em conflitos futuros.

A despeito desses argumentos a favor da munição, as bombas cluster são frequentemente criticadas por seu potencial lesivo a populações civis em conflitos armados. Por causa de sua capacidade letal indiscriminada, em 2008, diversos países assinaram a Convenção sobre Munições Agregadas, também conhecida como Convenção de Oslo. O documento prevê, dentre outros aspectos, a proibição de fabricação, comercialização e aquisição de bombas cluster. Hoje, 123 países são partes contratantes do tratado.

‘O Brasil nunca assinou a Convenção sobre Munições Agregadas e vem reiteradamente se abstendo em votações na Assembleia Geral da ONU sobre ela’

O Brasil nunca assinou a Convenção de Oslo. Mais do que isso, o país vem reiteradamente se abstendo em votações na Assembleia Geral da ONU sobre implementação da Convenção, sendo a última resolução adotada no ano passado, com 145 votos a favor, 1 (Rússia) contra e 35 abstenções.

Em guerras civis como a do Iêmen, as bombas cluster causaram a mortes de diversos não-combatentes ao longo do conflito. Essas armas foram utilizadas pela coalização liderada pelos sauditas contra os houthis. Dois incidentes investigados pelo Human Rights Watch, em 2016 e 2017, revelaram que as bombas utilizadas nos casos tinham origem brasileira. No incidente de 2017, dentre os civis mortos pelo uso das munições, estavam duas crianças. Desde então, a HRW vem fazendo apelos reiterados ao Brasil para que assine a Convenção de 2008.

As bombas cluster entraram novamente na agenda da política internacional há poucas semanas, após a decisão do presidente Joe Biden de enviar essas munições no pacote militar de ajuda à Ucrânia. Na esteira do envio norte-americano, a ONG Internacional fez um novo apelo ao Brasil, direcionado ao presidente Lula.

O mundo hoje passa por um contexto internacional marcado por maior conflito armado, pelo retorno de guerras convencional, de alta intensidade e letalidade. Todas essas características ocorrem em uma conjuntura cujo novos polos de poder emergem, porém, marcado pela assimetria de poder e capacidades militares.

‘Não obstante vivamos em uma ordem internacional de matiz liberal, sustentada por regras, existe, em seu âmago, uma realidade de poder no qual a força é a ultima ratio’

Por tudo isso, é compreensível que o Brasil e suas Forças Armadas defendam a produção do armamento. Ademais, sua produção torna-se relevante para manter vivos certos segmentos de sua indústria de defesa como para manter o equilíbrio de poder regional. Soma-se a isso receio por parte de autoridades brasileiras do fenômeno do cerceamento tecnológico por trás de argumentos humanitários por trás de convenções, tratados e acordos de banimento de armamentos. Afinal, não obstante vivamos em uma ordem internacional de matiz liberal, sustentada por regras, existe, em seu âmago, uma realidade de poder no qual a força é a ultima ratio.

Ademais, olhando para o conflito ucraniano, é preciso ressaltar que outros armamentos, com potencial de dano humanitário semelhante ou maior, não alcançam a mesma relevância no debate público. Um exemplo disso é o fornecimento à Ucrânia, por parte dos Estados Unidos, de munições de urânio empobrecido. Enquanto bombas de fragmentação proporcionam um efeito visual mais direto e visível, o qual, com a devida razão, faz clamar por uma ação internacional pelo banimento de sua produção e emprego, as últimas produzem efeitos no médio e longo prazo, como a contaminação do solo e água e aumento de casos de câncer entre combatentes e população civil.

Não obstante todo a discussão feita até aqui sobre o humanitário versus militar é preciso olhar para o debate sobre a adesão ou não do compromisso sobre banimento de bombas cluster para o que realmente para este locus que escrevemos: o seu elemento político. Dado a que estratégia de inserção internacional do Brasil não reside necessariamente nos seus meios militares, mas sim em sua diplomacia, a não vinculação do Estado Brasileiro à Convenção de Oslo gera ambiguidade, enfraquecendo sua projeção como potência emergente responsável. Nessa difícil equação, esse fator custo precisa ser cuidadosamente precificado.


*Miguel Mikelli Ribeiro é colunista da Interesse Nacional e professor de relações internacionais do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Augusto W. M. Teixeira Júnior é professor de relações na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Miguel Mikelli Ribeiro é colunista do Interesse Nacional e professor de relações internacionais do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em RI pela Universidade Estadual da Paraíba e doutor em ciência política pela Universidade Federal de Pernambuco. É autor do livro "Política internacional contemporânea: questões estruturantes e novos olhares".

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